Sulear

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

O termo sulear problematiza e contrapõe o caráter ideológico do termo nortear (norte: acima, superior; sul: abaixo, inferior), dando visibilidade à ótica do sul como uma forma de contrariar a lógica eurocêntrica dominante a partir da qual o norte é apresentado como referência universal.[1]

O vocábulo é um posicionamento crítico às representações geradas pelas referências espaciais e de orientação entre o eixo Norte-Sul e as tensões oriundas dessa relação. Tais representações transcendem para as leituras do mundo, os pontos de vista, através da História, da Geografia, da Literatura e das falas que marcam as percepções do entorno.[2]

Origem[editar | editar código-fonte]

Em 1991, o físico brasileiro Marcio D’Olne Campos publicou o texto “A Arte de sulear-se”,[3] no qual, pela primeira vez, fez menção aos termos "sulear-se" e "suleamento". Nessa publicação, Marcio Campos questiona a demarcação de certos espaços e tempos, períodos e épocas da História Universal e da Geografia que foi imposta pelos países considerados centrais no planeta.

No que se refere à orientação espacial, por exemplo, sobretudo com relação aos pontos cardeais, as regras práticas ensinadas são práticas apenas para quem se situa no hemisfério norte e a partir de lá se norteia. Tal perspectiva influenciou diretamente na elaboração dos globos terrestres, mapas e materiais didáticos, nos quais o hemisfério norte sempre foi apresentado para cima, em uma posição superior ao sul.

Marcio Campos afirma que “em qualquer referencial local de observação, o Sol nascente do lado do oriente permite a orientação. No hemisfério norte, a Estrela Polar, Polaris, permite o norteamento. No hemisfério sul, o Cruzeiro do Sul permite o ‘suleamento’”.[3] E problematiza: “Apesar disto, em nossas escolas, continua a ser ensinada a regra prática do norte, ou seja, com a mão direita para o lado do nascente (leste), tem-se à esquerda o oeste, na frente o norte e atrás o sul, com essa pseudo-regra-prática dispomos de um esquema corporal que, à noite, nos deixa de costas para o Cruzeiro do Sul, a constelação fundamental para o ato de ‘sulear-se’. Não seria melhor usarmos a mão esquerda apontada para o lado do oriente?”.[3]

Mapa invertido

Ao defender que é preciso insistir a regra de colocar a mão esquerda apontando para o lado do nascente ou oriente e assim olharmos para o sul no ato de ‘sulear’, Marcio D’Olne Campos explica que a regra de orientar para o lado do oriente significa continuar olhando para o norte e para os seus habitantes norteados, mantendo uma regra que nos desnorteia. Suleando “integramos esquema corporal e lateralidade de uma forma coerente entre o céu e a terra, percebendo o nosso horizonte, o nosso ambiente”.[4]

Essas propostas reflexivas ilustradas no campo espacial e de orientação transcendem para outras áreas de forma intersdisciplinar buscando ressignificar a imposição dessas convenções em nosso hemisfério e questionar esse “caráter apenas informativo e livresco impresso à Educação nos países periféricos, ou seja, do terceiro mundo”.[2] Marcio D’Olne ressalta, ainda, a notável “presença da conotação ideológica nos referenciais do Norte com os quais carregamos o germe da dominação. Este germe explicita-se com frequência nas oposições do tipo: Norte/Sul, acima/abaixo, subir/descer, superior/inferior, central/periférico, desenvolvido/em desenvolvimento”.[2]

Paulo Freire e o sulear[editar | editar código-fonte]

Em 1992, Paulo Freire, grande educador, pedagogo e filósofo brasileiro, faz uso do vocábulo “suleá-los” em oposição ao verbo nortear na página 15 do livro Pedagogia da Esperança, que propõe “Um reencontro com a pedagogia do oprimido”.[5] Apesar do termo não constar nos dicionários da língua portuguesa, Freire chama a atenção para a conotação ideológica dos termos nortear, norteá-lo, nortear-se, orientação, orientar-se e outras derivações, citando como referência o físico Marcio D’Olme Campos.

Naquela época, Paulo, Ana Maria Araújo Freire e Marcio O’lme Campos mantinham vários diálogos sobre a oposição nortear/sulear e esse interesse gerou a elaboração da nota 15 situada na página 218 do livro: ’15. “Suleá-los” ‘.[5] “Quem primeiro alertou Freire sobre a ideologia implícita em tais vocábulos, marcando as diferenças de níveis de 'civilização' e de 'cultura', bem ao gosto positivista, entre o hemisfério Norte e o Sul, entre o 'criador' e o 'imitador', foi o físico supracitado – Marcio Campos – atualmente dedicado à etnociência, à etnoastronomia e à educação ambiental”.[6]

Ao procurar entender seus alunos-interlocutores a partir do lugar de fala deles, Freire faz autocrítica ao fato de nem sempre se transportar para o referencial de pensamento-ação dos alunos durante o diálogo e, no corpo do texto, afirma que “apesar de alguns anos de experiência como educador, com trabalhadores urbanos e rurais, eu ainda quase sempre partia de meu mundo, sem mais explicação, como se ele devesse ser o 'sul' que os orientasse. Era como se minha palavra, meu tema, minha leitura do mundo, em si mesmas, tivessem o poder de ‘suleá-los’” (pág. 15).[6]

Ainda na nota 15 do livro, Freire faz uma série de questionamentos baseados nas “observações-denúncias do prof. Márcio Campos perguntando-nos com a intenção de provocar-nos a reflexão: ‘virar as costas’ ou virar ‘de costas’ ou nos deixar de costas  para o Cruzeiro do Sul – signo da bandeira, símbolo brasileiro, ponto de referência para nós – não seria uma atitude de indiferença, de menosprezo, de desdém para com as nossas próprias possibilidades de construção local de um saber que seja nosso, para com as coisas locais e concretamente nossas? Por que isso? Como surgiram e se perpetuaram entre nós? A favor de quem? A favor de quê? Contra quê? Contra quem nessa forma de ler o mundo?”.[6]

Marcio O’lme Campos reconhece a importância do educador Paulo Freire e compreende o porquê de alguns estudiosos atribuírem a ele a criação do termo/verbo sulear. No entanto, ressalta que o que ele fez com a sua sabedoria foi valorizá-lo, tornando-o mais rico e difundido.[5]

O termo “sulear”, na concepção de Paulo Freire, é associado, especificamente, à epistemologia do saber com a defesa e valorização da identidade nacional e do contexto local dos estudantes no processo educacional e de leitura do mundo. Sulear pensamentos e práticas é uma perspectiva que se anuncia no pensamento freireano para fortalecer a construção de práticas educativas emancipatórias.

Em 2008, foi lançado o Dicionário Paulo Freire,[7] organizado por Streck, Redin e Zitkoski, com o objetivo de explicitar palavras utilizadas nas obras do educador, auxiliando a entender seu entorno teórico-prático. No dicionário, dentro da entrada do verbete sulear, Adams explica que, para Freire, os projetos e planos autônomos, geralmente inviabilizados, deveriam ter espaço no lugar dos esquemas e receitas importadas. Além disso, o termo se contrapõe a esses “processos de cópias de modelos estrangeiros que continuam até os nossos dias, em todas as áreas da organização social, inclusive na linguagem”.[1]

Nessa perspectiva, Freire convoca nosso olhar para os elementos suleadores, contra-hegemônicos, para denunciar a suposta neutralidade epistemológica de uma ciência atrelada aos interesses capitalistas, quase sempre produzidos nos países do norte.

A Linguística Aplicada e as "vozes do Sul"[editar | editar código-fonte]

Inspirados na pedagogia emancipatória difundida por Paulo Freire e em estudos sobre a descolonização do conhecimento, a busca por novas epistemologias do saber, desenvolvidos por Edgardo Lander,[8] Walter Mignolo,[9] Aníbal Quijano,[10] Arturo Escobar,[11] Boaventura de Sousa Santos,[12] Enrique Dusell,[13] entre outros, pesquisadores da Linguística Aplicada começaram a discutir a necessidade de construir, dentro da área, conhecimentos que contemplassem outras vozes.

Diante disso, Moita Lopes destaca a necessidade de “ouvir e aprender com as vozes do Sul”,[12] isto é, considerar aqueles que realmente experienciam as práticas sociais e tentar entender a vida social a partir da perspectiva dessas vozes marginais.[14]  A proposta é “trazer outras vozes latino-americanas, afim de ‘sulear’ (orientar para o sul) o debate e questionar a hegemonia ocidental do Norte, ainda imperante na definição dos nossos problemas de pesquisa”.[15]

Sulear, na Linguística Aplicada, significa redirecionar a natureza da formulação dos problemas de pesquisa e participar socialmente a partir de trabalhos sobre sexo e gênero, racismo, proletarização do professor, a exclusão e o ensino na escola pública, a interculturalidade na produção de textos escolares, na formação de docentes, nos currículos da escola. Temas estes atraentes para linguistas aplicados que querem olhar, com olhos do Sul, para o Sul, de uma posição de vantagem porque é fronteiriça e ao mesmo tempo exterior, ocupando, assim, uma terceira, diferente e privilegiada posição.[15]

"América Invertida" de Joaquín Torres García[editar | editar código-fonte]

213.993x213.993px

Apesar de o termo sulear haver sido utilizado, pela primeira vez, na década de 90, pelo físico brasileiro Marcio D’Olne Campos,  e difundido, depois, no campo educacional por Paulo freire, o uruguaio Joaquín Torres García propôs uma metáfora, que antecipava a perspectiva do suleamento, desenhando, em 1943, o mapa da América de cabeça para baixo, mostrando o mundo de outra perspectiva.

“Nosso norte é o Sul. Não deve haver norte, para nós, senão por oposição ao nosso Sul. Por isso agora pomos o mapa ao revés, e então já temos a exata ideia de nossa posição, e não como querem no resto do mundo. A ponta da América, desde agora, prolongando-se, assinala insistentemente o Sul, nosso Norte”,[16] escreveu Torres García.

Em sua obra, Torres García compôs um poderoso “símbolo de afirmação de uma identidade cultural[17] e defendeu a criação de uma Escuela del Sur, buscando a valorização da nossa cultura, indo de encontro à constante busca da globalização de ‘homogeneizar’ os povos, com a super valorização de tudo que é próprio ao hemisfério norte, e ilustrando uma necessidade latino-americana de buscar caminhos próprios.[18]

A proposta não era fazer com que os do sul se tornassem os detentores do poder no continente, mas sim passar a olhar pra nós mesmos, de forma diferente. Ocupando uma nova posição no mundo, um lugar de destaque. Onde tudo que é nosso, que vem do Sul, passa a ser o nosso norte.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. a b ADAMS, T.(2008) Sulear (verbete). In D. Streck, E. Redin, & J. J. Zitkoski (org). Dicionário Paulo Freire (pp. 396 – 398). Belo Horizonte: Editora Autêntica.
  2. a b c CAMPOS, M. D. SULear vs NORTEar: Representações e apropriações do espaço entre emoção, empiria e ideologia. Série Documenta, ano VI, n. 8. EICOS, Cátedra UNESCO de Desenvolvimento Durável, Instituto de Psicologia, UFRJ, Rio de Janeiro, 1999, p. 41-70. http://www.sulear.com.br/texto03.pdf
  3. a b c CAMPOS, M. D.. A arte de Sulear-se. In: SCHEINER, Teresa Cristina (Coord.). Interação museu-comunidade pela educação ambiental. Rio de Janeiro: UNIRIO/TACNET (mimeo), 1991. p. 56-91. http://sulear.com.br/beta3/wp-content/uploads/2017/03/CAMPOS-M-D-A-Arte-de-Sulear-1-1991A.pdf
  4. D'OLNE CAMPOS, Marcio; "A Arte de Sulear-se: Atividades" In: SCHEINER, Teresa Cristina (Coord.).  Interação Museu-Comunidade pela Educação Ambiental, Manual de apoio a Curso de Extensão Universitária, pp. 79-84, TACNET Cultural UNIRIO, Rio de Janeiro, 1991. http://sulear.com.br/beta3/wp-content/uploads/2017/03/CAMPOS-M-D-A-Arte-de-Sulear-2-Ativs-1991.pdf
  5. a b c CAMPOS, M. D. Paulo Freire adere ao SULear (extratos), SULear, Rio de Janeiro, 2017. http://www.sulear.com.br/textos/p_freire_sulear.pdf
  6. a b c FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. São Paulo, SP, Paz e Terra.1992.
  7. STRECK, R. Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, José Jaime (Orgs). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
  8. LANDER, E. Ciencias sociales: saberes coloniales y eurocéntrico. In: LANDER, E. (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. CLACSO, Buenos Aires, p. 1-30, 2000.
  9. MIGNOLO, Walter D. Histórias locais-projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Ed. UFMG, 2000.
  10. QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, E. (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. CLACSO, Buenos Aires, p. 201-246, 2000.
  11. ESCOBAR, Arturo. El lugar de la naturaleza y la naturaleza del lugar:¿ globalización o postdesarrollo. LANDER, E. (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. CLACSO, Buenos Aires, p. 113-143, 2000.
  12. a b SOUSA SANTOS, B. Fórum Social Mundial: Manual de Uso. São Paulo: Cortez Editora, 2004.
  13. DUSSEL, Enrique. Transmodernidad e Interculturalidad (Interpretación desde la Filosofía de la Liberación). In: FORNET-BETANCOURT, Raúl. Crítica intercultural de la filosofía latinoamericana actual. Madrid: Trotta, 2004, p. 123-160.
  14. MOITA LOPES, L.P. Linguística Aplicada e Vida Contemporânea: Problematização dos Construtos que Têm Orientado a Pesquisa. In: MOITA LOPES, L.P. Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Editora Parábola, 2006.
  15. a b KLEIMAN, A. Agenda de pesquisa e ação em Linguística Aplicada: problematizações. In: MOITA LOPES, L. P. Linguística Aplicada na modernidade recente: festschrift para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola, 2013.
  16. GARCÍA, J.T. Universalismo Constructivo, lección 30, La Escuela del Sur, pág. 193, Madrid: Alianza Editorial, 1943.
  17. MARMELO, M. M. S. “América Invertida” de Joaquín Torres García: uma análise e reflexão. (1943) http://mariamarmelo.weebly.com/uploads/2/5/9/8/25988485/america_invertida.pdf
  18. COSTA, M. L. C. de C. O mapa de ponta-cabeça. Proceedings of World Congress of Communications and Arts, v. 1, n. 1, p. 193-197, 2011. https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/134669/ISSN2317-1707-2011-01-01-193-197.pdf?sequence=1

Ligações externas[editar | editar código-fonte]