Desoxigenação oceânica
A desoxigenação oceânica, fenômeno também conhecido pelo seu nome técnico hipóxia oceânica, é descrita pela redução do nível de gás oxigênio (O2) dissolvido nas águas marinhas. Pode ocorrer naturalmente, mas suas principais causas derivam das atividades humanas, entre elas destacadamente o uso de fertilizantes agrícolas, que acabam carregados para o mar e ali desencadeiam várias reações adversas, e as crescentes emissões de gás carbônico (CO2) para a atmosfera, pela queima de combustíveis fósseis, desmatamento e processos industriais, emissões que tem sido ao mesmo tempo o principal gerador do aquecimento global.
Nas últimas décadas tem sido cada vez mais marcante a interferência humana nas propriedades físicas e químicas das águas de todos os oceanos do mundo, causando um problema de vastas repercussões negativas para a vida marinha em múltiplos níveis e, por consequência, para o bem estar da população humana e para a economia das nações, representando uma das mais importantes causas de declínio da biodiversidade marinha e de degradação de seus ecossistemas, e um dos mais sérios desafios encontrados no manejo dos recursos oceânicos. A desoxigenação ocorre mais acentuadamente nas zonas costeiras e já tem sido objeto de numerosos estudos, mas o fenômeno ainda requer mais pesquisa para uma melhor estimativa dos seus efeitos e compreensão das suas interações com outras ameaças ambientais. As projeções indicam que deve ocorrer um agravamento do problema no futuro próximo se as tendências continuarem inalteradas.
Os níveis críticos
[editar | editar código-fonte]A definição de uma condição de desoxigenação é um tanto controversa, devido à diferente capacidade dos seres marinhos de responder às variações nas concentrações dos gases dissolvidos na água. Muitos estudos indicam que a desoxigenação ocorre quando o oxigênio desce para uma faixa que vai de 0,28 mg/litro a 4 mg/litro, mas a maioria dos especialistas considera o valor de 2 mg/litro ou mais baixo como definidor do quadro de hipóxia (do grego hypó, menos, e óxis, oxigênio). Este nível desencadeia o colapso das populações de peixes, mas outros organismos sofrem antes de esta faixa ser atingida. Outras condições biológicas, químicas e físicas podem fazer os níveis letais ou sub-letais variarem.[1][2] O fenômeno é mais estudado nas águas costeiras, e ainda pouco se sabe sobre sua ocorrência e efeitos em alto mar.[3] A desoxigenação ou hipóxia se distingue tecnicamente da anóxia (do grego a, nada, e óxis, oxigênio), quando o oxigênio chega ao nível zero, embora esta seja apenas a forma extrema da desoxigenação.
Causas
[editar | editar código-fonte]Naturais
[editar | editar código-fonte]Em algumas zonas dos oceanos ocasionalmente ocorrem mudanças naturais que levam à desoxigenação. Um fator comum são os ciclos de proliferação de algas microscópicas (fitoplâncton), as chamadas "marés vermelhas", "marés verdes" (ou de outras cores, conforme o organismo envolvido), que podem consumir a maior parte do oxigênio disponível, levando à redução dos seus níveis. Outras vezes a desoxigenação ocorre em zonas de estuários, onde se forma temporariamente uma camada de água doce sobre a água salgada, impedindo as trocas de gases desta com a superfície, podendo desoxigená-las. Zonas geograficamente fechadas como os fundos de fiordes também podem ter uma limitada circulação natural entre as camadas superiores e inferiores de água, dificultando as trocas gasosas.[4][5][6]
Humanas
[editar | editar código-fonte]Os principais fatores para a desoxigenação por causa humana são as descargas de fertilizantes, esgotos e lixo orgânico, carregados pelos rios contaminados ou lançados diretamente no mar em zonas costeiras,[4][7] e a impregnação com as crescentes taxas de gás carbônico (CO2) atmosférico, derivado principalmente da queima de combustíveis fósseis, um efeito relacionado ao aquecimento global.[8][9]
Os fertilizantes, especialmente os compostos fosfatados e nitrogenados, servem como nutriente para espécies vegetais, estimulando o seu crescimento e multiplicação. Originalmente concebidos para uso na agricultura, acabam lixiviados pelas chuvas nos campos, e se infiltram para os aquíferos subterrâneos ou são levados para os rios, e dali encontram seu destino final nos mares. Assim como fazem as plantas terrestres crescer e se multiplicar, têm efeito comparável sobre o fitoplâncton e outros microrganismos marinhos, que aproveitam esta grande fonte de nutrientes e se multiplicam exponencialmente, consumindo muito oxigênio neste processo. Um papel similar é desempenhado pelos esgotos domésticos, alguns efluentes industriais e o lixo orgânico, que constituem uma oferta excepcional de nutrientes, funcionando em última análise também como fertilizantes para as populações microscópicas, como as bactérias saprófitas, fazendo com que se multipliquem e esgotem o oxigênio. A essa oferta excessiva de nutrientes se dá o nome de eutrofização, termo derivado do grego eu, bom, e trophos, alimentação.[4][6]
Ao mesmo tempo, o crescimento das algas e microrganismos estimula a multiplicação de espécies que se alimentam deles, inflando a cadeia alimentar e produzindo um grande aumento na biomassa do ecossistema. Esses seres multiplicados em algum momento vêm a morrer, disponibilizando novamente grandes quantidades de matéria orgânica para o consumo dos microrganismos, reforçando o ciclo. Porém, em certo ponto, a demanda de oxigênio é tão grande que começa a desoxigenação, podendo chegar a níveis letais, quando ocorrem grandes mortandades de animais e plantas. Em muitas áreas oceânicas este ciclo se perpetua por meses ou indefinidamente, criando as chamadas zonas mortas, que hoje já são mais de 500 em todo o mundo, algumas de vasta extensão, onde pouquíssimas espécies, em geral pequenas ou unicelulares apenas, conseguem sobreviver.[4][5][6] Muitos dos microrganismos envolvidos nestes processos, além de consumirem oxigênio, liberam substâncias tóxicas como produto do seu metabolismo, agravando o quadro.[2]
O gás carbônico, por sua vez, atua de maneira diferente mas não menos efetiva, pois os gases dissolvidos na água mantêm, em condições normais, uma proporção relativa que varia muito pouco, e este equilíbrio é o que mantém a vida marinha em florescimento. A elevação da concentração do gás carbônico na atmosfera, emitido hoje em dia em imensas quantidades pela queima de combustíveis fósseis principalmente, e também pelo desmatamento e outros fatores, por uma simples matemática faz com que ele se dissolva em maiores quantidades nas águas, e automaticamente reduz a quantidade de oxigênio dissolvido. Além disso, mudanças na salinidade e acidez das águas, efeitos paralelos do aquecimento global, também interferem nos níveis de oxigenação, embora ainda sejam necessárias mais pesquisas para aperfeiçoar o entendimento de como essas interações ocorrem.[10][8][6][11] A temperatura da água, que tem se elevado em todos os oceanos, interfere diretamente nos níveis dos gases dissolvidos e o aquecimento tanto reduz a concentração de oxigênio quanto afeta a estratificação das massas de água, prejudicando a circulação e a renovação do gás nas camadas mais profundas.[11][9]
Impacto
[editar | editar código-fonte]O oxigênio é um gás essencial à vida da maioria das espécies, que são muito sensíveis às variações em sua concentração. A desoxigenação é uma das maiores causas de perdas na biodiversidade e de degradação dos ecossistemas marinhos.[5][7][2] A desoxigenação por causa humana era praticamente desconhecida antes da década de 1950 e desde então tem se ampliado com rapidez, adquirindo os contornos de um problema mundial e ocorrendo principalmente nos litorais, onde se concentram as descargas tóxicas e ocorre a maioria das atividades humanas ligadas ao oceano, como a pesca e a recreação. Entre as zonas mais severamente afetadas estão o Mar Báltico, o Mar Negro e o Golfo do México.[7]
Os níveis de oxigênio dissolvido nas águas oceânicas, em particular nas áreas costeiras, têm declinado acentuadamente nas últimas décadas, levando a episódios de desoxigenação permanente ou transitória de grandes proporções em grandes regiões marítimas.[12] Uma compilação dos resultados de 872 estudos sobre o tema realizada por Vaquer-Sunyer & Duarte concluiu que os locais onde foi diagnosticada desoxigenação têm aumentado 5.54% por ano, acrescentando que "múltiplos estudos realizados em zonas cuidadosamente monitoradas dão evidências de que tem ocorrido um inequívoco aumento no número de zonas hipóxicas e em sua extensão, severidade e duração".[1] Um estudo desenvolvido por uma grande equipe centrado no Golfo do México é ilustrativo, mostrando que a desoxigenação nas águas profundas entre 1985 e 1992 cobria uma área de 8-9 mil km2, mas entre 1993-1999 passou a cobrir 16–20 mil km2.[2]
A desoxigenação oceânica causada pelo homem, a mais perigosa e a quem tem efeitos mais vastos e duradouros, é um problema de grande magnitude no cenário contemporâneo, desencadeando uma série de modificações prejudiciais no equilíbrio ecológico, onde se inclui importante declínio de populações de seres marinhos, podendo levar à extinção de muitas espécies. Quando não leva os seres à morte, causa problemas como redução no crescimento, estresse, baixa fertilidade, aberrações comportamentais, migração forçada, aumento na vulnerabilidade a predadores e doenças e perturbações em todos os ciclos vitais,[1][4][5][3] e pode facilitar a proliferação de espécies invasoras.[13]
À medida que o número de espécies extintas aumenta, e aumenta o número de espécies com populações em declínio, toda a cadeia alimentar dos oceanos é desequilibrada, produzindo efeitos em cascata generalizados e afetando muitas outras espécies indiretamente, que passam a ser igualmente ameaçadas. Ao mesmo tempo, como o homem é dependente em alto grau dos recursos naturais que retira do mar, sendo os peixes, algas, moluscos e crustáceos parte importante da alimentação de uma enorme população humana, naturalmente a desoxigenação oceânica, fazendo desaparecer espécies valiosas para o ser humano, acaba por afetar negativamente a sociedade como um todo.[1][4][14]
A desoxigenação é um fator potencializador e é potencializada por outros impactos negativos causados pelo homem sobre o oceano, que atuam combinadamente e que incluem a poluição por outras fontes, o aquecimento e acidificação das águas em função do aquecimento global, a pesca predatória e excessiva e interferências físicas como a destruição dos leitos oceânicos e recifes coralinos pelas redes de pesca de arrasto, o que demonstra a intima relação entre todos os elos da cadeia vital e a importância de sua preservação em condições saudáveis. Com a continuidade das agressões ao meio ambiente marítimo e com a projetada amplificação do aquecimento global no futuro próximo, é esperado que as zonas de hipóxia aumentem em número, tamanho e duração, multiplicando seus efeitos negativos e ameaçando gravemente a sobrevivência não só da vida marinha, mas também da espécie humana.[5][15][11][9]
A economia baseada no oceano tem um valor de pelo menos 3 trilhões de dólares anuais em produtos e benefícios diretos e 21 trilhões em benefícios derivados de serviços ambientais não mercadológicos, e tem ramificações extensas em todos os setores da sociedade, incluindo aspectos sociais e culturais. A atividade pesqueira sozinha contribui com 435 bilhões de dólares por ano para a economia mundial e gera 14 milhões de empregos diretos. Mais de 500 milhões de pessoas em todo o mundo têm suas atividades dependentes do mar em algum grau.[14] Os custos financeiros deste problema ainda não foram bem dimensionados e requerem mais pesquisas, mas sem dúvida são vastos. Os custos biológicos, ecológicos, sociais e culturais seguramente são da mesma maneira elevadíssimos. Avaliações aproximativas de 2012 e 2013 realizadas pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento calcularam que o prejuízo econômico da desoxigenação costeira e da eutrofização pode chegar a 790 bilhões de dólares por ano, sem incluir os custos derivados de outras agressões e dos seus efeitos combinados. O custo de controle e reversão da degradação dos oceanos, por outro lado, é muito pequeno, calculado em apenas 5 bilhões de dólares, mas é necessário que os programas de recuperação de áreas degradadas e limitação nas emissões de gás carbônico e efluentes eutrofizantes sejam implementados em larga escala, o que ainda não ocorre.[13][14]
Referências
- ↑ a b c d Vaquer-Sunyer, Raquel & Duarte, Carlos M. "Thresholds of hypoxia for marine biodiversity". In: PNAS, 105 (40):15452–15457
- ↑ a b c d National Science and Technology Council / Committee on Environment and Natural Resources. Integrated Assessment of Hypoxia in the Northern Gulf of Mexico, 2000
- ↑ a b Breitburg, D. L. et al. "Landscape-Level Variation in Disease Susceptibility Related to Shallow-Water Hypoxia". In: PLoS ONE, 2015; 10 (2):e0116223/
- ↑ a b c d e f United Nations Development Programme. Ocean Hypoxia — Dead Zones. Issue Brief: Environment and Energy, 2013
- ↑ a b c d e Van Colen, Carl et al. "Organism-Sediment Interactions Govern Post-Hypoxia Recovery of Ecosystem Functioning". In: PLoS ONE, 2012; 7 (11):e49795
- ↑ a b c d Bloech, Donald E."Global Warming and Coastal Dead Zones". In: National Wetlands Newsletter, 2008; 30 (4)
- ↑ a b c NOAA's Coastal Ocean Program [Diaz, Robert J. & Solow, Andrew]. "Ecological and Economic Consequences of Hypoxia: Topic 2 — Report for the Integrated Assessment on Hypoxia in the Gulf of Mexico". Decision Analysis Series No. 16, 1999
- ↑ a b IPCC. "Summary for Policymakers". In: IPCC. Climate Change 2013 [Fifth Assessment Report (AR5)]
- ↑ a b c Danise, Silvia et al. The Impact of Global Warming and Anoxia on Marine Benthic Community Dynamics: an Example from the Toarcian (Early Jurassic)". In: PLoS ONE, 2013; 8 (2): e56255
- ↑ Feely, R. et al. "Carbon dioxide and our Ocean legacy". NOAA/Pew brief, 2008
- ↑ a b c Gnanadesikan, A.; Dunne, J. P. & John, J. G. "Will open ocean oxygen stress intensify under climate change?" Geophysical Fluid Dynamics Laboratory. Princeton University Forrestal Campus
- ↑ Harvey, Fiona (7 de dezembro de 2019). «Oceans losing oxygen at unprecedented rate, experts warn». The Guardian (em inglês). ISSN 0261-3077
- ↑ a b United Nations Development Programme. Catalysing Ocean Finance: Transforming Markets to Restore and Protect the Global Ocean. Expert Group Meeting on Oceans, Seas and Sustainable Development: Implementation and follow-up to Rio+20, 2013
- ↑ a b c United Nations Development Programme. Catalysing Ocean Finance. Volume I: Transforming Markets to Restore and Protect the Global Ocean Arquivado em 3 de março de 2016, no Wayback Machine., 2012
- ↑ Gobler, C. J. et al. "Hypoxia and Acidification Have Additive and Synergistic Negative Effects on the Growth, Survival, and Metamorphosis of Early Life Stage Bivalves". In: PLoS ONE, 2014; 9 (1):e83648