Cad Goddeu
Cad Goddeu (galês médio: Kat Godeu, A Batalha das Árvores) é um poema medieval galês preservado no manuscrito do século XIV conhecido como Livro de Taliesin. O poema se refere a uma história tradicional em que o lendário feiticeiro Gwydion anima as árvores da floresta para lutar como seu exército. O poema é especialmente notável por seu simbolismo marcante e enigmático e pela grande variedade de interpretações que isso ocasionou.
Poema
[editar | editar código-fonte]Com extensão de 250 linhas curtas (geralmente cinco sílabas e uma pausa), e pendendo em várias seções, o poema começa com uma reivindicação estendida de conhecimento de primeira mão de todas as coisas, de uma forma encontrada a frente no poema e também em vários outros atribuídos a Taliesin;[1]
Bum yn lliaws rith |
Estive em multifárias formas |
culminando em uma alegação de ter estado em "Caer Vevenir" quando o Senhor da Grã-Bretanha lutou. Segue-se o relato de uma grande besta monstruosa, do medo dos bretões e de como, pela habilidade de Gwydion e pela graça de Deus, as árvores marcharam para a batalha: segue então uma lista de plantas, cada uma com algum atributo notável, ora apto, ora obscuro;
Gwern blaen llin, |
O poema então se divide em um relato em primeira pessoa do nascimento da donzela das flores Blodeuwedd, e depois na história de outro, um grande guerreiro, outrora pastor, agora um viajante erudito, talvez Artur ou o próprio Taliesin. Depois de repetir uma referência anterior ao Dilúvio, à Crucificação e ao dia do julgamento, o poema termina com uma referência obscura à metalurgia.
Interpretações
[editar | editar código-fonte]Existem alusões contemporâneas à Batalha das Árvores em outras partes das coleções medievais de Gales: As Tríades Galesas registram-na como uma batalha "frívola", enquanto em outro poema do Livro de Taliesin o poeta afirma ter estado presente na batalha.[3]
De acordo com um resumo de uma história semelhante preservada em Peniarth MS 98B (que data do final do século XVI), o poema descreve uma batalha entre Gwydion e Arawn, o Senhor de Annwn. A luta começou depois que o arado divino Amaethon roubou um cachorro, um abibe e um cabrito de Arawn. Gwydion finalmente triunfou ao adivinhar o nome de um dos homens de Arawn, Bran (possivelmente Brân, o Abençoado).[4]
Na história do Mabinogi da infância de Lleu Llaw Gyffes, Gwydion faz uma floresta parecer uma força invasora.[carece de fontes]
O Cad Goddeu, que é difícil de traduzir por causa de sua alusividade lacônica e ambiguidade gramatical, foi o assunto de vários comentários especulativos do século XIX e traduções em inglês, gerando ainda discussões nos séculos XX e na academia atualmente;[5] Pierre Le Roux chegou a chamá-lo de "um texto metafísico sobre o qual sempre há algo a ser dito, e no qual - como acontece com um versículo bíblico - todos podem sempre encontrar o que desejam".[1]
Dentre os primeiros estudos no século XIX, a mitografia propagava diversas alegações exorbitantes sobre origens babélicas e diluvianas segundo o contexto religioso, o que influenciou a Celtomania. Thomas Stephens considerou o poema a respeito de "uma superstição helio-arquita (helio-arkite), a metempsicose de um Druida Chefe e um relato simbólico do Dilúvio".[6] O trabalho monumental de Gerald Massey sobre as origens africanas sugeriu que o poema refletia a religião egípcia.[7]
David William Nash acreditava que ele era um romance do século XII de baixa qualidade sobreposto a um romance ou história da era arturiana e juntado a outros fragmentos poéticos.[8] W. F. Skene rejeitou a antiguidade do relato em prosa e pensou que o poema refletia a história do norte do país durante as incursões irlandesas.[9] Watson seguiu Skene e Ifor Williams fez a pergunta 'E sobre a Batalha da Floresta da Caledônia?'
Robert Graves assumiu uma especulação que foi considerada e rejeitada por Nash; de que as árvores que lutaram na batalha correspondem ao alfabeto ogam, no qual cada caractere está associado a uma determinada árvore. Cada árvore teria um significado próprio e Gwydion adivinhou o nome de Bran pelo ramo de amieiro que Bran carregava, sendo o amieiro um dos principais símbolos de Bran. Graves argumentou que o poeta original ocultou segredos druídicos sobre uma religião matriarcal celta mais antiga, por medo da censura das autoridades cristãs. Ele sugeriu que Arawn e Bran eram nomes para o mesmo deus do submundo e que a batalha provavelmente não era física, mas sim uma luta de inteligência e erudição: as forças de Gwydion só poderiam ser derrotadas se o nome de sua companheira, Lady Achren ("Árvores"), fosse adivinhado, e a tropa de Arawn apenas se o nome de Bran fosse adivinhado.[10] Estudos acadêmicos contemporâneos da literatura galesa não aprovam essas suposições de Graves.[11]
Graves, seguindo Nash, aceitou que o poema é uma composição de várias seções diferentes, entre as quais ele nomeou uma Hanes Taliesin (História de Taliesin) e uma Hanes Blodeuwedd (História de Blodeuwedd).[10]
Outros estudiosos apontam como provável a associação arturiana, em que o rei Artur é citado uma vez no poema, nos versos: "Druidas, sábios, profetizem a Artur!".[12] Há argumentos que situam a batalha de árvores mitológica, aparecida também em outras fontes, na renomada Floresta Caledoniana, como sendo a batalha de Coed Celyddon ("Cat Coit Celidon") citada na Historia Brittonium.[13]
A transmutação de formas do eu-lírico pode refletir um tema do estilo de composição poética celta, com o qual o Canto de Amergin também guarda semelhanças.[14] Arbois de Jubainville interpretou a fórmula "eu sou" no início dos versos deste último como um panteísmo, enquanto que na Batalha das Árvores é utilizado "eu fui", denotando transmigração da alma;[15] essa escrita talvez possa ainda se referir à versatilidade do fili sobre tudo aquilo de que já cantou e se corporificou, em disputa com outros poetas.[14]
Uma metáfora corrente entre galeses e irlandeses era também a de armas e exércitos comparados a árvores, em que os soldados se enfileiravam. Não parece haver, entretanto, relação do agrupamento de árvores apresentado com ordenações já existentes de catálogos legais de árvores em Gales e Irlanda ou poesias sobre plantas, mas talvez o poeta tenha imitado o estilo clássico de listagem biológica em poemas com intento satírico, aludindo ao público uma distante imagem de Taliesin em sua paródia heroica.[1] Patrick K. Ford sugere que o poema poderia guardar estratos de alguma noção de bosque sagrado.[16]
Marged Haycock e Mary Ann Constantine rejeitam a ideia de que Cad Goddeu codifica antigas religiões pagãs como Graves acreditava, mas a veem como uma burlesca, uma grande paródia da linguagem bárdica. Francesco Bennozo argumenta que o poema representa os medos antigos da floresta e seus poderes mágicos. Trudy Carmany Last sugere que Cad Goddeu é uma variante celta da Eneida de Virgílio.[17]
Outros usos
[editar | editar código-fonte]J. R. R. Tolkien provavelmente pode ter se inspirado na Batalha das Árvores para sua "Marcha dos Ents".[18]
No filme Mr. Jones, Gareth Jones é retratado citando versos do poema segundo a tradução de Robert Graves: "Conheço a luz cujo nome é Esplendor/E o número das luzes reinantes/Que espalham raios de fogo".[19]
Duel of the Fates é um tema musical recorrente na trilogia prequela de Star Wars e no Universo Expandido. Foi composta por John Williams e gravada para a trilha sonora do filme pela London Symphony Orchestra (LSO) e London Voices. Esta peça sinfônica é tocada com uma orquestra completa e um coro. As letras são baseadas em um fragmento de Cad Goddeu na tradução de Robert Graves, que foi lida por George Lucas, e cantadas em sânscrito numa versão para coro após ele ter pedido tradução a seus amigos: "Sob a raiz da língua,/uma batalha da mais terrível,/e outra furiosa/atrás, na cabeça".[20][21]
Referências
- ↑ a b c Haycock, Marged (1 de janeiro de 1990). «The Significance of the 'Cad Goddau' Tree-List in the Book of Taliesin». In: Ball, Martin J.; Fife, James; Poppe, Erich; Rowland, Jenny (eds.). Celtic Linguistics / Ieithyddiaeth Geltaidd: Readings in the Brythonic Languages. Festschrift for T. Arwyn Watkins (em inglês). [S.l.]: John Benjamins Publishing
- ↑ Também disponível em [1]
- ↑ Graves, Robert (1948). The White Goddess (em inglês). [S.l.]: Faber & Faber
- ↑ Bartrum, Peter C. (1993). A Welsh Classical Dictionary: People in History and Legend up to about A.D. 1000. Aberystwyth: The National Library of Wales.
- ↑ Constantine, Mary Ann (2003). «The Battle for the "Battle of the Trees"». In: Firla, Ian; Lindop, Grevel. Graves and the Goddess: Essays on Robert Graves's The White Goddess (em inglês). [S.l.]: Susquehanna University Press
- ↑ Thomas Stephens, Literature of the Cymry, 1848, citado em Nash, op cit.
- ↑ Gerald Massey, Book of the Beginnings vol 1, reimpresso 2002, Kessinger Publishing, ISBN 0-7661-2652-8, p. 361.
- ↑ David William Nash, Taliesin, Or, The Bards and Druids of Britain: A Translation of the Remains, J. R. Smith, 1848.
- ↑ W. F. Skene, The Four Ancient Books of Wales, 1868, republished 2004 Kessinger Publishing, ISBN 0-7661-8610-5, page 206
- ↑ a b Haycock, Marged (2007). Legendary Poems from the Book of Taliesin (em inglês). [S.l.]: CMCS
- ↑ MacKillop, James (1998). «Cad Goddeu». A Dictionary of Celtic Mythology. Oxford Reference (em inglês). doi:10.1093/oi/authority.20110803095540870.
- ↑ Jones, Nerys Ann (12 de julho de 2019). Arthur in Early Welsh Poetry (em inglês). [S.l.]: MHRA
- ↑ Green, Caitlin R. (2016). "A Bibliographic Guide to Welsh Arthurian Literature". Arthurian Notes & Queries 1. Também In Green, Thomas (ed.). Arthuriana: Early Arthurian Tradition and the Origins of the Legend.
- ↑ a b Williams, Rowan; Lewis, Gwyneth (27 de junho de 2019). The Book of Taliesin: Poems of Warfare and Praise in an Enchanted Britain (em inglês). [S.l.]: Penguin UK
- ↑ Moore, Virginia (1954). The Unicorn: William Butler Yeats' Search for Reality. Nova Iorque: The Macmillan Company. p. 52
- ↑ Ford, Patrick K. (24 de setembro de 2019). The Mabinogi and Other Medieval Welsh Tales (em inglês). [S.l.]: Univ of California Press
- ↑ Last, Trudy Carmany (2019). The "Battle of the Trees": Arthur, the Prophecy of Virgil, and the "Aeneid". Kindle Direct Publishing. ISBN: 9798687953252
- ↑ Spangenberg, Lisa L. (2007). «Mythology, Celtic». In: Drout, Michael D. C. J.R.R. Tolkien Encyclopedia: Scholarship and Critical Assessment (em inglês). [S.l.]: Taylor & Francis
- ↑ Monji, Jana J. (15 de agosto de 2020). «'Mr. Jones': Trees, Journalists and Gareth Jones ☆☆☆». Pasadena Art & Science Beat (em inglês). Age of the Geek. Consultado em 24 de setembro de 2020
- ↑ Greiving, Tim (13 de dezembro de 2017). «Here's Why 'Duel of the Fates' Transcends the Star Wars Prequels». Vulture (em inglês). Consultado em 24 de setembro de 2020
- ↑ Richard Dyer (28 de março de 1999). «Making 'Star Wars' sing again» (PDF). Boston Globe. Consultado em 6 de dezembro de 2009. Cópia arquivada (PDF) em 5 de janeiro de 2009