Wikipédia:Como escrever sobre pessoas racializadas

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Ao escrever sobre pessoas não-brancas na Wikipédia tenha cuidado para não tratar de sua raça ou etnia como sendo o ponto central do artigo. Em vez disso, o foco deve ser em seus feitos notórios que justificam a inclusão do artigo na enciclopédia, trazendo pontos-chaves de suas trajetórias históricas, suas conquistas, seus méritos, desafios, suas perdas e seus enfrentamentos cotidianos de âmbito coletivo.

O debate sobre raça e etnia é um campo aberto e em constante revisão por parte dos pesquisadores. É fundamental usar uma linguagem apropriada e livre de preconceitos, evitando termos que possam ser depreciativos ou ofensivos.

A "raça" e a "etnia" são tópicos complexos e sensíveis, que têm sido objeto de debate e pesquisa há décadas. Compreender esses conceitos é fundamental para entender a diversidade humana e promover a inclusão e a igualdade nas sociedades, bem como explorar as implicações sociais, culturais e políticas relacionadas a esses temas e a sua influência na trajetória da pessoa biografada.

Deve-se sempre questionar se a questão da raça e da etnia é relevante para o artigo, se agrega informações importantes e valiosas para as pessoas que irão lê-lo, e se há fontes confiáveis que fundamentem a informação. É importante também observar o quanto é abordado na Wikipédia sobre esta questão, e quanto as pessoas não-brancas biografas são retratadas na plataforma, e - principalmente - o quanto são esquecidas e ignoradas, assim como importantes partes relacionadas a etnia, ancestralidade e raça nos demais artigos da Wikipédia, como localidades, temáticas, gêneros literários e demais obras realizadas pela humanidade.

A noção geral de ancestralidade[editar código-fonte]

Mapa dos Haplogrupos do cromossomo Y humano dominantes nas populações pré-coloniais e as rotas de migrações propostas.

A ideia de ancestralidade ou herança é ampla e subjetiva, possuindo diferentes significados para diferentes pessoas. Na Wikipédia, é recomendado evitar o uso de termos como raça, etnia e nomes específicos em categorias, infocaixas ou no corpo e seções de artigos, pois esses termos podem envolver pontos de vista não neutros e pesquisas originais não verificáveis, sem fontes confiáveis sobre o tema. Além disso, a informação sobre a ancestralidade de alguém pode ser considerada trivialidade indiscriminada para muitos sujeitos biografados.

De um ponto de vista científico, ancestralidade se resume a haplogrupos. Contudo, os haplogrupos, ao que parece, não correspondem a coisas como italiano ou mesmo africano. Grupos vizinhos na África, por exemplo, geralmente têm mais diversidade em seus genes do que a encontrada entre os galeses e os japoneses. De um ponto de vista cultural, os rótulos baseados em ancestralidade se referem ao histórico familiar e metafamiliar de alguém. Por exemplo, gerações muitos distantes de imigrantes italianos afirmam ser italianos por preservarem traços culturais vistos como italianos. Estas questões frequentemente não se relacionam com a cobertura enciclopédica.

Várias categorizações relacionadas à questão da ancestralidade também podem implicar pertencimento a um grupo social, que pode ter uma causa, uma linguagem, um modo de vestir, ocupações estatisticamente mais prováveis, entre outras pautas, sobre o qual se escreveria no artigo biográfico de alguém. E pode haver outras implicações mais sutis de um rótulo relacionado à ancestralidade em contextos culturais específicos, como obrigações implícitas para com outros membros desse grupo.

Dados étnicos ou raciais só são relevantes para a Wikipédia quando fontes confiáveis ou os próprios sujeitos consistentemente a tornam públicos. Não é trabalho de quem escreve um verbete enciclopédico medir ou decidir o quanto as pessoas são deste grupo ou daquele outro para rotulá-las.

Para dar um exemplo de destaque: quando alguém como Meghan Markle, duquesa de Sussex, diz que é branca e afro-americana repetidamente e em entrevistas publicadas por veículos com boa reputação, esta é uma declaração sociopolítica sobre a sua identificação com grupos subculturais (e sua herança, orgulho, problemas, etc.), não uma declaração sobre genética.

Os complicados termos raça e etnia[editar código-fonte]

Etnia é geralmente confundida com a noção de raça. Para os estudos em antropologia, existem três ou quatro raças com várias subdivisões e misturas. São elas: negros, caucasianos, amarelos, e, às vezes, australo-melanésios. O termo raça não tem nenhuma relação a etnia. Por outro lado, etnia ou grupo étnico é algo muito mais específico. Por exemplo, os Oromo da Etiópia são uma etnia. Esse uso é o dominantemente encontrado em fontes confiáveis sobre etnia.

A palavra raça, na maioria das vezes, é empregada como uma construção social. Em virtude dos discursos historicamente produzidos por indivíduos brancos, foram estabelecidos marcadores da diferença, que buscavam categorizar e distinguir pessoas indígenas, negras e amarelas. Através da branquitude, esses marcadores se tornaram os padrões da sociedade, revelando o processo de racialização branca.

Na linguagem cotidiana, principalmente na visão norte-americana exportada para outros lugares do mundo, hispânico é uma etnia. No entanto, hispânico é um conceito político apesar da maioria das pessoas leitoras que não são latino-americanas não percebem isso. Da mesma forma dificilmente um não-indígena ou alguém que não estuda a história indígena perceberia a ausência de trechos sobre a história dos povos originários de determinada região na sessão de "História" nos municípios. Da mesma forma, não-negros ou aqueles que não estudam a história da escravidão pouco notam a ausência dos nomes de figuras negras na história de cada cidade, frequentemente sendo tratados apenas como os "negros" ou os "escravizados", enquanto os brancos sempre bem definidos como "portugueses", "italianos", "alemães" ou grupos ainda mais específicos.[1][2]

Retrato oficial de John Taylor, Barão Taylor de Warwick

Quando é relevante falar de raça e etnia[editar código-fonte]

Então, quando a etnia pode ser, de forma apropriada, ligada diretamente à notabilidade do assunto? Exemplos concretos são pessoas defensoras da tolerância racial e da justiça ou vítimas de crimes de ódio. Um outro tipo de situação é a de John Taylor, Barão Taylor de Warwick, por exemplo, a terceira pessoa de ascendência afro-caribenha a entrar na Câmara dos Lordes do Reino Unido. Sua campanha de estreia na política britânica, em 1992, foi controversa e marcada pela oposição racista de membros do Partido Conservador. Ele também é um importante apoiador da Associação de Cidadãos Idosos das Índias Ocidentais e da organização Sickle Cell Anemia Relief, cada uma delas ligada diretamente a afro-caribenhos e afrodescendentes. Dada sua identificação pessoal com tais causas e o fato de que sua história como figura pública envolver diretamente tensões raciais, é apropriado identificá-lo como afro-caribenho e também como britânico na Wikipédia.

A ilusão da raça[editar código-fonte]

A raça parece atraente fenotipicamente, porque algumas pessoas são pálidas, algumas são muito escuras, algumas são um pouco avermelhadas e têm dobras epicânticas e assim por diante, e essas características tendem a ser herdadas. Mas a genética não funciona de acordo com as linhas de "raça". Qualquer população absorverá e expressará um gene que é localmente adaptativo, enquanto aqueles que são localmente mal adaptados acabarão morrendo ou pelo menos se tornarão raros no mesmo grupo de pessoas em um ambiente substancialmente semelhante por um longo período de tempo.

As percepções e suposições das pessoas geralmente estão simplesmente erradas. As "características africanas" do tipo estereotipado que americanos e europeus têm em mente não são pan-africanas, mas principalmente da África Ocidental. Muitos africanos do norte e do leste têm lábios finos e narizes pontudos. Várias características tipicamente associadas aos africanos ocidentais aparecem em outros lugares; por exemplo, narizes largos e achatados também são comuns entre as populações indígenas da Austrália e do Pacífico, bem como em grande parte da China. A "raça" que está na mente das pessoas faz com que vejam coisas que não são reais, deixando encoberto aquilo que é real mas que afronta estas suposições.

Contexto histórico de surgimento e mudanças[editar código-fonte]

Etnicidade é uma palavra moderna, mas a ideia tem suas raízes remotas. As comunidades tendem a se perceberem como distintas de outras, nomeando e classificando a si e as demais. Muitos escritos que sobrevivem da Antiguidade Clássica são dedicados a catalogar vários povos e suas supostas naturezas humanas e peculiaridades. A tentativa de nomear e definir o outro não é, portanto, uma nova obsessão.

No entanto, os usos do termo raça são relativamente recentes e têm sua origem na Europa tardo-medieval, quando a Cristandade católica criou uma série de dispositivos jurídicos, religiosos e socioculturais para discriminar e segregar judeus, cristãos-novos e os chamados mouros, com quem os católicos ibéricos mantinham uma antiga e conflituosa relação. Instrumentos normativos como o Estatuto de Toledo, de 1449, buscaram impedir que segmentos sociais considerados de sangue infecto ascendessem a posições de prestígio e governança, como os cargos públicos, cujo acesso era controlado e garantido apenas à população cristã velha.[3] Neste contexto, o termo raça assumiu forte conotação pejorativa, sendo utilizado para classificar e definir o lugar social dos não-cristãos, que eram considerados "impuros de sangue" exatamente por possuírem "raça" ("raça de judeu", "raça de mouro", mais tardiamente, "raça de índio" ou "raça de mulato"). A população cristã velha e socialmente branca, em regra, não possuía "raça".[4]

Sistema de Castas. Anônimo, século XVIII. Museo Nacional del Virreinato (Tepotzotlán).

Com a Era dos Descobrimentos, responsável por desencadear processos de conquista e colonização na América e também o tráfico atlântico de escravizados retirados compulsoriamente de África, as categorias da "racialização" tardo-medieval, como "impureza de sangue", "sangue infecto" e "raça de judeu", foram adaptadas aos novos contextos coloniais e passaram a incluir grupos sociais não europeus, como indígenas americanos e africanos, além daqueles resultantes das mestiçagens coloniais, como os pardos e os mulatos. Os sujeitos destes grupos humanos passaram a ser formalmente definidos como integrantes de "raças impuras" e, por isso, tiveram sua mobilidade social restringida (por meio da proibição de ocuparem cargos públicos, por exemplo, tal como já ocorria com os judeus), além do que religiosidades e práticas culturais foram perseguidas por instituições como a Santa Inquisição.[5][6]

Contudo, deve-se reconhecer que, até bem depois da Renascença não havia sequer um conceito de "europeu" (culturalmente, politicamente ou etnicamente), ao passo que, em geral, as pessoas não costumavam definir a "raça" apenas por critérios fenótipos, como a cor da pele. O elemento basilar da racialização tardo-medieval era a origem étnico religiosa do sujeito (isto é, se era cristão velho, judeu ou mouro, por exemplo). Uma pessoa poderia ser escocesa pálida como gelo ou siciliana morena e ainda assim ser "um de nós" conquanto que fosse cristã. Por outro lado, um muçulmanopálido da Espanha omíada, um sarraceno árabe bronzeado ou um mouro seriam inimigos aos olhos dos cristãos. Um bom exemplo são os judeus Ashkenazi, distinguir por características físicas dos demais europeus, mas oprimidos por fazerem parte de um grupo religioso diverso e serem "infiéis" aos olhos da Cristandade ocidental da época. Nesse sentido, leitores modernos geralmente possuem dificuldade de entender a importância e a centralidade do conceito de Cristandade nas motivações medievais, e mesmo posteriores, para conquista e expansão europeias no período moderno.

Naturalmente, o ambiente beligerante da Idade Média podia rapidamente transformar essa concórdia da Cristandade em rivalidades mortais e guerras intermináveis por toda a Europa, mas, em geral, a identidade católica foi um poderoso elemento de agregação e pressão por unidade política até pelo menos a baixa Idade Média. O posterior contexto de ruptura e reformas protestante e católica do século XVI lançará todo o velho continente em um cenário de "guerras de religião" que romperá de vez com a hegemonia de Roma, mas não será suficiente para acabar com os preconceitos raciais de corte étnico-religioso aplicados às populações não cristãs, nem mesmo entre os "novatos" protestantes. Todavia, a partir daí e com o contato entre europeus, americanos e africanos, os preconceitos raciais progressivamente adotaram critérios fenótipos (como a cor da pele) para definir a condição dos não europeus, como uma espécie de símbolo de sua inferioridade.

No caso do Brasil, a sociedade escravista colonial, especialmente a partir do século XVII, com a consolidação do tráfico atlântico, tendeu a vincular a cor da pele e a origem étnico religiosa não cristã como uma eficiente estratégia para legitimar a escravidão de indígenas e, principalmente, de africanos. A cor da pele foi sendo progressivamente utilizada como espécie de marcador da origem não-cristã do indivíduo, colocando-o sob suspensão naquela sociedade colonial e em potencial risco de ser escravizado ou mesmo confundido com um escravo, ainda que fosse livre. Porém, importa salientar que essa vinculação entre cor da pele das populações não-brancas e o cativeiro no Brasil colonial não era reflexo, ainda, de uma concepção biológica de raça, assente em diferenças efetivamente biológicas, como veio a ser no século XIX. Entre os séculos XVI e XVIII, prevaleceu uma concepção étnico-religiosa da raça, ainda que cada vez mais afeita às identificações com o fenótipo.[4]

Se você estava se perguntando por que a própria ideia de "raça" é controversa, agora você tem uma ideia, embora essa não seja a imagem completa. As terríveis consequências socioeconômicas do pensamento racialista – de tratar as pessoas de maneira diferente com base em distinções visuais e categorizações ilusórias – têm sido um grande debate político desde a década de 1950, com intensidade renovada em 2020. Raças podem não ser biologicamente reais, mas raça como um conceito histórico e sociológico e o seu efeito nos direitos humanos e na equidade social é muito real.

Genes e raças[editar código-fonte]

A ideia de que as raças são inatas, seja na biologia humana ou na psicologia, é profundamente rejeitada na ciência moderna. O que é inato são as distinções fenotípicas, tanto óbvias (cor da pele, características faciais médias) quanto não tão óbvias (por exemplo, diferentes defesas antimaláricas), além de tendências humanas para categorizar e preferir associar-se com pessoas de aparência familiar enquanto desconfiam "do outro". As diferenças fenotípicas variam muito pouco, na maior parte de um continente em alguns casos e apenas em algumas tribos em outros. Eles não correspondem na maioria dos casos às "raças" tradicionais, mas apenas mostram uma bolha de distribuição de frequência nelas.

Não há nada de especial sobre, por exemplo, o gene antimalárico e da anemia falciforme que é comum na maioria das populações africanas. Não prova que existe uma "raça" como algum tipo de ideal platônico; é simplesmente divulgado como eficaz o suficiente contra o tipo regional de malária para fornecer uma vantagem de sobrevivência até a idade adulta. Outros genes menos eficazes contra a doença não sobrevivem lá porque seus hospedeiros tendem a morrer antes de produzir filhos. Se uma grande população de africanos com seu gene antimalária se mudasse para o sul da China e os chineses deslocados tomassem seu lugar na África, testes genéticos feitos neles depois de uma dúzia de gerações mostrariam um bando de afro-chineses na China que ainda pareciam muito como seus ancestrais, mas que agora tinham o gene antimalárico do sul da Ásia; e um bando de sino-africanos na África que ainda tinham dobras epicânticas, mas possuíam o gene da célula falciforme em vez do antimalárico asiático. Os genes não viajam entre humanos como "pacotes raciais". Um único gene vantajoso pode varrer uma população em apenas algumas gerações e tornar-se predominante, e outro mal-adaptativo pode ser praticamente perdido, com pouco efeito sobre o resto da genética da população, incluindo a aparência.

A realidade é que existem genes dominantes e recessivos. O que parecem raças são apenas conjuntos estatisticamente frequentes de genes dominantes em várias populações amplas – e estão se tornando mais misturados ao longo do tempo, com diminuição da distinção entre as populações.

Referências

Bibliografia[editar código-fonte]

Ligações Externas[editar código-fonte]

  • Relatório da Wikimedia Foundation - sobre quem está representado na Wikipédia (em inglês)
  • AfroCrowd - Site da organização organização que tem como objetivo aumentar a representatividade e inclusão de pessoas negras na Wikipédia e em outros projetos da Wikimedia.