Sindemia

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Sindemia caracteriza a interação mutuamente agravante entre problemas de saúde em populações em seu contexto social e econômico. O conceito foi cunhado por Merrill Singer a partir de estudo sobre o entrelaçamento entre a síndrome da imunodeficiência adquirida e a violência em cidades estadunidenses. Problemas de saúde e sociais se agrupam em comorbidade crescente a partir de fatores sociais, psicológicos e biológicos, embora os agravos à saúde sejam enfermidades crônicas não transmissíveis.[1][2]

Sindemia global da fome, obesidade e mudanças climáticas[editar | editar código-fonte]

No início de 2019, o relatório "A Sindemia Global da Obesidade, da Desnutrição e das Mudanças Climáticas" foi lançado pela Comissão de Obesidade do periódico The Lancet na Conferência PMAC 2019, realizada na Tailândia. O relatório denominou de "sindemia global" a combinação sinérgica entre pandemias da fome, da obesidade e da mudança climática, as três decorrentes, principalmente, do sistema agroalimentar global.[3][4][5][6][7] Nessa sindemia global, problemas de saúde pública que coexistem na maioria dos países do mundo atualmente combinam-se sinérgicamente e são produzidas consequências tanto para a saúde humana quanto para o meio ambiente.[8]

A desnutrição, a obesidade e as mudanças climáticas, quando combinadas, constituem uma sindemia visto que coexistem no tempo e espaço, bem como compartilham determinantes, como aqueles presentes nos sistemas de alimentação, transporte, desenho urbano e uso do solo. Os fatores que compõem tal sindemia global ainda interagem entre si, produzindo sequelas complexas.[8][9]

As pandemias de desnutrição e obesidade são formas da má nutrição, que também inclui carências nutricionais específicas, sobrepeso e doenças crônicas não transmissíveis. Há um amplo reconhecimento de que o sistema agroalimentar global impulsiona a má nutrição, além de ser um dos principais contribuintes para mudanças climáticas, uso da terra, poluição da água e do ar — gerando cerca de 25 — 30% das emissões de gases do efeito estufa, sendo a produção de gado a principal responsável pelas emissões.[8][9]

Esquema das interações na sindemia global de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas

Sistemas alimentares são formados por um conjunto de fatores do processo alimentar, desde as etapas de produção, processamento e distribuição até o consumo de alimentos e o seu impacto socioeconômico e ambiental.[9] Contribuem no desdobramento de adversidades climáticas e ambientais da mesma forma que são, também, afetados por estas.[9]

Considera-se um sistema alimentar sustentável aquele que, além de reconhecer o acesso à alimentação como direito fundamental, possui a capacidade de manter-se por longo prazo sem comprometer ecossistemas, economias e a segurança alimentar e nutricional dos indivíduos.[9]

Os sistemas alimentares dominantes possuem íntima relação com o padrão de consumo alimentar dos indivíduos. Do mesmo modo que o sistema alimentar disponibiliza os alimentos para o consumo, compondo a dieta e as preferências alimentares, estas criam demandas que direcionam os sistemas alimentares.[9][10] Assim, as preferências alimentares são responsáveis por guiar o processo de produção, fomentando um sistema alimentar específico.[9]

O sistema alimentar dominante decorre de escolhas políticas e econômicas, que moldam os sistemas naturais e resultam nas pandemias de obesidade, de desnutrição e de mudanças climáticas predominantes em todo o mundo. A interação simultânea dos fatores que constituem a sindemia global tem como efeito a influência mútua entre eles. Eventos climáticos podem, por exemplo, afetar a agricultura e a segurança alimentar de uma ou mais populações. Da mesma forma, a desnutrição na infância está associada a maior risco de incidência de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis na idade adulta.[8]

No Brasil, de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) realizada nos anos de 2017 e 2018, 4,9% da população (10,3 milhões de pessoas) viviam sob condições de insegurança alimentar grave.[11] Paralelamente, dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) realizada em 2019 mostram que 25,9% da população acima de 18 anos (41,2 milhões de pessoas) estavam obesas.[11] A associação entre má nutrição e alimentação não saudável culminam no avanço das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) e resultam em impacto socioeconômico negativo, através de gastos despendidos com sistemas de saúde (no caso, o Sistema Único de Saúde, SUS) que são sobrecarregados pelas duas vias.[11] Além disso, a insustentabilidade do sistema de produção de alimentos atual está intimamente ligada à emissão de gases de efeito estufa, que contribuem diretamente para as mudanças climáticas.[11]

Pandemia de COVID-19 como sindemia[editar | editar código-fonte]

Em setembro de 2020, durante a pandemia por COVID-19, Richard Horton, editor-chefe do The Lancet, publicou um comentário neste periódico dizendo que a vulnerabilidade dos cidadãos a esta doença permitia concluir que o surgimento de um tratamento ou vacina protetora, por mais eficaz, falharia.[12] Esta vulnerabilidade era observada entre os mais idosos, em pessoas de comunidades étnicas negras, asiáticas e minoritárias, e em trabalhadores que eram comumente mal pagos e recebiam menos proteções de bem-estar. O pesquisador argumentou que o avanço da COVID-19 deveria ser entendido então como uma sindemia, e a busca por uma solução para a doença não deveria ser puramente biomédica, mas seria necessária maior atenção às doenças não transmissíveis (DNT) e à desigualdade socioeconômica.[12]

Horton observou grande interação entre a infecção pelo SARS-CoV-2 e DNT em populações específicas, de modo que combater a COVID-19 implicava em também combater a hipertensão, a obesidade, a diabetes, as doenças cardiovasculares, as doenças respiratórias crônicas e o câncer.[12] Entretanto, as DNT são uma causa negligenciada de problemas de saúde nos países mais pobres. Em conclusão, Horton afirmou que a menos que os governos elaborassem políticas e programas para reverter suas profundas desigualdades sociais e econômicas, incluindo os países desenvolvidos, o mundo nunca estaria verdadeiramente protegido da COVID-19.[12]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. «Sindemia: una nueva categoría que reúne lo social y lo biológico». IntraMed. 7 de maio de 2017. Consultado em 2 de outubro de 2019 
  2. Codeço, Cláudia Torres; Coelho, Flávio Codeço (dezembro de 2008). «Redes: um olhar sistêmico para a epidemiologia de doenças transmissíveis». Ciência & Saúde Coletiva. 13 (6): 1767–1774. ISSN 1413-8123. doi:10.1590/S1413-81232008000600011 
  3. «Sindemia global: obesidade, desnutrição e mudanças climáticas podem ter a mesma causa». Comida de verdade. Consultado em 2 de outubro de 2019 
  4. «Relatório sobre sindemia global ganha versão em português». idec.org.br. Consultado em 2 de outubro de 2019 
  5. «» Relatório sobre Sindemia Global ganha versão em português CRN5». Consultado em 2 de outubro de 2019 
  6. «Obesidade, desnutrição, mudanças climáticas: três faces de uma mesma questão». 19 de agosto de 2019. Consultado em 2 de outubro de 2019 
  7. «Quais as vantagens e os problemas dos hambúrgueres veganos». Nexo Jornal. Consultado em 2 de outubro de 2019 
  8. a b c d Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the Lancet Comission Report. Lancet [online]. 2019 [acesso em 10 Jul 2022]. 393:791-846. Disponível em: https://www.thelancet.com/commissions/global-syndemic
  9. a b c d e f g Marchioni DM, Carvalho AM, Villar BS. Dietas sustentáveis e sistemas alimentares: novos desafios da nutrição em saúde pública. Rev USP [online]. 2021 [acesso em: 10 Jul 2022]. 128:61-76. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/185411/171516
  10. Peres J, Matioli V, Swindurn, B. Boyd Swinburn, a sindemia global e a classificação NOVA. Cad Saúde Pública [online]. 2021 [acesso em: 10 Jul 2022]. 37(Supl. 1):1-7. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/dFdBzBbCFtsmYkmmmWfqJZG/?format=pdf&lang=pt
  11. a b c d Machado DA, Bertolini AM, Brito LS, Amorim MS, Gonçalves MR, Santiago RA, et al. O papel do sistema único de saúde no combate à sindemia global e no desenvolvimento de sistemas alimentares sustentáveis. Ciênc Saúde Colet [online]. 2021 [acesso em 10 Jul 2022]. 26(10):4511-4518. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/X85SHrxL7tHdcppJspKd5mb/?format=pdf&lang=pt
  12. a b c d Horton, Richard (setembro de 2020). «Offline: COVID-19 is not a pandemic». The Lancet (10255). ISSN 0140-6736. PMID 32979964. doi:10.1016/s0140-6736(20)32000-6. Consultado em 2 de outubro de 2020 

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

  • Mendenhall, E. Syndemics: a new path for global health research. The Lancet 2017; 389(10072): 889-891.
  • Mendenhall, E and Singer, M. What constitutes a syndemic? Methods, contexts, and framing from 2019. Current Opinion in HIV and AIDS 2020; 15(4), 213-217.
  • Singer, MC. Introduction to syndemics: a systems approach to public and community health. Jossey-Bass, San Francisco, 2009.
  • Singer, MC and Clair, S. Syndemics and public health: reconceptualizing disease in bio-social context. Med Anthropol Q. 2003; 17: 423-441
  • Singer, M, Bulled, N, Ostrach, B and Mendenhall, E. Syndemics and the biosocial conception of health. The Lancet 2017; 389(10072): 941-950.

Ligações externas[editar | editar código-fonte]