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Poção do amor

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"A Poção do Amor", pintura de Evelyn De Morgan retratando uma feiticeira a confeccionar o elixir do amor.

Poção do amor ou filtro[1][nota 1] é uma forma mítica de beberagem, feita por feiticeiros, que seria capaz de provocar em alguém os sentimentos amorosos em relação a outrem. É uma forma de feitiço de amor, capaz de provocar o gostar em alguém do sexo oposto.[2]

Para a bruxaria e o herbalismo, trata-se de afrodisíaco que teria o poder de fazer uma pessoa se apaixonar por outra, geralmente aquela que vir primeiro.[3]

Uma antiga definição de filtro diz: "Os demonógrafos falam de certos filtros supersticiosos, para cuja composição invocavam os antigos o socorro das divindades infernais. Faziam entrar em sua composição várias ervas e outros materiais, como o pescado chamado rêmora, alguns ossos de rã, o hipômanes,[nota 2] etc. Del-rio disse que outros se valiam ou faziam entrar nestas bebidas recortes de unhas humanas, certos répteis, pós de metais, intestinos de determinados animais e outras coisas semelhantes, havendo chegado a vilania e profanação de alguns em misturá-las com objetos sacros, como água benta, relíquias de santos, etc."[4]

Além do hipômanes e da rêmora, partes dos corpos (especialmente a língua) de certas aves ou do lince, ervas e insetos variados, lagartos, cérebro de bezerro, sangue de pombo e outros ingredientes geralmente desagradáveis serviam ao seu preparo.[2]

Há cinco mil anos, na China o ginseng já era usado no preparo de bebidas afrodisíacas, sendo este vegetal chamado de "elixir da vida".[6]

Na Grécia são vários os mitos que aludem ao uso de filtros amorosos; a própria Hécate, deusa dos mortos (diferente de Perséfone, ela preside os fantasmas e malefícios) é a divindade todo-poderosa que as bruxas invocam; tem seu poder manifesto em especial durante a noite, sob o luar - sendo por isso também a deusa da Lua, ligada aos ritos de fertilidade, reúne os três níveis da vida (celestial, terreno e infernal, donde ser cultuada nas encruzilhadas) - e só pode ser esconjurada por encantamentos, sortilégios de morte e poções do amor.[7] Na Grécia Antiga particularmente as mulheres tessalonicenses tinham grande experiência no seu uso.[2]

Segundo conta a Odisseia, o feio Glauco apaixonara-se perdidamente por Cila mas esta não o correspondia; ele, então, pede à bruxa Circe que lhe fizesse uma poção do amor - o que não acontece, pois a feiticeira estava apaixonada por ele e, para se vingar da rival, a transforma num monstro.[7]

Também Medeia desse artifício se serve - foi graças a uma poção que fizera adormecer a Jasão e, assim, roubara-lhe o velo de ouro; quando comete seu horrível crime de assassinar Creonte, Creusa e seus próprios filhos - pois tinha por segurança o exílio oferecido pelo rei de Atenas, que em troca pedia que lhe ministrasse filtros capazes de dar-lhe descendência.[8]

Cleopatra usara uma poção para conquistar César.
Jean-Léon Gérôme

Cleopatra teria se servido de uma poção para seduzir César; esta teria sido preparada com uma planta do gênero Datura na família Solanaceae (do qual faz parte o estramônio) - plantas cujo poder Homero já havia relatado.[9]

A existência de um elixir capaz de infundir no objeto dos desejos o sentimento amoroso é relatada por Horácio, poeta romano do primeiro século, num dos seus Epodos (Epodo V), onde se elabora a poção do amor a partir do fígado de uma criança que as bruxas fizeram morrer lentamente.[10]

Na Irlanda primitiva os feitiços incluíam o fígado seco de um gato preto - o que tornaria infalível a poção do amor.[11] Para isto, deveria ser misturado a um chá, e derramado a partir de um bule preto; o feitiço era usado com muito sucesso, mas deveria ser renovado constantemente ou todo o amor poderia se transformar em ódio.[12]

Na Roma Antiga, durante os primeiros imperadores, o uso desses meios mágicos ganhou maiores proporções como fruto da corrupção moral desenfreada, e uma consulta do Senado foi emitida orientando que tal prática deveria ser levada a sério, e punida.[2]

Ressurge com o mito medieval de Tristão e Isolda, onde o casal que dá nome à história se apaixona após beberem da poção por engano, engendrando-se ali um caso de adultério: nas primitivas versões da história o elixir teria efeito temporário, ao passo que nas versões da literatura cortês seu efeito seria duradouro, perene.[13]

A versão cavalheiresca do mito dá a conotação do conteúdo trágico que envolve o amor-paixão, servindo portanto de propaganda contra esse "mal", que contradiz a propaganda da obediência estrita às leis e códigos morais.[13]Denis de Rougemont entende que o elixir funciona como um álibi para os arroubos amorosos a que Tristão e Isolda se entregam, como a justificarem algo que lhes eximisse da culpa - culpa que deixaria de existir uma vez que não poderiam agir de outra forma: o filtro, na história, assim se revela indispensável, sem o qual não haveria o romance, não haveria Tristão que, mesmo tomando-o sem saber do que se tratava, declara ao final, na obra de Richard Wagner: "Esse terrível filtro que me condena ao suplício, fui eu, eu mesmo quem o preparou... E o bebi em grandes goles de delícia!..."[14]

No século VII, conta Éliphas Lévi, Carlos Magno expedira uma lei que proibia a prática do preparo da poção amorosa: "...serão punidos os feiticeiros, os adivinhos, os encantadores, aqueles que evocam o diabo, e os envenenadores que preparam alegados filtros amorosos."[nota 3][15]

Nos anos de 1679-1683 em França oitenta e sete pessoas foram condenadas à morte por conta de suas atividades na elaboração de venenos e feitiços - dentre as quais foi executada Catherine Voisin, famosa envenenadora que elaborava venenos e poções do amor usando Datura.[9]

Ervas e frutas usadas

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Mulher com a poção do amor, por Beatrice Offor.

O meimendro (Hyoscyamus niger, também chamado de belenho) é uma das solanáceas bastante usadas historicamente no preparo de poções do amor.[9] As solanáceas possuem como substâncias ativas alcaloides, atropina e escopolamina.[16] Por vezes chamada de "maçã do amor", a mandrágora (Mandragora officinarum) era outra planta das solanáceas que tinha seu uso por parte das feiticeiras com fins amorosos em suas beberagens, junto à beladona (Atropa belladonna).[17]

Da mesma forma plantas do gênero Datura, a Hyoscyamus niger e muitas outras com princípios psicoativos foram largamente usadas, na história, para o preparo de poções amorosas.[9]

Leonard R. N. Ashley, em seu "The Wonderful World of Superstition, Prophecy and Luck" escreve que a cenoura e a verbena são ervas que podem ser usadas em poções de amor, e diz que comer pepinos já foi "considerado um auxílio para a conquista amorosa."[6]

A maçã é uma fruta cujo uso em preparo de filtros é considerado universal; a própria fruta é um símbolo da tentação, e bastante usada como ingrediente em várias poções mágicas.[18]

Feiticeira fazendo uma poção.

Os ingredientes via de regra envolvem alimentos cujas formas se assemelham aos órgãos sexuais humanos, como o aspargo, ostra ou a banana; também certas ervas, como a hortelã, mandrágora e verbena podem ser usadas. Para que produza efeitos é necessário recitar um encantamento.[3]

Uma tradicional fórmula egípcia da poção, segundo a herbalista Jeanne Rose, tem por ingredientes água, raiz de alcaçuz e grãos de gergelim moídos, sementes de erva-doce e mel; depois de fervidos por cinco minutos, ficam em infusão até atingirem a temperatura ambiente quando, finalmente, é coado e a pessoa deve ingeri-la duas vezes por dia, após proferir uma poderosa fórmula mágica de amor e paixão, tendo entre os dedos uma mecha de cabelos da pessoa amada.[3]

No Nordeste, registra Câmara Cascudo citando Pereira da Costa, é comum usar-se o fígado de uma ave conhecida como anum (ou o bico, noutras variantes), torrado e moído, e aplicado numa bebida qualquer devendo a pessoa, ao pisar, recitar a seguinte fórmula: "Eu te piso, eu te repiso / E te reduzo a granizo / No pilão de Salomão / Que sete estrelas o prendam / Lhe dê força de luar / Para que possa abrandar / O seu duro coração / Quem isto beber / Quem isto chupar / Há de amar / Até morrer"; já na região amazônica o pó deve ser colocado, em pitada, na saliva de quem se deseja atrair.[19]

Também existiam remédios mágicos capazes de provocar o efeito oposto, isto é, suprimir a paixão amorosa, ou ser especialmente eficaz para neutralizar o amor que fora despertado pela magia; usava-se, então, plantas como a Vitex agnus-castus, a Nymphaea alba, etc.[2]

Frasco contendo um filtro.

A ópera L'elisir d'amore, de Donizetti, também traz a poção como plano principal do enredo, que dá título à obra.

Na versão de Goethe do mito de Fausto, Mefistófoles dá ao personagem-título de beber, na cozinha de uma feiticeira, a poção do amor.[20]

Rezam os versos do poeta romântico brasileiro, Plínio de Lima (1845-1873), em "A Rainha das Feiticeiras" (em domínio público):[21]

"Ai, feiticeira, nos teus olhos fúlgidos
Quantos feitiços não entorna amor!
A quem roubaste esse condão fatídico?
À luz? À música? À borboleta? À flor?
(...)
Das feiticeiras és rainha mágica
Que em doces filtros nos influis amor;
Eu sei: roubaste esse condão fatídico
À luz, à música, à borboleta, à flor."

De 1903 é o quadro The Love Potion da artista britânica Evelyn De Morgan, que retrata uma feiticeira a preparar uma poção do amor, tendo aos seus pés um gato preto familiar; na pintura vê-se uma mulher estudiosa cercada de livros de magia negra e autores como Paracelso, Jâmblico e Agrippa, embora seja identificada como uma bruxa dos contos de fada; a obra se insere no contexto das ideias teosóficas.[22]

De 1959 é a canção Love Potion No. 9 (Poção do Amor nº 9, em livre tradução), dos compositores Jerry Leiber e Mike Stoller, originalmente gravada por The Clovers e com diversas regravações e relançamentos ao longo do tempo[23] A canção inspirou o filme Love Potion No. 9, de 1992, onde a bióloga Diane Farrell (vivida por Sandra Bullock) representa o estereótipo da mulher cientista que só possui atrativos quando se socorre do recurso de uma poção do amor.[24]

Em 2005 a escritora inglesa J. K. Rowling, na obra sobre o bruxo Harry Potter, relata a existência de uma poção do amor, chamada Amortentia que, havendo segundo ela limitações aos poderes da magia e um deles é, exatamente, a de não produzir o amor verdadeiro, provoca contudo uma certa obsessão na pessoa.[25]

No desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, de 2011, a Grande Rio exibiu como carro alegórico "abre-alas" um grande caldeirão a preparar a poção do amor, no festejo que homenageava o escritor Franklin Cascaes.[26]

Notas

  1. Filtro vem do grego philtron.[2]
  2. Líquido mucoso excretado pelas éguas no cio, que se julgava ter efeitos afrodisíacos e era usado no preparo de filtros do amor; o mesmo que hipômane.
  3. "...punis les sorciers, les devins, les enchanteurs, les noueurs d'aiguillette, ceux qui évoquent le diable, et les empoisonneurs au moyen de prétendus philtres amoureux.", no original.

Referências

  1. Dicionário Aurélio Eletrônico - Século XXI, Editora Nova Fronteira / Lexikon Informática, 1999, verbete filtro2: Pode se chamar de filtro também toda beberagem utilizada, além do amor, para outros efeitos mágicos na pessoa em que é ministrada; neste sentido, é sinônima da elixir.
  2. a b c d e f Philtron. In: Meyers Konversations-Lexikon. 4. Auflage. Band 12, Bibliographisches Institut, Leipzig 1885–1892, S. 1023. – definição de "Filtro" (em alemão).
  3. a b c Nevill Drury (2011). Dicionário de Magia e Esoterismo. [S.l.]: Pensamento. p. 290. ISBN 8531513618 
  4. V. Joaquín Bastús (1833). Suplemento al Diccionario Histórico Enciclopédico. [S.l.]: Roca (Barcelona). p. 273 
  5. citado in: Maria de Lourdes Borges (2004). Amor. [S.l.]: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. p. 48. ISBN 8571107939 
  6. a b Pete Bishop (26 de abril de 1987). «It Seems A Working Love Potion Is Nly A Notion». Chicago Tribune. Consultado em 14 de fevereiro de 2016 
  7. a b Junito de Souza Brandão (1986). Mitologia Grega, Volume I. [S.l.]: Vozes. 404 páginas 
  8. Junito de Souza Brandão (1987). Mitologia Grega, Volume III. [S.l.]: Vozes. 407 páginas 
  9. a b c d Monika Ciechomska (2014). «MAŚCI CZAROWNIC, ŚMIERTELNE TRUCIZNY I SERUM PRAWDY: HISTORIA I WYKORZYSTANIE (PSYCHOAKTYWNYCH ROŚLIN Z RODZINY SOLANACEAE)» (PDF). Zeszyty Naukowe Towarzystwa Doktorantów UJ - Nauki Ścisłe, Nr 9. Consultado em 9 de fevereiro de 2016 
  10. Idemburgo Frazão. «Epodos e Sátiras - Magia?: o olhar crítico de Horácio e Machado de Assis». UERJ. Consultado em 12 de abril de 2015. Arquivado do original em 13 de janeiro de 2016 
  11. Verbete "Charm", in: Patricia Monaghan (2004). The Encyclopedia of Celtic Mythology and Folklore. [S.l.]: Facts On File, Inc., Nova York. ISBN 0-8160-4524-0 
  12. William Butler Yeats (editor). Fairy and Folk Tales of the Irish Peasantry. [S.l.]: The Walter Scott Publishing Co., Ltd. p. 148 
  13. a b Carolina Gual da Silva; Claudia Regina Bovo e Flávia Amaral (2013). «Do verso à prosa: o potencial histórico dos romances de cavalaria (séculos XII-XIV)». Revista História e Cultura, Franca-SP, vol. 2 e 3 (especial), p. 414-441, ISSN 2238-6270. Consultado em 12 de abril de 2015. Arquivado do original em 7 de janeiro de 2016 
  14. Denis de Rougemont (1953). O Amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara 
  15. Éliphas Lévi (1860). Histoire de la magie. [S.l.]: Germer Baillière, Libraire-Éditeur. p. 262. versão digital Projeto Gutenberg: 2007 
  16. J. L. Müller (1998). «Love potions and the ointment of witches : Historical aspects of the Nightshade alkaloids». Journal of toxicology, vol. 36, nº 6, pp. 617-627, ISSN 0731-3810. Consultado em 9 de fevereiro de 2016 
  17. Sabrina T. Martinez, Márcia R. Almeida e Ângelo C. Pinnto. «Beladona, Meimendro e Mandrágora: as 3 ervas das bruxas da Idade Média» (PDF). UFRJ. Consultado em 16 de maio de 2016. Arquivado do original (PDF) em 5 de junho de 2016 
  18. Albuquerque, Soraya Sousa de (2004). «A gastronomia e o amor: os alimentos afrodisíacos» (PDF). UNB. Consultado em 16 de maio de 2016 
  19. Câmara Cascudo. Dicionário do Folclore Brasileiro 10ª ed. [S.l.]: Ediouro. p. 92. ISBN 8500800070 
  20. Ulisses Maciel de Oliveira Neto. «A retórica do ciúme: ver ou não ver» (PDF). filologia.org. Consultado em 12 de abril de 2015 
  21. Plínio de Lima. A Rainha das Feiticeiras in: "Mosaico Poético". [S.l.]: G. Laporte e Companhia, Recife, PE. Consultado em 20 de junho de 2018. Cópia arquivada em 20 de junho de 2018. Obra é uma coletânea de autores brasileiros, sem data determinada; apesar de a fonte referir-se ao século XX, possivelmente trata-se de edição original do século anterior. A obra fazia parte do acervo do bibliófilo José Mindlin. 
  22. Elise Lawton Smith’s, in: Evelyn Pickering De Morgan and the Allegorical Body, Fairleigh Dickinson University, Madison, pp.107 – 108 (transcrição) (2002). «The Love Potion». The De Morgan Foundation. Consultado em 4 de fevereiro de 2016 
  23. Institucional. «The Clovers Love Potion No. 9». All Music. Consultado em 14 de dezembro de 2015 
  24. Jocelyn Steinke (11 de junho de 2003). «Media images of women engineers and scientists and adolescent girls' conceptions of future roles». WEPAN 2003 Conference. Consultado em 14 de dezembro de 2015 
  25. J. K. Rowling (2005). Harry Potter e o Enigma do Príncipe. [S.l.]: Rocco. ISBN 85-325-1947-4 
  26. Rodrigo Vianna (7 de fevereiro de 2011). «Grande Rio terá que recuperar desfile sobre Florianópolis». G1. Consultado em 12 de abril de 2015