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Raymond Abellio: diferenças entre revisões

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Revisão das 14h58min de 9 de agosto de 2013

Georges Soulès / Raymond Abellio
Nascimento 11 de novembro de 1907
Toulouse
Morte 26 de agosto de 1986
Nice
Nacionalidade França Francês
Ocupação Escritor, Filósofo, engenheiro
Magnum opus La Structure Absolue
Escola/tradição Espiritualismo, Gnose
Principais interesses Esoterismo, Ontologia, Metafísica, Fenomenologia


Raymond Abellio, pseudónimo de Georges Raymond Soulès, (Toulouse, 11 de novembro de 1907Nice, 26 de agosto de 1986) foi um escritor e filósofo gnóstico francês.

A sua obra de ficção, de inspiração e essência metafísicas, inicia-se com um primeiro romance (Heureux Les Pacifiques), e desenvolve-se em seguida através da construção de uma Trilogia (Les yeux d’Ézéchiel sont ouverts, La fosse de Babel e Visages immobiles) que ocupará o resto de sua vida. Ao longo destes quatro romances, o narrador (inicialmente chamado Saveilhan e depois Pierre Dupastre) irá evoluindo no sentido da descoberta do “Homem Interior”, ao mesmo tempo que assiste ao desenrolar dos sobressaltos da História Contemporânea mundial, na qual é chamado a “tomar parte sem tomar partido”.

A sua obra filosófica, por sua vez, desenvolve-se através de vários ensaios e numerosos artigos e conferências, onde o autor apoiando-se no estudo da fenomenologia transcendental de Edmund Husserl e no conhecimento da Tradição esotérica ocidental e oriental, que lhe viria a ser transmitida pelo seu “mestre” espiritual Pierre de Combas, acaba por se orientar no sentido da construção de uma “gnose moderna”, que questiona e expande o significado e as implicações do conhecimento contemporâneo. Finalmente, Raymond Abellio também escreveu memórias, coligidas numa outra Trilogia “Ma Dernière Mémoire”, em três volumes (Un Faubourg de Toulouse, Les Militants, Sol Invictus) que se referem aos primeiros quarenta anos da sua vida.

Esboço biográfico

Nascido numa família pobre do subúrbio de Minimes de Toulouse, Georges Raymond Soulès ingressou em 1927 na Escola Politécnica de Paris donde saiu para o Departamento de Pontes e Estradas. Após aderir ao grupo parisiense de estudantes socialistas e depois à Juventude Socialista do XIVº bairro, Soulès "converteu-se" ao marxismo em 1928, e ingressou, em 1932, na Section Française de l’Internacional Ouvrière (SFIO), aderindo em seguida ao Centro Politécnico de Estudos Económicos (X-Crise). O romance o Grand Slam, entretanto escrito, nunca será publicado, e acabará por ser destruído durante um bombardeamento, em 1940. Após o encontro, em 1932, com o surrealismo e a escrita automática, Soulès rompeu, em 1935, com o Partido Comunista. No ano seguinte, sob o governo de Léon Blum, o futuro escritor é encarregado de missão no Ministério da Economia Nacional. Primeiro servindo como engenheiro na Drôme e depois em Paris e em Versalhes, Soulès militou na oposição de esquerda do Partido Socialista, representando-a no comité de direção do partido em 1937 e 1939. Em 24 de agosto de 1939, Soulès foi mobilizado para o 6º regimento de engenharia em Angers, e foi feito prisioneiro em 26 de maio de 1940, em Calais, tendo permanecido no Offlag IV D, durante oito meses. Após o regresso do cativeiro, em 1941, o militante ingressa no Movimento Social Revolucionário (MSR) de Eugène Deloncle (onde segundo algumas vozes terá cedido à "tentação totalitária"). Com outros membros, no entanto, Soulès participou numa fração clandestina. Dessa forma, após a exclusão de Eugène Deloncle, em 1942, o MSR é renovado e assegura a ligação com a Resistência Francesa, como testemunhou Jean Gemaehling.

Em 1943, ele era membro da Frente Nacional Revolucionária[1], criada por Marcel Déat, que incluía a maioria dos partidos colaboracionistas, com exceção do Partido Popular Francês. Chefe de fila da FRN, Georges Soulès esteve na origem da fundação, em 1943, do grupo clandestino "Os Unitários" que publicou o boletim Força Livre. 1943 foi, para Soulès, o ano decisivo do seu encontro com Jane L. e com Pierre de Combas, que será o seu “mestre espiritual” até à partida de Soulès para o exílio. Forçado a esconder-se, Soulès mudou várias vezes de domicílio, entre 1944 e 1947, ano em que decide refugiar-se na Suíça, onde se tornará o tutor dos filhos de Jean Jardin, ex-diretor do gabinete de Pierre Laval. Durante este período de clandestinidade, escreveu os seus primeiros livros. Publicado, já sob o nome de Raymond Abellio, em 1947, o seu primeiro romance Heureux les Pacifiques, em Abril desse ano o mesmo obteve o prémio de Sainte Beuve. Durante este período, Georges Soulès abandonou o campo da ação política, para "renascer", definitivamente, como Raymond Abellio.

Em 1948, porque havia sido confundido com um homónimo, gerente de propriedade judia durante a ocupação, Georges Soulès foi condenado à revelia a dez anos de trabalhos forçados. Perdoado em 1952, através da intervenção de elementos ligados à Resistência (em especial o depoimento do general Pierre Guillain de Bénouville), Abellio regressou a Paris em 1953. Tendo abandonado a política, este ex-ativista dirigiu, para ganhar a vida, uma empresa de engenheiros consultores sem nunca, paralelamente, deixar de se dedicar à busca do conhecimento, através da literatura, da filosofia e do esoterismo. Regularmente convidado a apresentar as suas ideias em emissões audiovisuais e de rádio, foi no entanto através da sua obra literária e ensaística que Raymond Abellio se empenhou na transmissão do conhecimento gnóstico que viria a constituir e a aperfeiçoar. Morreu em 1986. Um Cahier de L’Herne foi-lhe dedicado em 1979.[2]

Um caminho para a Gnose

Do compromisso político ao despertar fenomenológico

A adolescência de Georges Soulès foi atravessada por "crises místicas" que, em intervalos irregulares, davam ritmo a uma existência solitária, interior e estudiosa. Exprimindo-se espontaneamente por uma religiosidade vivida à margem dos outros por meio de uma liturgia muito pessoal, esta mística "do interno", se era já um anseio pelo absoluto, no entanto, permanecia sem estrutura definida, sem finalidade específica, sem qualquer motivo consciente, como uma predisposição mística difusa e espontânea. Em 1928, durante um encontro com o capelão da Escola Politécnica, Padre Pupey-Girard, realizado a pedido deste, o jovem politécnico foi convidado para evangelizar as massas socialistas, ao mesmo tempo que ouviu falar sobre a dimensão do homem interior, a que se referia S. Paulo. Sendo esta entrevista um dos aspetos mais marcantes de sua vida, ela esteve na origem de uma experiência interior decisiva: Soulès encetou a sua “conversão” marxista. A sua mística encontrou, naquilo que Abellio designará mais tarde de "física social", simultaneamente, um objetivo (a revolução socialista) e um campo de intervenção (o ativismo político), mas sobretudo um sistema rigoroso capaz de canalizar, ordenar e polarizar os seus entusiasmos, e dar-lhes um sentido. O marxismo foi, portanto, para Soulès, o primeiro contacto genuíno com o mundo das ideias e da racionalidade. O tema do confronto dialético da alma e do espírito, do calor e da luz, tomou aí corpo pela primeira vez, na sua vida útil. Ao longo do seu comprometimento marxista, que durou até 1938, mas também durante o período que se estende de 1939-1943, Soulès procurou conciliar a "vontade de poder" com um "ideal de pureza", combinando assim o mundo das ideias com o domínio do poder. Mas a partir das suas experiências políticas fracassadas, o militante gradualmente consciencializa-se da impossibilidade de conciliar as questões do indivíduo e da espécie e, finalmente, uma apetência cada vez mais intensa para o conhecimento, levou-o a rejeitar as suas ilusões. Dar-se-á então um novo encontro, melhor um duplo encontro, que terminou por resgatá-lo da esfera da intervenção sociopolítica, e que o fez entrar no mundo dos mistérios do conhecimento. Na verdade, quase ao mesmo tempo (março de 1943), aquele que era conhecido como George Soulès conheceu tanto aquela que o faria entrar "nos domínios enigmáticos do amor que são a razão de ser do próprio amor": Jane L., como conheceu também aquele que viria a tornar-se o seu mestre espiritual: Pierre de Combas. Soules, portanto, viu-se envolvido em seu "segundo nascimento", que o faria renascer com o nome de Raymond Abellio

Do esoterismo para a filosofia moderna

Pierre de Combas era um indivíduo singular: um antigo professor primário, depois curandeiro e, finalmente, um recluso, que iniciou Soulès no esoterismo, sendo o termo esoterismo aplicado aqui para designar um conjunto heterogéneo de doutrinas referentes a uma Tradição universal. Graças a Pierre de Combas – cujos ensinamentos se baseavam principalmente em dois livros: a Bíblia e o Bhagavad-Gita – Soulès descobriu realmente as tradições e as ciências tradicionais (particularmente a Numerologia e a Kabbalah), e entrou "realmente no esoterismo como tal." O encontro com Pierre de Combas ocorreu num momento crítico, precisamente quando Soulès estava a questionar o seu envolvimento político. A sua entrada no esoterismo marcou, portanto, uma rutura radical com a ideologia, e ditou o seu afastamento do terreno da intervenção política. Foi principalmente por intermédio do gnosticismo cristão que esta passagem se deu, estabelecendo aquilo que mais tarde constituiria a relação esotérica de Abellio com o cristianismo. O cristianismo, portanto, passou a ocupar um lugar privilegiado na busca de conhecimento empreendida por Abellio, sem excluir outros esoterismos e outras tradições. Finalmente, o que Soulès procurava no esoterismo, nesse corpo de doutrinas que se apresentam a ele, de repente, na sua amplidão, na sua riqueza e seus ensinamentos, como ele mesmo refere era "uma base ética para justificar e legitimar uma transformação vital profunda". Ele encontrou ali elementos que, uma vez recuperados, viriam a ser, para alguns, as bases da sua filosofia gnóstica, para outros, as referências simbólicas que nos permitem compreender melhor o presente e o futuro das coisas: a existência de uma unidade primordial velada, repousando sobre uma interdependência universal; o princípio da semelhança; a não-dualidade; a existência de uma influência espiritual; o valor qualitativo dos números; o preceito segundo o qual devemos ver e sentir a positividade em todas as coisas; a conceção do verdadeiro conhecimento, ao mesmo tempo como doutrina e como prática; a designação do mundo contemporâneo como "fim de um ciclo"; a possível construção de uma Arca (interior). A entrada no esoterismo foi assim, para Soulès, o momento e o ato preparatórios para um ingresso consequente e refletido na sua interioridade: "a única âncora verdadeira." Aos seus olhos, porém, aquele ensinamento rapidamente lhe pareceu insuficiente, incapaz de satisfazer a exigência de universalidade, de clareza e de contributo pessoal que o moviam. As duas principais críticas por ele formuladas contra o ensinamento de seu mestre, e contra a panóplia de glosas e de doutrinas que integravam o esoterismo moderno, era, por um lado, o seu dogmatismo, e, por outro, a natureza externa da sua crítica da tradição. Isto é, mais do que o esoterismo, aquilo que Raymond Abellio começou a atacar, a partir de 1944, foram os esoteristas, designadamente René Guénon.

Da filosofia moderna à gnose

Segundo Raymond Abellio, na Tradição, existe um núcleo central, um fundo de verdade, que importa "desocultar", a partir de uma "crítica interna". Esta conduta, que importa empreender, corresponde ao terceiro significado do esoterismo: uma verdadeira visão vivida que destaca e atualiza, racionalmente, a mensagem da Tradição, a partir da sua incorporação transcendental, por meio de uma "conversão e de uma de presença a si mesmo do ser interior", passagem que dá acesso a um estado "iluminante" que Abellio designa "transfiguração" do mundo, estado esse que para Abellio constitui o fim do próprio esoterismo, no sentido duplo de que se reveste a palavra fim. O esoterismo entendido uma vez como "desocultação" apresenta-se como o caminho gnóstico, aberto por Abellio: uma via que conduz ao conhecimento! Esta via foi possível graças ao encontro que Abellio teve com a filosofia moderna. Um encontro que lhe permitiu implementar a sua exigência de clarificar as suas intuições e organizar os materiais herdados de muitas doutrinas esotéricas.

A filosofia moderna desempenhou um papel catalisador que lhe forneceu ao mesmo tempo o ímpeto, por reação, contra o pensamento de Jean-Paul Sartre, e a orientação, a estrutura e as ferramentas necessárias para criar a sua própria filosofia. Como ele mesmo afirma, foi a sua reação contra a filosofia do pai do existencialismo que o levou a pronunciar-se, contra os princípios e inferências de seu pensamento: a transcendência do ego; a consciência como forma vazia e como realidade impessoal; o esvaziamento do momento presente, a não-comunicabilidade das consciências; a redução das dimensões do ser a duas regiões: ser em-si e ser para-si.

A partir da crítica a Sartre, Abellio começou a desenhar e explicitar os princípios fundadores da sua própria filosofia. Visando, contra Sartre, atualizar a Tradição, Abellio procedeu à refundação da relação ancestral sujeito/objeto, refundação essa que teve como ponto de apoio e primeiro objeto de análise um aspeto que é uma questão epistemológica central e inevitável – e um desafio – da pesquisa fenomenológica: a análise do fenómeno da perceção. Tendo como corolário a descoberta da estrutura da intuição e do "agora", essa reformulação levou Abellio à criação do modelo lógico-simbólico da "estrutura absoluta", assim como à formulação da teoria da "lógica da dupla contradição cruzada". Foi a partir do encontro conflitual com a obra de Sartre, especialmente, em "O Ser e o Nada", que Abellio teve a ideia de relacionar a ontologia e a fenomenologia. De Sartre, julgado inadequado e agnóstico, Abellio chegou, por um lado, a Husserl e à fenomenologia e, por outro, a Heidegger e à ontologia. Profundamente marcado pela leitura da obra de Husserl, Abellio apropriou-se, integrou e completou o método da fenomenologia transcendental, não apenas a partir de um ponto de vista analítico ou conceptual, mas reconhecendo-o como um verdadeiro poder, capaz de instaurar uma comunidade de pensamento, através da operacionalização dos seus próprios fundamentos: a "epoche"; a redução fenomenológica; a redução eidética; o sujeito transcendental; a intencionalidade (a que Abellio associou, por um lado, a intensidade, através da qual a consciência funda em si mesma o objeto visado e se preenche do mesmo, e, por outro lado, a intensificação, como poder específico e pessoal do crescimento qualitativo da intensidade); a intuição; a constituição; o "mundo da vida"; a intersubjetividade transcendental. Em relação à ontologia de Heidegger, por outro lado, a posição de Abellio parece ter mudado sensivelmente ao longo do tempo. Se em A Estrutura Absoluta "a nova ontologia de Heidegger" lhe aparece “como complemento da fenomenologia transcendental", por outro lado, em O Manifesto da nova Gnose, seu último livro, escreve que "as afirmações repetidas de Heidegger sobre a radicalidade do problema do Ser relativamente ao problema da consciência, parecem-nos mais perentórios do que claros". Dito isso, o projeto da fundação ontológica da fenomenologia nunca foi contestado por Abellio, ele reconheceu em Heidegger, mais ou menos explicitamente, o mérito de ter aberto ao espírito algumas pistas fecundas, de ter introduzido na história das ideias algumas categorias esclarecedoras e de ter operado desenvolvimentos benéficos. Alguns dos elementos-chave da filosofia de Heidegger recuperados por Abellio são: a diferença ontológica; a diferença entre a Presença e o que através dela se presentifica; o Aberto, o Stimmung; o projeto de superar a velha metafísica.

A Gnose abeliana

O confronto entre os ensinamentos fundamentais da tradição esotérica e o pensamento filosófico moderno determinou a "descoberta" de que falamos. Nesse confronto e por seu intermédio se elucida a mensagem da Tradição ou Conhecimento primordial, e são encontrados, ou mais precisamente são reconstituídos internamente, as chaves universais da gnose eterna. Eis aqui, simplesmente enunciadas, as categorias às quais correspondem as diferentes chaves, assim como a sua tradução particular na filosofia de Abellio: postulado - "interdependência universal"; modelo - "estrutura absoluta"; metodologia - "lógica da dupla contradição cruzada"; génese ou progressão - "integração" e "intensificação"); perspetiva e finalidade - "transfiguração".

A génese da Gnose abeliana, gnóstica já pelo percurso, deve ser entendida desde logo como atualização e "visão vivida", afirmando-se como tal a partir de um certo ponto de seu desenvolvimento, e da sua desocultação. Ela encarna a nova abordagem ao conhecimento, que Abellio designa de "nova gnose". Ela é o caminho, a tarefa e a obra do próprio Ocidente, esse lugar espiritual do despertar da consciência transcendental, mas também da mobilização e transfiguração da razão. Essa é a via, portanto, da edificação do homem interior, que conduz à constituição da "fenomenologia genética", outro nome utilizado por Abellio para descrever a nova gnose. Com base nestes resultados, Abellio podia mergulhar de novo, sem se perder, na multiplicidade das ciências, filosofias e tradições, procurando por todo o lado o traço faixa e a ilustração do fundo universal. A Abellio, não lhe restava senão dar testemunho, a partir de certos sinais lançados aos homens, da existência de uma nova conduta gnóstica, da existência de uma nova via, ocidental, do conhecimento.

A Obra

A obra, o pensamento e o sentido

Sendo uma tal filosofia, ao mesmo tempo, doutrina, método e práxis, da parte dos que se interessam por ela, conhecê-la implica desde logo confrontar-se, de forma consistente e integral, com as obras que a revelam, a ilustram, a demonstram, a evocam e a aplicam. Cada uma das obras do corpus abelliano constitui uma expressão particular de uma filosofia que parte em demanda do sentido das coisas. Alguns dos seus livros apanham-na em fase de gestação, outras em plena maturação, outras já em evidente maturidade e as restantes revelam o conjunto da sua génese, ou recapitulam os seus eixos principais. Quanto a esta filosofia, e de acordo com um dos paradoxos principais implicados pela gnose que ela implanta, deve ser dito que ela está contida dentro de cada uma destas obras e, no entanto, ao mesmo tempo, presente fora de todas. Se Abellio aceitou passar pela prova dos signos, foi para transmitir, por um lado, os sinais de uma prova gnóstica e, por outro, no sentido que ela conquista. O sentido está sempre em primeiro lugar em Abellio, é ele que impõe o estilo e os seus sinais. A unicidade e unidade do problema sempre comandaram e ordenaram a multiplicidade de sinais e perspetivas mobilizados, quer se trate de literatura, de obra filosófica, de obra autobiográfica ou de trabalho teatral. Romances, ensaios, memórias, diários, peças de teatro, artigos, entrevistas foram todas escritas com a mesma preocupação de dizer, segundo o momento e possibilidades de cada género, a emergência, a estatura e as implicações do homem interior, convergindo todos para essa alta figura da condição humana. Tal como a complementaridade dos sexos, um exemplo desta correspondência é dada pela relação estabelecida por Abellio entre o romance e o ensaio. Segundo ele, se o ensaio é necessário para que a visão possa aperceber-se da sua própria lucidez e da sua própria transparência para si mesma e da sua capacidade de articular as formas, no romance, género literário nobre e indispensável para ele, a visão pretende "capturar a vida no seu estado nascente", e nele e por meio dele a visão é experiência de uma duração vivida, e convida para o curso e experiência dessa mesma duração. Esta distinção/complementaridade estabelecida entre o ensaio e o romance está metaforicamente referida por ele: se o primeiro é "da ordem do fruto", o segundo é "da ordem do germe."

Obra literária

A obra romanesca, de inspiração e essência metafísica, compõe-se antes de mais de um primeiro romance (Heureux les pacifiques), escrito nos finais da segunda guerra mundial, romance que é o primeiro livro publicado por Abellio e que recebeu o Prix Sainte-Beuve, em 1947, pelo qual se tornou visível e público o pseudónimo Raymond Abellio. Segue-se àquele romance uma trilogia (Les yeux d’Ezéchiel sont ouverts; La fosse de Babel; Visages immobiles) cuja elaboração ocupará Abellio até ao final da sua vida. Estes quatro romances fazem evoluir o narrador (primeiramente chamado Saveilhan, depois chamado Pierre Dupastre), no sentido da descoberta de si – a descoberta do homem interior – ao mesmo tempo que ocupa o centro da ação narrada, tomando parte sem tomar partido no coração da história cujo âmbito espacial assume escala planetária, com o inerente frenesim da turbulência global contemporânea, entre uma série de personagem cada qual encarnando múltiplas nuances e facetas de um tipo metafísico particular: o guerreiro, o sábio, o profeta, o feiticeiro, a mulher "original," a mulher "última ". A peça de teatro Montsegur , cujo tema é a cruzada contra os cátaros, põe em cena dois temas metafísicos determinantes: por um lado o conflito do saber e do poder, por outro lado, o despertar para a compreensão desse conflito e para a consciencialização das questões que lhe são inerentes.

Os ensaios

A série de ensaios – seis no total, a que podemos acrescentar Approches de la nouvelle Gnose que é uma coleção de artigos e prefácios – forma aquilo a que chamamos a obra filosófica de Abellio. À exceção do seu primeiro ensaio, Vers un nouveau prophétisme, que examina a relação que mantiveram, no Ocidente e nos tempos modernos, o sagrado e o profano, o espiritual e o temporal, a espiritualidade e o mundo da política, o profetismo e o poder, e que fornece os traços metafísicos do profeta e mágico, os outros cinco devem ser entendidos em função do lugar que detêm relativamente ao importante trabalho que é La structure absolue. Assim, mesmo o livro intitulado La Bible, un document chifré (2 volumes), publicado anteriormente, e ainda antes da descoberta da estrutura absoluta por Abellio, não é exceção a esta regra de leitura, uma vez que a referida obra, a partir de uma colaboração com Charles Hirsch, viria a ser redesenhada, reformulada, esclarecida e expandida, da maneira a enriquecer-se com as novas possibilidades operatórias da “estrutura absoluta”. O livro será então republicado com o título Introduction à une théorie des nombres bibliques, apresentando-se a nova obra como um ensaio de "numerologia cabalística".

Escrito antes de La structure absolue, mas no momento em que esta já se anunciava a Abellio como a ferramenta de ferramentas, L’Assomption de l’Europe pode ser visto como um trabalho preparatório, sem negligenciar a sua própria especificidade analítica. Nele, Abellio expõe a ligação que estabelece entre o Ocidente, entendido em sentido espiritual, e a emergência da Consciência Transcendental. Neste ensaio, Abellio procede a uma leitura metafísica da história e da política, elevando uma e a outra à categoria, respetivamente, de meta-história e de meta-geopolítica. Quando finalmente os seus pensamentos sobre a estrutura absoluta estavam maduros, Abellio expos no ensaio homónimo, os conceitos básicos da "fenomenologia genética", assim como as análises que tinha empreendido e as implicações ontológicas, antropológicas e teológicas que tinha aprendido, naquela que continua a ser uma das primeiras tentativas para controlar e sistematizar a crescente complexidade das ciências humanas. Quanto ao curto ensaio intitulado La fin de l’esotérisme, trata-se de uma reflexão versando o método de abordagem da mensagem metafísica da tradição universal, a partir da estrutura absoluta. Abellio evoca ali as doutrinas esotéricas, suas aplicações e, principalmente, o modo de cruzá-los (este é o duplo sentido da palavra "fim") pela transfiguração do mundo no homem, via que ele considera ser o destino do próprio Ocidente e da sua racionalidade. Finalmente, Manifeste de la Nouvelle Gnose é uma atualização sobre as descobertas, pesquisas e meditações de Abellio: uma espécie de testamento inacabado, onde uma vez mais são esclarecidos o significado e as implicações do conhecimento, o local da sua realização, o método de fenomenologia abeliana, assim como relações permanentes da gnose com as diferentes áreas de investigação da realidade (ciência, filosofia, religião, simbolismo, história, ética).

As Memórias

No que se refere às Memórias, significativa e genericamente designadas Ma dernière mémoire, são três volumes que cobrem os primeiros quarenta anos de sua vida, eles são o resultado do que Abellio designa por "função de historialização" que permite que a consciência aceder à "segunda memória", isto é, à integração do sentido como marca de água no curso dos acontecimentos de uma vida inteira, sentido que um dia se esclarece para o pensador e, definitivamente, para tudo transfigurar: atos, pensamentos, situações e todas as tranformações do passado, presente e futuro. A escolha de interromper a sua autobiografia em 1947, explica-se pelo fato de que esse foi o momento do segundo nascimento de Abellio graças ao qual ele começou sua jornada gnóstica para lá dos eventos e dos enredos. Adicionemos a este domínio os textos que versam sobre o curso e o sentido de uma vida, como Journal de 1971, experiência única para Abellio que só está interessado no significado e não nos enredos diários, é verdadeiro desafio lançado para procurar e encontrar uma "ordem oculta" por trás "do aparente caos da vida quotidiana, tanto física como mentalmente."

Outras formas de expressão escrita

Devemos mencionar em primeiro lugar os textos escritos para o Círculo de Estudos Metafísicos[3], uma parte dos quais ("Dialectique de l’initiation") foi retomado e reformulado em La structure absolue. A outra parte é formada por editoriais, artigos e relatórios e foi publicada no Journal intérieur desse mesmo Círculo. Alguns desses editoriais foram incluídos no Cahier de l’Herne, nº 36, dedicado a Abellio. Encontramos nesse livro, também, alguns textos fundamentais de Abellio ("Le postulat de l’interdépendance universel", "Fondements d’esthétique", "Fondements d’éthique", "Fondements de cosmologie") e uma edição parcial de um Journal de Suisse dedicado ao ano de 1951.

Abellio escreveu muitos artigos em várias revistas e algumas revistas, nós não os mencionaremos aqui e a esse propósito reenviamos para a bibliografia que figura em Actes du Colloque de Cérisy, ou àquela que se encontra no livro De la Polítique à la gnose (entrevistas com Marie-Thérèse de Brosses). Três revistas consagradas à obra de Raymond Abellio, no entanto, devem ser mencionadas, por causa da importância dos artigos que nelas figuram: Études abelliennes (publicado pela Associação de Amigos do Raymond Abellio, apareceram quatro números entre 1979 e 1982), Cahiers Raymond Abellio (2 números publicados em 1983 e 1984) e o número 72 da revista Question de, intitulado "La structure absolue". Paralelamente, inúmeros debates e entrevistas (imprensa, rádio ou audiovisual) foram registados. Mencionamos apenas o mais consistente, formando um trabalho completo: De la Politique à la gnose (entrevistas conduzidas por Marie-Thérèse de Brosses) que contêm ainda o texto de uma das conferências fundamentais de Raymond Abellio ("Genéalogie et transfiguration de l’Occident"), por sinal proferida na Biblioteca Nacional de Lisboa, em 31 de Maio de 1977; Dialogue avec Raymond Abellio (dirigido por Jean-Pierre Lombard), Portrait programa (1973) para "Archives of XXº siècle", com Dominique de Roux e J.-J. Marchand; emissão (1977) l’Homme en question, produzido por Roger Pillaudin cujo nº 1 de Études abelliennes reproduz a apresentação de Abellio por si próprio. Abellio também escreveu numerosos prefácios, um deles ao livro Le Cinquième Empire, de Dominique de Roux, publicado pela Belfond, em 1977, de que existe tradução portuguesa, O Quinto Império, editada pela Delraux, em 1977. Lembramos ainda que uma seleção de artigos e prefácios foram coletados por Philippe Camby na obra Approches de la nouvelle Gnose.

Espólio Raymond Abellio e correspondência

Após uma compra ocorrida em 1983, a Biblioteca Nacional da França detém um considerável espólio de Abellio que consiste em manuscritos e textos datilografados, mas também uma importante correspondência. Uma pequena parte do que foi publicado aqui e ali em revistas consagradas a Abellio, ou em livros escritos por um ou outro dos seus correspondentes, ou a eles dedicado. Assinalamos, finalmente, que Abellio foi diretor de coleção em três grandes editoras: Grasset (coleções "Corresnopndances"); Publications Premières (Coleção "En marge"); Fayard (Coleção "Recherches avancées".

Obras publicadas

Com a assinatura de Georges Soulès

  • La Fin du nihilisme - ensaio, 1943, Ed. Fernand Sorlot (em colaboração com André Mahé)

Com a assinatura de Raymond Abellio

  • Heureux les pacifiques - romance, 1947, Éd. Flammarion, Prémio Sainte-Beuve.
  • Vers un Nouveau Prophétisme - ensaio, Éd. Gallimard, 1947, 1950, 1963. Tradução portuguesa Para um novo profetismo, Ed. Arcádia, 1975.
  • Les yeux d'Ézéchiel sont ouverts - ensaio, Éd. Gallimard, 1949. Tradução portuguesa Os olhos de Ezequiel estão abertos, 1ª edição, Ulisseia, 1978; 2ª edição, Arcádia, 2010.
  • La Bible, document chiffré, ensaio, Éd. Gallimard, 1950 (2 vol.).
  • Assomption de l’Europe, ensaio, Au Portulan, Éd. Flammarion, 1954; 2ª edição, Flammarion, 1978.
  • La fosse de Babel - romance, Éd. Gallimard, 1962.
  • La Structure absolue - ensaio, Col. "Bibliothèque des Idées", Éd. Gallimard, 1965
  • Ma dernière mémoire - autobiografia; Vol. I, Un faubourg de Toulouse (1907-1927), Éd. Gallimard, 1972
  • Ma dernière mémoire - autobiografia; Vol. II, Les militants (1927-1939), Éd. Gallimard, 1975
  • Ma dernière mémoire - autobiografia; Vol. III, Sol Invictus, Pauvert chez Ramsey, 1980 (vencedor do prémio Deux-Magots)
  • Dans une âme et un corps - Diário 1971, Éd. Gallimard, 1973.
  • La fin de l'ésotérisme - ensaio, Éd. Flammarion, 1973.
  • Approches de la nouvelle gnose - ensaio, Éd. Gallimard, 1981.
  • Montségur - teatro, Éd. L'Âge de l'homme, 1982.
  • Visages immobiles - romance, Éd. Gallimard, 1983.
  • Introduction à une théorie des nombres bibliques - ensaio, em colaboração com Charles Hirsch, Éd. Gallimard, 1984
  • Manifeste de la nouvelle gnose - ensaio, Éd. Gallimard, 1989.

Sobre a obra e sobre o homem

  • Raymond Abellio présenté par Nicolas Roberti http://podcast.rcf.fr/emission/130544/191299
  • Jean-Pierre Lombard (sous la direction de), Raymond Abellio, Cahiers de L'Herne n°36, 1979
  • Colloque Raymond ABELLIO Aujourd'hui, Cahiers de l'Hermétisme, Éditions Dervy, 2004 Centre Culturel International de Cerisy-La-Salle, 2002.
  • Yves Branca, Sol Invictus. Pour le centenaire de Raymond Abellio, DVX, 2008
  • Jean Parvulesco, Le Soleil rouge de Raymond Abellio, Guy Trédaniel, collection « Initiation et pouvoir »
  • Marc Hanrez, Sous les signes d'Abellio, Lausanne, l'Âge d'Homme, 1976 (essai d'analyse littéraire)
  • Éric Conan et Henry Rousso, Vichy, un passé qui ne passe pas, Fayard, Paris, 1994. (ISBN 2-213-59237-3)
  • Jeannine Verdès-Leroux, Refus et violences : politique et littérature à l'extrême droite des années trente aux retombées de la Libération, Gallimard, Paris, 1996. (ISBN 2-07-073224-X)
  • Christine Tochon-Danguy, Les Romans de Raymond Abellio : une interprétation imaginaire de la crise contemporaine, thèse de doctorat, histoire, Grenoble 2, 1996.
  • Éric Coulon, Rendez-vous avec la connaissance, la pensée de Raymond Abellio, Éditions Le Manuscrit, 2005.
  • Cahiers de l'Hermétisme, Magie et Littérature, Albin Michel. Un article de Viviane Couillard-Barry : « Raymond Abellio aurait-il parlé de magie ? (ou la magie dans Visages immobiles, son dernier roman) »
  • Marie-Thérèse de Brosses, Entretiens avec Raymond Abellio, Éditions Pierre Belfond, Paris, 1966
  • Marie-Thérèse de Brosses, De la politique à la gnose, entretiens avec Raymond Abellio, Éditions Pierre Belfond, 1987
  • Question de (numéro 53), La Gnose éternelle, « La voie gnostique selon Abellio », par Robert Amadou.
  • Question de (numéro 72), La Structure absolue.
  • Dialogue avec Raymond Abellio, Jean-Pierre Lombard, Éditions Lettres Vives, 1985
  • Le Monde du 1er octobre 1971, « La Renaissance de l'occultisme: une nouvelle définition de l'homme et ses pouvoirs ».
  • Nicolas Roberti-Serebriakov, L’itinéraire d'un gnostique français — Georges Soulès, dit Raymond Abellio — étude critique historique, psychologique et philosophique, thèse de doctorat de Philosophie et de Sciences religieuses (EPHE, Sorbonne, 2003).
  • Nicolas Roberti, Raymond Abellio, T.1. Un gauchiste mystique, T.2 La structure et le miroir, L'Harmattan, 2011.

Ver também

  • Entrevista com Raymond ABELLIO, por Jérémie A. WEISH et Philippe PISSIER, Archives Sonores Blockhaus, 1985
  • Programa televisivo « L’homme en question », apresentado por Roger Pillaudin, Sessão nº1, 1977, INA (distrib.), Paris.
  • Programa televisivo « Les Révolutionaires », 1975, apresentado por Bernard Pivot.
  • Extratos de "Entretien avec Raymond Abellio", Kabbale en Ligne.
  • Sítio dos Encontros Raymond Abellio(em francês)

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Notas e referências

  1. Pascal Ory, "Les Collaborateurs", collection Points histoire, le Seuil, Paris, 1980, p. 100
  2. Abellio publicou a sua biografia em De la Politique à la gnose (entrevista com Marie-Thérèse de Brosses)
  3. Fundado em finais de 1953 a pedido de dois estudantes, Jean Largeault e Bernard de Noel, este grupo de investigação filosófica em que Raymond Abellio participará ativamente durou até 1955