Etnoastronomia indígena do Brasil

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A Etnoastronomia [do grego "ethno" (povo) + "astron" (astro) + "nomos" (observação)], apesar de ser um termo que carece de uma definição precisa, podemos dizer que é o "estudo das noções astronômicas das sociedades atuais baseadas na tradição oral",[1] diferenciando-se de outras duas disciplinas coirmãs, a arqueoastronomia e a astroarqueologia - que recaem no estudo da astronomia a partir dos monumentos dos povos pré-históricos. A etnoastronomia referente aos povos originários do continente americano possui um amplo leque de estudo, o que lhe permite incluir em suas análises assuntos como mitologias; rituais; práticas econômicas e políticas; padrões de arquitetura; artes e outras abordagens que possam estar ligadas às observações astronômicas desses povos.[2] No caso específico dos povos indígenas brasileiros, é perceptível que boa parte desses estudos tem se debruçado sobre a mitologia indígena, muito relacionada com a cosmologia e a cosmogonia de cada povo indígena - a despeito de quaisquer similaridades entre eles. E apesar de afirmações como a de que o indígena não distingue os mitos dos relatos,[3] isso não significa que essas populações estejam petrificadas na crença dos mitos analisados, muito pelo contrário: "Esses estudos sobre mitos e tradições dos povos indígenas da atualidade, em posição subalterna nas sociedades envolventes, revelam que reelaborar suas tradições, articulando-as com elementos novos [...]constitui uma necessidade de sobrevivência e auto-estima do próprio grupo.[4]"

Povos originários do Brasil[editar | editar código-fonte]

Mebêngôkre (Kaiapós)[editar | editar código-fonte]

É na região do Brasil Central onde vivem os Kaiapós:[5] no Parque Indígena do Xingu, ao sul do estado do Pará e ao norte do estado do Mato Grosso. Embora eles tenham recebido o nome "Caiapó" [homem que se assemelha ao macaco], pelo fato de eles usarem máscaras de macaco nos rituais, eles se autodenominam "Mebêngôkre", que significa "homem do olho d'água". Segundo o Pajé Kaiapó chamado "Waiangá Beptopoop", antes de ele e seus parentes irem pro Xingu, as aldeias tinham um formato circular e as casas situavam-se numa linha que representava o caminho do Sol, como uma espécie de reflexo da abóbada celeste.[6] Quando da observação do céu, eles ainda se colocam no meio da aldeia e orientam-se no espaço com os pés virados para o nascente [kàikwa krax] - que simboliza o caminho que o sol percorre, o que segundo eles seria o "caminho da morte" -, com a cabeça para o poente [kàikwa nhôt] e com o umbigo/centro [not / ipôkri] virado para o zênite [kàikwa ipôkri].[6]

Segundo Marcio D'Olne Campos, pesquisador dos Kaiapós, estamos acostumados a nos posicionar para o norte, tendo incorporado da Europa a estrela Polar como o recurso oficial de orientação no espaço, sendo que, para nós, do Hemisfério Sul, o ponto de referência principal do céu noturno é a constelação do Cruzeiro do Sul, um conjunto de estrelas no céu que é uma referência importante para os Kaiapó.[6] Existe um cocar Kaiapó que representa uma casa de vespas (o seu modelo de universo/nome de uma constelação), cuja linha vermelha em seu centro representa o caminho percorrido pelo Sol, e cuja base representa o tracajá (espécie de tartaruga) que sustenta o mundo.[6] Eles também possuem uma espécie de círculo do tempo na memória, o qual constitui um mapa onde são organizados os períodos de atividades na aldeia, como a caça e a pesca.[6]

Existe um mito Kaiapó que conta a história do surgimento das estrelas e da concepção de universo: nos tempos antigos os Kaiapós viviam no céu. Certo dia, um guerreiro saiu da aldeia e avistou a cova de um tatu, a qual ele cavou durante 5 dias em busca do animal. No 5º dia o guerreiro viu um tatu gigante e, na sua busca, cavou o buraco até perceber que furou a abóbada celeste. Nesse momento o guerreiro percebeu que havia um mundo abaixo. Perplexo, ele resolve comentar na aldeia, quando todos resolvem verificar e descer após. Porém o medo tomou conta de alguns que decidiram por ficar na aldeia, quando, de repente, surge um menino que decide cortar a corda, interrompendo a passagem entre os dois mundos.[3] Esse outro mundo é chamado por eles de "atema puká" ou "puká-óndyu" [outro mundo].[3] E nesse conceito de mundo em degraus numa sequência infinita, o mundo que fica sobreposto ao outro é chamado de "Koikawa" [céu], assim sendo, a Terra poderia ser o céu de um outro mundo subjacente.

Boe (Bororo)[editar | editar código-fonte]

Os Bororo[7] se autodenominam "Boe" [coisa boa, em Tupi].[7] "Bororo" significa "pátio da aldeia", e atualmente é a denominação oficial.[7] Até o momento eles detêm seis territórios indígenas demarcados no estado do Mato Grosso do Sul.[7] Eles distinguem apenas as estações das chuvas [boe buttu / a coisa cai], que vai de outubro ao mês de abril, e as da seca [joru buttu / o calor desce], que ocupa o restante dos meses.[8]

Magüta (Ticuna)[editar | editar código-fonte]

Autodenominados de "Magüta" (conjunto de pessoas pescadas com vara), os Ticuna são o povo que constitui a maior população indígena presente na Amazônia brasileira.[9] Para eles, "os fatores climáticos são influenciados por seres que vivem em lugares míticos que interferem sobre os seres da Terra", inclusive os humanos,[10] e a cada um destes seres míticos correspondem um fenômeno natural que são por eles controlados, o que fazem deles o "Dono do Vento"; "Dono da Chuva"; "Dono da Mata", dentre outros.[10] Essa crença faz com que eles realizem os seus rituais em agradecimento a estes seres, mas também com o propósito de evitar comportamentos considerados perigosos e, por conseguinte, evitar as catástrofes que poderiam destruir o mundo.[10] Além das mudanças atmosféricas, estes seres influenciam no calendário agrícola e extrativo.[10]

Corpos celestes como a Lua e o Sol também são considerados por eles como sendo seres vivos que interferem no destino humano, cujos mitos a eles relacionados fazem parte da cosmogonia e cosmovisão Ticuna.[10] Em junho ocorre o que eles chamam de ascensão da briga da Onça e do Tamanduá, duas constelações ticuna que, no decorrer do ano, mudam de posição formando uma espécie de briga entre os animais representados nestas constelações. A Onça fica situada no Sul Celestial, correspondente à constelação ocidental do Escorpião, e representa a época das chuvas; O Tamanduá, também localizado no Sul celestial, corresponde a quatro constelações: Triângulo Austral, Coroa Austral, Norma e Ara e representa a estiagem. Em setembro ocorre a briga da Onça e do Tamanduá no alto do céu. Já em novembro (início das chuvas) ocorrerá o ocaso da briga.[10]

Tupinambá[editar | editar código-fonte]

De acordo com o historiador Florestan Fernandes, "O termo tupinambá [compreende] ...os grupos tribais [termo pejorativo que considera uma população tribal como sendo 'primitiva', i. é., povos subdesenvolvidos historicamente[11]] Tupi que, na época da colonização do Brasil, entraram em contato com os brancos no Rio de Janeiro e na Bahia; e os grupos tribais Tupi que, depois, povoaram o Maranhão, o Pará e a Ilha dos Tupinambaramos".[12] E continua: "Todos os grupos tribais Tupi constituíam ramos de um tronco comum e provavelmente tiveram um mesmo centro de dispersão".[12]

Em relação aos Tupinambá do Maranhão, da família Tupi-guarani, Claude d'Abbeville revela que este povo havia atribuído à Lua a influência sobre o fenômeno das marés, nos momentos de Lua Cheia e Lua Nova, 18 anos antes de Galileu tratar sobre o tema de modo a desconsiderar a Lua em relação a este fenômeno e 75 anos antes de Isaac Newton demonstrar que a causa das marés possui sim a influência desse astro.[13]

Existem alguns painéis de arte rupestre que, além daqueles que representavam a Lua, o Sol e as constelações, representavam fenômenos efêmeros, como cometas, meteoros, eclipses, cada um indicando uma alteração na ordem do Universo, situação que causava medo entre eles.[14] Esses indígenas utilizavam o gnômon (observatório solar indígena) para fazer a observação do movimento do Sol e determinar o meio-dia solar, os pontos cardeais, as estações do ano e os solstícios e equinócios; sendo apontado para o zênite: as faces maiores para as linhas norte-sul e as menores para as linha leste-oeste.[14] O zênite representava o Deus Maior; os pontos cardeais, os quatro deuses que auxiliavam na criação do mundo, cujas esposas eram representadas pelos pontos colaterais.[14]

Constelações[editar | editar código-fonte]

Ema[editar | editar código-fonte]

Fica localizada entre as constelações ocidentais do Cruzeiro do Sul e de Escorpião.[15] "Na segunda quinzena de junho, quando a Ema (Guirá Nhandu, em guarani) surge totalmente ao anoitecer, no lado leste, indica o início do inverno para os índios do sul do Brasil e o início da estação seca para os índios do norte do Brasil.".

Anta do Norte[editar | editar código-fonte]

Localizada entre as constelações ocidentais do Cisne e da Cassiopéia, é mais vista pelos indígenas da região norte do Brasil, ficando totalmente na parte concernente à Via Láctea - considerada O Caminho da Anta.[15] "Na segunda quinzena de setembro, a Anta do Norte surge ao anoitecer, no lado Leste, indica uma estação de transição entre o frio e calor para os índios do sul do Brasil e entre a seca e a chuva para os índios do norte do Brasil".[15]

Homem Velho[editar | editar código-fonte]

É formada pelas constelações ocidentais de Touro e Órion.[15] "Na segunda quinzena de dezembro, quando o Homem Velho (Tuya, em guarani) surge totalmente ao anoitecer, no lado Leste, indica o início do verão para os índios do sul do Brasil e o início da estação chuvosa para os índios do norte do Brasil".[15] Conta uma lenda, que uma indígena se apaixonou pelo irmão do seu marido, e resolveu cortar a perna dele para ficar com o seu cunhado. Mas os deuses ficaram com pena do homem velho e o transformou numa constelação.[15]

Veado[editar | editar código-fonte]

Localizada entre as constelações ocidentais da Vela e do Cruzeiro do Sul, forma-se também pelas constelações de Carina e do Centauro e é mais vista pelos indígenas habitantes da região sul do Brasil.[15] "Na segunda quinzena de março, o Veado surge ao anoitecer, no lado Leste, indica uma estação de transição entre o calor e o frio para os índios do sul do Brasil e entre a chuva e a seca para os índios do norte do Brasil".[15]

Referências

  1. LEOPOLD, José Sávio. 2º semestre de 1990. «Elementos de etnoastronomia indígena do Brasil». Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (30): 3. Consultado em 3 de dezembro de 2018 
  2. MANGAÑA, Edmund (1986). «South America etno-astronomy». Charlottesville-VA: Centro de Estudios y Documentación Latinoamericanos. Latin America Studies. 34. 498 páginas 
  3. a b c LUKESCH, Anton (1976). Mito e vida dos Índios Caiapós. São Paulo: Thomson Pioneira. 312 páginas 
  4. ALMEIDA, Maria Regina Celestino (2003). Metamorfoses Indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional 
  5. «Mebêngôkre (Kayapó)». Povos Indígenas no Brasil. Consultado em 3 de dezembro de 2018 
  6. a b c d e CAMPOS, Marcio D'Olne (2006). «A cosmologia dos Caiapós» (PDF). São Paulo. Scientific America Brasil. 14 (14): 62-71. Consultado em 3 de dezembro de 2018 
  7. a b c d «Bororo». Povos Indígenas no Brasil. Consultado em 3 de dezembro de 2018 
  8. COLBACCHINI, A.; ALBISETTI, C. (1942). Os Bororos Orientais. São Paulo: Editora Nacional 
  9. «Ticuna». Povos Indígenas no Brasil. Consultado em 10 de dezembro de 2018 
  10. a b c d e f FAULHABER, Priscila (2004). «As estrelas eram terrenas: antropologia do clima, da iconografia e das constelações Ticuna». Revista de Antropologia. V. 47 (nº 2): 386. Consultado em 10 de dezembro de 2018 
  11. SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique (2012). Dicionário de Conceitos Históricos. São Paulo: Contexto. p. 409 
  12. a b FERNANDES, Florestan (1963). A organização Social dos Tupinambá. 2ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro. p. 15 
  13. D'ABBEVILLE, Claude (1614). História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e suas circumvisinhanças. São Luiz: Typ. do Frias (publicado em 1874) 
  14. a b c AFONSO, Germano Bruno (julho de 2009). «Astronomia Indígena» (PDF). Manaus. Anais da 61ª Reunião Anual da SBPC. Consultado em 3 de dezembro de 2018 
  15. a b c d e f g h AFONSO, Germano Bruno. «As Constelações Indígenas Brasileiras» (PDF). Observatórios Virtuais: Constelações indígenas. Consultado em 10 de dezembro de 2018