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Programa Saúde da Família

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O Programa Saúde da Família (PSF), criado em 1994 pelo Ministério da Saúde do Brasil, visa reorganizar a atenção primária à saúde (APS) no Sistema Único de Saúde (SUS). Seus princípios são a oferta de atenção em saúde de forma integral, oportuna e contínua, focando na promoção e prevenção. O PSF instituiu a equipe de Saúde da Família (eSF), grupo multiprofissional com médico, enfermeira, auxiliar de enfermagem e agentes comunitários de saúde. A territorialização é a base para distribuição dessas equipes, com cada eSF responsável por uma população adstrita em área geográfica específica.[1] Em 2006, sua importância como política estruturante do SUS foi reconhecida e o PSF foi reformulado, dando origem à Estratégia Saúde da Família (ESF), considerada o modelo preferencial de organização da APS e centro ordenador das Redes de Atenção à Saúde (RAS) no SUS.[2]

Antecedentes históricos

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A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu que "saúde é direito de todos e dever do Estado". O texto constitucional e as leis orgânicas do SUS determinaram como princípios do sistema de saúde: a universalidade, a integralidade, a equidade, a participação social e a descentralização. O novo regulamento atribuía aos municípios a responsabilidade sobre a oferta e gestão dos serviços públicos de saúde, porém os fluxos de transferência de recursos financeiros do governo federal para os demais entes federativos não estavam bem definidos, impossibilitando que a esfera municipal assumisse efetivamente a administração da rede.

Paralelamente, estavam em curso algumas experiências de implantação de modelos assistenciais de base comunitária que serviram de inspiração para a criação do PSF.[3] Pelo menos desde a década de 1970, na periferia de Porto Alegre (RS), vigorava um modelo de sistema de saúde comunitária organizado a partir do Centro Médico Social São José do Murialdo.[4] No município de Niterói (RJ), em 1992, fora criado o Programa Médico de Família (PMF), que importou do modelo cubano algumas características como a abordagem integral, a centralidade na família e na comunidade e a produção social do cuidado.[5]

Em 1987, o governo do estado do Ceará adotou algumas medidas emergenciais para lidar com os danos provocados pela seca e contratou 6 mil mulheres do Sertão nordestino para executar ações junto às suas comunidades a fim de enfrentar a situação crítica da saúde infantil. Considerado uma experiência pioneira na institucionalização do trabalho comunitário na saúde, o Programa Agentes de Saúde (PAS) cearense teve resultados positivos e, em 1991, o Ministério da Saúde lançou o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) que possibilitava a adoção da mesma estratégia para ampliar a cobertura do sistema público na atenção à saúde materno-infantil em zonas rurais e periferias de grandes cidades.[6][7]

Implantação

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Em 1994, ainda no governo Itamar Franco, o ministro da saúde Henrique Santillo lançou as bases do Programa na publicação "Saúde dentro de casa: Programa de Saúde da Família".[1] A gerência do PSF ficou a cargo da Coordenação de Saúde da Comunidade (Cosac), que integrava o Departamento de Operações da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). A Funasa, criada em 1991, era uma entidade recente na estrutura do Ministério da Saúde e com atuação desarticulada das áreas programáticas do órgão. Esta condição conferiu ao PSF uma posição de pouco destaque no momento de sua criação.[8][9]

As diretrizes da primeira formulação do PSF estabeleciam como prioridade alcançar os 32 milhões de brasileiros que constavam no "Mapa da Fome do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada" (IPEA) à época.[10] O modelo de assistência focado na doença deveria dar lugar a ações de promoção e proteção da saúde oferecidas por equipes multiprofissionais aos indivíduos e suas famílias e tendo como pilares os princípios do SUS. As unidades federativas, após convênio com o governo federal, deviam constituir uma "Coordenação Estadual do PSF", responsável pelo recebimento e análise dos pedidos de adesão dos municípios interessados no Programa.[1]

Em 1995, a função de gerenciar o Programa foi retirada da Funasa e transferida para o Departamento de Assistência e Promoção da Saúde da Secretaria de Assistência à Saúde (SAS).[8] O remanejamento efetuado pelo Ministro Adib Jatene contribuiu para dar maior visibilidade e fortalecer o PSF dentro do Ministério.[11]

Financiamento

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Em seguida, a publicação da Norma Operacional Básica de 1996 (NOB-SUS/96) se juntou ao conjunto de leis e outras Normas (1991, 1992, 1993) que vinham delineando o funcionamento do SUS e ajudou a impulsionar a consolidação do Programa.[12] Dentre as principais contribuições da NOB-SUS/96 podem ser destacadas: a determinação do PSF como modelo preferencial para a APS no Brasil e a criação de um método de transferência direta de recursos do governo federal para os municípios, finalmente possibilitando a expansão e redistribuição dos serviços de saúde como preconizado pelo princípio de descentralização.[13]

O chamado Piso da Atenção Básica (PAB), consistia em um procedimento de distribuição sistemática de verbas do Fundo Nacional de Saúde diretamente para os fundos estaduais e municipais. O PAB era composto por duas modalidades: "Fixo" e "Variável". O "PAB Fixo" era um repasse federal regular, automaticamente transferido a estados e municípios e calculado per capita com base na população local. Por outro lado, o acesso aos recursos do "PAB Variável" era condicionado à adesão a ações e programas prioritários do governo federal, funcionando como um indutor de políticas de saúde estratégicas, como o Saúde da Família.[14]

No mesmo ano, o governo Fernando Henrique Cardoso criou o "Projeto de Reforço à Reorganização do Sistema Único de Saúde" (REFORSUS), utilizando recursos emprestados pelo Banco Mundial (BIRD) e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), para reforçar o custeio de implantação do Programa.[15][16]

Consolidação

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Desde o início da operacionalização do PAB, observou-se uma expansão significativa da cobertura do PSF. Entre 1996 e 1999, o número de equipes de Saúde da Família aumentou de 847 para 4.495 e o número de municípios participantes passou de 228 para 1.970 em todo o país.[17] Dois anos depois, em 2001, a quantidade de equipes já somava 15.867 enquanto os municípios totalizavam 4.071.[18] Em 1998, para auxiliar no monitoramento das ações realizadas nos serviços da rede de APS em expansão, foi criado um novo sistema de informação, o Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB).[19] O PSF está associado à redução da mortalidade infantil, com estudos mostrando uma queda expressiva nas taxas em municípios com alta cobertura.[20][21][22][23] Além disso, a sua implementação levou a uma diminuição das internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP), como asma e doenças cardiovasculares.[24][25] A transformação do PSF em Estratégia Saúde da Família foi oficializada pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2006, por meio da Portaria GM nº 648/2006, consolidando-a como a abordagem prioritária para a reorganização da atenção primária no SUS.[26]

Referências

  1. a b c Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Coordenação de Saúde da Comunidade (1994). Saúde dentro de casa : Programa de Saúde da Família (PDF). Brasília: Ministério da Saúde. 20 páginas 
  2. Mendes, Eugênio Vilaça (2015). A construção social da atenção primária à saúde (PDF). Brasília: Conass. 193 páginas. ISBN 978-85-8071-034-2 
  3. Brandão, José Ricardo de Mello (2007). Análise do Programa de Qualidade Integral em Saúde - QUALIS - a partir de inquérito domiciliar (PDF) (Tese de Doutorado). Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Consultado em 27 de julho de 2025 
  4. Busnello, Ellis D'Arrigo (2010). «A medicina de família e comunidade no Brasil». Gazeta Médica da Bahia. 80 (1): 93-100. Consultado em 27 de julho de 2025 
  5. Hübner, Luiz Carlos Moreira; Franco, Túlio Batista (2007). «O programa médico de família de Niterói como estratégia de implementação de um modelo de atenção que contemple os princípios e diretrizes do SUS». Physis: Revista de Saúde Coletiva. 17 (1): 173-191. doi:10.1590/S0103-73312007000100010 
  6. Ávila, Maria Marlene Marques (2011). «O Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Ceará: o caso de Uruburetama». Ciência & Saúde Coletiva. 16 (1): 349-360. doi:10.1590/S1413-81232011000100037 
  7. Bodstein, Regina (2002). «Atenção básica na agenda da saúde». Ciência & Saúde Coletiva. 7 (3): 401-412. doi:10.1590/S1413-81232002000300002 
  8. a b Morosini, Márcia Valéria G. C.; Corbo, Ana Maria D'Andrea (2007). Modelos de atenção e a saúde da família (PDF). Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz. 240 páginas. ISBN 978-85-98768-24-3 
  9. Funasa 15 anos (PDF). Brasília: Funasa. 2007. 53 páginas 
  10. Santana, Milena Lopes; Carmagnani, Maria Isabel (2001). «Programa Saúde da Família no Brasil: um enfoque sobre seus pressupostos básicos, operacionalização e vantagens». Saúde e Sociedade. 10 (1): 33-53. doi:10.1590/S0104-12902001000100004 
  11. Borges, Camila Furlanetti; Baptista, Tatiana Wargas de Faria (2010). «A política de atenção básica do Ministério da Saúde: refletindo sobre a definição de prioridades». Trabalho, Educação e Saúde. 8 (1): 27-53. doi:10.1590/S1981-77462010000100003 
  12. Ministério da Saúde (1997). Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde/NOB-SUS 96 (PDF). Brasília: Ministério da Saúde. 34 páginas 
  13. Castro, Ana Luisa Barros de; Machado, Cristiani Vieira (2012). «A política federal de atenção básica à saúde no Brasil nos anos 2000». Physis: Revista de Saúde Coletiva. 22 (2): 477–506. doi:10.1590/S0103-73312012000200005 
  14. Marques, Rosa Maria; Mendes, Áquilas (2003). «Atenção Básica e Programa de Saúde da Família (PSF): novos rumos para a política de saúde e seu financiamento?». Ciência & Saúde Coletiva. 8 (2): 403-415. doi:10.1590/S1413-81232003000200007 
  15. Viana, Ana Luiza D'ávila; Dal Poz, Mario Roberto (2005). «A reforma do sistema de saúde no Brasil e o Programa de Saúde da Família». Physis: Revista de Saúde Coletiva. 15 (suppl): 225-264. doi:10.1590/S0103-73312005000300011 
  16. Souto, Humberto Guimarães (2000). «Projeto REFORSUS : análise das causas da baixa execução financeira do projeto : relatório de auditoria de desempenho». Revista do TCU (85): 93-134. ISSN 2594-6501 
  17. Neto, Milton Menezes da Costa (2000). A Implantação da Unidade de Saúde da Família (PDF). Brasília: Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. 44 páginas 
  18. Roque, Celso José; Galvão, Jussara Alves (2002). «Linha do Tempo : trajetória do PSF [Exposição]». A saúde bate à porta. Centro Cultural do Ministério da Saúde. Consultado em 28 de julho de 2025 
  19. Bittar, Telmo Oliveira; Meneghim, Marcelo de Castro; Mialhe, Fábio Luiz; Pereira, Antônio Carlos; Fornazari, Denise Helena (2009). «O Sistema de Informação da Atenção Básica como ferramenta da gestão em saúde». ista Da Faculdade De Odontologia - UPF. 14 (1): 77-81. doi:10.5335/rfo.v14i1.675 
  20. Macinko, James; de Fátima Marinho de Souza, Maria; Guanais, Frederico C.; da Silva Simões, Celso Cardoso (2007). «Going to scale with community-based primary care: An analysis of the family health program and infant mortality in Brazil, 1999–2004». Social Science & Medicine. 65 (10): 2070-2080. doi:10.1016/j.socscimed.2007.06.028 
  21. Aquino, Rosana; de Oliveira, Nelson F.; Barreto, Mauricio L. (2009). «Impact of the Family Health Program on Infant Mortality in Brazilian Municipalities». American Journal of Public Health. 99 (1): 87-93. doi:10.2105/AJPH.2007.127480 
  22. Rasella, Davide; Aquino, Rosana; Barreto, Mauricio L. (2010). «Reducing childhood mortality from diarrhea and lower respiratory tract infections in Brazil». Pediatrics. 126 (3): e534-e540. doi:10.1542/peds.2009-3197 
  23. Bastos, Mayara Lisboa; Menzies, Dick; Hone, Thomas; Dehghani, Kianoush; Trajman, Anete (7 de agosto de 2017). «The impact of the Brazilian family health on selected primary care sensitive conditions: A systematic review» (PDF). PLoS ONE. 12 (8): e0182336. doi:10.1371/journal.pone.0182336 
  24. Macinko, James; Dourado, Inês; Aquino, Rosana; Bonolo, Palmira de Fátima; Lima-Costa, Maria Fernanda; Medina, Maria Guadalupe; Mota, Eduardo; de Oliveira, Veneza Berenice; Turci, Maria Aparecida (2010). «Major expansion of primary care in Brazil linked to decline in unnecessary hospitalization». Health Affairs. 29 (12): 2149-2160. doi:10.1377/hlthaff.2010.0251 
  25. Rasella, D.; Harhay, M. O.; Pamponet, M. L.; Aquino, R.; Barreto, M. L. (3 de julho de 2014). «Impact of primary health care on mortality from heart and cerebrovascular diseases in Brazil: a nationwide analysis of longitudinal data». BMJ. 348: g4014. doi:10.1136/bmj.g4014 
  26. Paim, Jairnilson; Travassos, Claudia; Almeida, Celia; Bahia, Ligia; Macinko, James (2011). «The Brazilian health system: history, advances, and challenges». The Lancet. 377 (9779): 1778-1797. doi:10.1016/S0140-6736(11)60054-8