Julio de Santa Ana

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Julio de Santa Ana nasceu em Montevidéu (Uruguai) em 1934. Foi integrante da Igreja Metodista. Se graduou em teologia pela Faculdade Evangélica de Teologia de Buenos Aires (Argentina). Na época de sua formação, foi especialmente influenciado por Richard Shaul, professor do Seminário de Princeton (Estados Unidos), que o alertou para a importância da práxis como via de conhecimento.

Obteve doutorado em Ciências da Religião pela Faculdade de Teologia Protestante da Universidade de Estrasburgo (França). Entre 1969 a 1972, foi Secretário Geral do Movimento "Igreja e Sociedade na América Latina" (ISAL). Entre 1979 e 1982, foi Secretário de Estudos na "Comissão para a Participação das Igrejas pelo Desenvolvimento" (CPID), do Conselho Ecumênico de Igrejas, sediado em Genebra (Suiça). Entre 1983 e 1993, foi Secretário Executivo do Centro Ecumênico de Serviços para a Evangelização e para a Educação Popular (CESEP).

Foi considerado uma referência da teologia ecumênica em perspectiva libertadora. Tinha uma boa formação em diferentes áreas do conhecimento, como: filosofia, teologia, economia e sociologia.

Boa parte de seu trabalho procurou explicar as causas que levaram às divisões entre as diferentes Igrejas cristãs e abrir caminhos para a comunicação, diálogo e trabalho em comum entre essas Igrejas.[1][2]

Ecumenismo e Libertação[editar | editar código-fonte]

Por meio da obra: "Ecumenismo y liberación", analisou com rigor e de modo interdisciplinar as divisões mais significativas de sua época:

  1. a político-ideológica entre o ocidente e o oriente (na época da Guerra Fria);
  2. étnicas (entre indígenas, negros e brancos);
  3. de gênero (entre homens e mulheres);
  4. econômicas (Norte desenvolvido x Sul - Terceiro Mundo);
  5. culturais (culturas dominantes x culturas dominadas);
  6. de classes sociais (pobrezapobres e ricos).

Ao analisar a divisão Norte x Sul, destacou três aspectos:

  1. a deterioração dos termos de intercâmbio comercial que favoreceria aos países industrializados do Norte;
  2. o elevado nível de consumo dos países desenvolvidos que resultaria no consumismo, desperdício, a ostentação, os gastos supérfluos, etc.;
  3. o caráter interessado da ajuda internacional, que muitas vezes seria paternalista, assistencialista e seria uma atitude de superioridade e não de solidariedade.

Ao analisar a divisão entre ricos e pobres, recorreu à história humana, para demonstrar que seria uma divisão decorrente da injustiça social.

Ao analisar as divisões étnicas, afirmou que essas seriam resultado da conquista e colonização do mundo por parte de Ocidente que supunha a superioridade racial dos povos indoeuropeus, que resultou na escravização dos povos dominados.

Ao analisar as divisões culturais, afirmou que estas teriam um papel muito importante nas relações entre os povos, e que não haveria tratamento simétrico entre as diferentes culturas, mas que elas seriam hierarquizadas em função da "suposta" superioridade cultural, razão pela qual existiria a tendência a se fazer distinções entre culturas evoluídas e culturas atrasadas.

Segundo a lógica do imperialismo cultural, as culturas evoluídas, se considerariam "mestras" e guias para as demais e acreditariam que deveriam exercer uma "missão civilizatória". Nessa perspectiva, acreditaria-se que se as culturas consideradas atrasadas quiserem superar seu atraso, teriam que renunciar a seus valores, esquecer sua história, abandonar sua identidade e "converter-se" à cultura ocidental.

Com base em tais análises, Santa Ana sustenta que a unidade das Igrejas cristãs passaria pela superação das divisões e pela derrubada das barreiras que impediriam a construção de um mundo mais justo e solidário. A unidade nãos seria um fim por si mesma, mas um objetivo que deveria ser forjado lentamente pelo caminho da libertação em função da construção do Reino de Deus.

Sustentava que um trabalho ecumênico autêntico, teria as seguintes características:

  1. aceitação serena das diferenças;
  2. busca humilde da unidade na diversidade por parte dos dirigentes religiosos;
  3. luta solidária pela justiça e reunião de todos em torno de uma mesa comum.

Nesse contexto, destaca o caráter ecumênico da Teologia da Libertação, pois não existiria uma libertação "católica", outra "protestante" e outra "ortodoxa". A libertação seria um fenômeno único, não restrito a confissões religiosas e, portanto, teria de ser ecumênica e interreligiosa.[1]

Crítica teológica da economia política[editar | editar código-fonte]

Santa Ana acreditava que a ideologia da dominação do capital financeiro internacional teria substituído a doutrina de segurança nacional que fundamentavam ideologicamente as ditaduras militares na América Latina. Esse seria um opressor invisível que moveria os fios dos organismos internacionais e instituições financeiras internacionais.

Um expressão dessa nova forma de opressão seria o endividamento dos estados latino-americanos, que traria os seguintes resultados:

  1. aumento do abismo entre ricos e pobres e da exclusão social;
  2. fortalecimento do individualismo (atitude ética da ideologia neoliberal) e redução da solidariedade entre os pobres que reduziria a força de suas lutas reivindicatórias;

Uma expressão do aumento do individualismo seria a maior aceitação da "teologia da prosperidade, que priorizaria a ética individualista própria da ideologia neoliberal e legitima o seu sistema de opressão.

Sustentava que a principal exigência que o sistema capitalista internacional imporia aos países do Terceiro Mundo, com base na religião do mercado, seria a imolação de vidas humanas em ato de violência sacrificial, no qual os desprovidos de recursos econômicos desempenhariam o papel de bode expiatório que permitiria o bem estar das minorias que viveriam na opulência:

"É em sacrifício que purifica a sociedade; melhor dizendo, que purifica aos ricos. Esta violência sacrificial é a que limpa a economia dos países subdesenvolvidos daqueles elementos que lhes impediriam de participar do 'livre mercado'. Esta violência imposta pelas 'leis do mercado’, surgiria como uma exigência exterior à vida humana. Portanto, transcendente. Proveniente de algo numinoso, [...]"

Nessa perspectiva, existiria a utilização pela ideologia neoliberal do "mysterium tremens et fascinans", que seria o elemento a partir do qual Rudofl Otto definiria o sagrado.

Dentre as dificuldades ao processo de libertação, Santa Ana cita:

  1. o caráter difuso dos agentes da opressão, que dificultaria sua identificação;
  2. uma quantidade cada vez maior de "oprimidos" legitimaria os "opressores", pois teriam o "desejo mimético", segundo a definição de René Girard, de ser como as pessoas do Primeiro Mundo

Essa situação exigiria uma análise aprofundada da dominação do capital financeiro que possibilitasse o desmascaramento dos mecanismos utilizados pelo sistema para dividir os pobres e controlar suas consciências.[1]

Obras[editar | editar código-fonte]

  • "Hacia una Iglesia de los pobres (Aurora, Montevidéu, 1983);
  • "Dominación y dependencia" (em co-autoria com Hugo Assmann, Tierra Nueva, Montevidéu);
  • "Cristianismo sin religión" (Alfa);
  • "Protestantismo, cultura y sociedad" (Aurora, Montevideo);
  • "Pan, vino y amistad";
  • "Por las sendas del mundo, caminando hacia el reino";
  • "Ecumenismo y liberación. Reflexiones sobre la relación entre la vida cristiana y el Reino de Dios" (San Pablo, Madri, 1987);
  • "La práctica económica como religión. Crítica teológica a la economía política" (DEI, San José (Costa Rica), 1991);
  • "Les défits des pauvres à l’ Eglise" (diretor) (Ediciones Clé, Yaoundé, Camarões, 1981);
  • "L’ Eglise de l’ autre moitié du monde" (diretor), (Khartala, Paris, 1981)
  • "L’ Eglise et les pauvres" (diretor), Ediciones Pierre-Marcel Favre, Lausana, 1982.[1]

Referências

  1. a b c d La Teologia de La Liberacion Juan Jose Tamayo, em espanhol, acesso em 19 de julho de 2016
  2. Entrevista com Júlio de Santa Ana, acesso em 23 de julho de 2016.