Yuewei Caotang Biji

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Anotações no Estúdio Yuewei
閱微草堂筆記
Yuewei Caotang Biji
Uma versão de 1933 do livro
Autor(es) Ji Yun
País Império Qing
Gênero Zhiguai
Biji
Lançamento 1800
Yuewei Caotang Biji
Chinês tradicional: 閱微草堂筆記
Chinês simplificado: 阅微草堂笔记

Yuewei Caotang Biji (em chinês: 閱微草堂筆記, Yuèwēi cǎotáng bǐjì), traduzido como "Anotações no Estúdio Yuewei"[1][2][3] (em referência à moradia siheyuan em que o autor habitou[4]), ou também em outros títulos mais literais e alternativos Notas da Cabana para se Examinar o Sutil,[5] Notas de uma Cabana de Palha sobre Observações Minuciosas[6] e Anotações Aleatórias da Cabana do Escrutínio Próximo,[7] é uma coletânea de contos sobrenaturais alegadamente verdadeiros, compilados, atestados e examinados por Ji Yun, acadêmico-oficial da Dinastia Qing.[8] Com aproximadamente 1.200 entradas, a maioria das histórias de Ji foram coletadas de seus amigos e colegas. Outras foram baseados em suas próprias experiências durante a infância e em encontros ao longo de sua longa carreira oficial.[9]

As histórias nas Notas apresentam muitos seres sobrenaturais, criptídeos e conceitos do folclore chinês, incluindo jiangshi, hulijing e yeren, além de fantasmas e espíritos.[10] Ji Yun nelas intercalou especulações e elaborou teorias para tentar explicar os fenômenos espirituais, em relação com sua crença na moralidade e na ordem cósmica existente entre o mundo espiritual e o material.

Histórico de publicação[editar | editar código-fonte]

Ji Yun publicou cinco volumes de histórias sobrenaturais de 1789 a 1798: Escrito para Passar a Temporada no Resort de Verão (灤陽消夏錄) em 1789, Assim Ouvi (如是我聞) em 1791, Anotações de Meu Alojamento Haidian (槐西雜誌) em 1792, Nenhum Mal em Escutar (姑妄聽之) em 1793, e Mais do Resort de Verão (灤陽續錄) em 1798.[9] Em 1800, seu pupilo Sheng Shiyan reuniu os volumes em uma única coleção, Yuewei caotang biji, em homenagem ao estúdio de Ji.[9]

Foto do Estúdio Yuewei

Ji Yun publicou cinco volumes de histórias sobrenaturais de 1789 a 1798: Escrito para Passar a Temporada no Resort de Verão (灤陽消夏錄) em 1789, Assim Ouvi (如是我聞) em 1791, Anotações de Meu Alojamento Haidian (槐西雜誌) em 1792, Nenhum Mal em Escutar (姑妄聽之) em 1793, e Mais do Resort de Verão (灤陽續錄) em 1798.[9] Em 1800, seu pupilo Sheng Shiyan reuniu os volumes em uma única coleção, Yuewei caotang biji, em homenagem ao estúdio de Ji, "Yuewei", sua moradia.[9][11]

A obra continha mais de 1200 contos sobrenaturais, baseados em testemunho próprio ou de seus amigos e conhecidos. Reunindo histórias que havia lembrado ou registrado por anos, elas incluíam relatos sobre espíritos de mortos, espíritos-raposas, jornadas ao reino dos mortos, possessão demoníaca de pessoas e objetos, em meio a narrativas sobre reencarnação, retribuição, premonições e fenômenos do leito de morte. O conteúdo revela elementos de sua crença pessoal, em que anotações, opiniões e explicações em meio às narrativas evidenciam a convicção do filósofo por uma moralidade baseada em causa e efeito, e sobre a interconexão do universo e a proximidade do mundo espiritual e material.[12][13] Ele tentava fazer uma "investigação de princípios", elaborando teorias e especulações gerais, a partir daquilo que os fenômenos espirituais apresentavam.[13]

Havia uma voga da chamada "conversas de fantasma e raposa" durante o reinado de Qianlong, a qual ocupava a atenção e escritos de diversos literatos como Ji Yun, que se dedicaram a narrativas de histórias estranhas. Entre todas as coletâneas da época, o livro de Ji Yun contém o maior número dessas narrativas. Ji Yun também foi influenciado pelo beletrismo, pois havia formado junto a outros amigos escritores um círculo literário em que realizaram encontros e trocas de poemas por anos, a partir de 1748. Seu gosto por histórias sobrenaturais também provinha de antepassados da família, principalmente de seu pai.[14]

O livro de Ji Yun é usado como uma importante fonte que indica que um dos passatempos favoritos da elite era a prática da escrita de espíritos (fuji); nele, conta sobre mais de um especialista da prática, e afirma que seu pai podia distinguir se a entidade era um imortal ou um fantasma comum. Ele relata ter presenciado poemas proféticos de escrita de espíritos, e inclusive uma pintura que teria previsto uma cena que ele vivenciou posteriormente.[14]

Figura sobrenatural no Álbum de Pinturas de Fantasmas (século XVIII) de Luo Ping

No auge do sobrenaturalismo, estava ocorrendo também um movimento contrário de antisuperstição que caracterizou o "Iluminismo" chinês do século XVIII: pensadores racionalistas como Qian Daxin e Hong Liangji pertenciam ao círculo Ji Yun, porém criticavam crenças e práticas sobrenaturais.[15] Ji Yun afirmava que fraudes eram muito comuns nesse campo, porém admitia que a previsão do futuro poderia ocorrer em alguns casos bem sucedidos, verificados posteriormente. Ele desenvolveu uma teoria filosófica que tentava explicar de forma racional como a manifestação de informação por oráculos e espíritos era dependente do fator humano, de forma a conciliar destino e predestinação com a responsabilidade humana. Para isso, reformulou o antigo conceito de ling (poder numinoso ou espiritual) para a explicação da adivinhação, centralizando-o na mente dos humanos vivos: afirmou que os oráculos eram objetos imateriais sem ling próprio, mas que, com a atuação do ling dos humanos e do qi universal, ocorria a eficácia e surgia o sentido, auspicioso ou inauspicioso. Também assim na interação com espíritos, que segundo ele se utilizam do ling de médiuns.[16][17][18] Segundo Michael Lackner, essa explicação psicológica se assemelha à de Carl Jung em suas teorias para o inconsciente e a sincronicidade. Ji Yun escreveu:[16]

"O que chamamos de espíritos não são por si só, mas dependem dos humanos. As varetas de milefólio [usadas ​​para a divisão de I Ching] e os cascos de tartaruga são madeira seca e ossos podres, mas a capacidade de conhecer o que é auspicioso e o que é desfavorável depende nos humanos para fazê-los dormir. (...) Parece que os espíritos se comunicam com o que a mente aventa, e as imagens formam presságios a partir daquilo pelo que os mecanismos do qi vieram à existência. Essas questões seguem o mesmo princípio de dividir as varetas de milefólio e aquecer a carapaça da tartaruga: parece ser um milagre, mas (de fato) não é"

Porém, isso não significava que, para Ji Yun, os espíritos e outros fenômenos sobrenaturais não existiam, mas apenas que a percepção e manifestação dos fenômenos era condicionada de acordo com a mente humana. Ele próprio afirmava já ter enxergado fantasmas: "No entanto, tenho visto frequentemente com meus próprios olhos os traços físicos de fantasmas que retornam. Os fantasmas e espíritos são confusos e obscuros, e quando você realmente pensa sobre isso, você não entende como eles são".[16]

Ele também sugeriu a teoria de que vários espíritos apareciam servindo sob um mesmo nome, geralmente de uma alegada divindade.[19] Ji Yun considerava, além do mais, a especificidade cultural sobre os fenômenos estranhos e sobrenaturais: ele especula se cada nação possui seu reino dos mortos distinto, pois os relatos que coletara de jornadas espirituais apenas indicavam espíritos chineses; e na região de Xinjiang, apontou a existência de uma variante folclórica única, em que os espíritos-raposa não eram vistos como monstros.[20]

Ji Yun realizou no livro a mais sistemática descrição e análise na literatura chinesa sobre a natureza e evolução espiritual dos espíritos-raposas, elaborando-lhes uma teoria do desenvolvimento, afirmando que eles eram seres com vários graus de progresso e melhoramento, que se humanizavam cada vez mais e se transformavam em contato com os homens e a cultura.[21] Para isso se baseou na etnografia de vários contos de espíritos-raposa e investiga seus relatos, dando uma explicação que, segundo Rania Huntington, se assemelha àquela dos seres elementares de Paracelso para sua natureza como seres intermediários: indicou seu caráter de trickster e seres mutáveis, que podem se encontrar em vários estágios, mas que adquirem cultura e forma humana.[22]

Com intenção moralista, ele escrevia convicto sobre a intervenção espiritual de acordo com propósitos e fundamentava o conteúdo didático que os contos ensinavam. Os racionalistas confucianos proibiam a consulta de espíritos e escrever sobre o sobrenatural, e por isso Ji Yun se colocou contrário a eles, denunciando o neoconfucianismo. Em uma quadra, ele escreveu:[23]

"As causas e efeitos cármicos são provados sem sombra de dúvida,
Uma carroça cheia de fantasmas reunidos em anotações desconexas.
Que a palavra seja passada aos discípulos de Cheng-Zhu:
O colecionador de anedotas não pertence à companhia dos confucionistas."

Significado literário[editar | editar código-fonte]

Com essa obra, Ji Yun tornara-se um dos três grandes escritores de contos estranhos na dinastia Qing (os outros dois foram Pu Songling e Yuan Mei). O gênero do estranho era relacionado aos seguintes subgêneros de contos clássicos: zhiguai (relatos do estranho), chuanqi (histórias de maravilhas) e biji (anotações aleatórias).[24][25][26]

De acordo com Leo Tak-Hung Chan, as Notas são a "coleção de zhiguai mais volumosa do final da China imperial" e também uma das mais incompreendidas.[8] A maioria dos contos coletados por Ji foram contribuídos por seus amigos e conhecidos, muitos dos quais eram ilustres funcionários do governo, acadêmicos e membros da pequena nobreza. Como tal, Chan argumentou que as Notas fornecem uma visão única sobre como a elite cultural da China do século XVIII via o sobrenatural, complicando as noções populares de que a elite chinesa durante este período era formada apenas por "racionalistas confucionistas".[8]

Traduções seletas[editar | editar código-fonte]

Há várias traduções da obra em inglês, italiano e alemão.[27]

Inglês[editar | editar código-fonte]

  • Real Life in China at the Height of Empire: Revealed by the Ghosts of Ji Xiaolan (tr. David Pollard). Chinese University of Hong Kong Press, 2014. ISBN 9629966018.
  • Shadows in a Chinese Landscape: The Notes of a Confucian Scholar, (tr. David L. Keenan). M.E. Sharpe, 1999. ISBN 0765639025
  • The Shadow Book of Ji Yun: The Chinese Classic of Weird True Tales, Horror Stories, and Occult Knowledge (tr. Yi Izzy Yu and John Yu Branscum). Empress Wu Books, 2021.

Italiano[editar | editar código-fonte]

  • Note scritte nello studio yuewei (tr. Bozza, Edi). Bollati Boringhieri, 1992.

Referências

  1. Xiaolan, Ji; Bozza, Edi (tradutor) (1992). Note scritte nello studio yuewei (em italiano). [S.l.]: Bollati Boringhieri 
  2. Schmaltz, Marcia (26 de outubro de 2022). «O tigre no ano do dragão». Aletria. 21 (2) 
  3. Cajaty, Paula (agosto de 2012). «A urgência de contar». Rascunho (148) 
  4. Ma, Lan (2014). An Analysis of Beijing's Hutongs and Siheyuans: An Urban Tree Approach. The Pennsylvania State University. p. 26
  5. Yun, Chi; Keenan, David (5 de dezembro de 2016). Shadows in a Chinese Landscape: Chi Yun's Notes from a Hut for Examining the Subtle (em inglês). [S.l.]: Taylor & Francis 
  6. 紀昀 (1998). 纪晓岚志怪故事选 (em inglês). [S.l.]: New World Press 
  7. Chan, Leo Tak-hung (1993). "Random Jottings from the Cottage of Close Scrutiny: excerpts; By Ji Yun". Renditions. pp. 95-103.
  8. a b c Chan, Leo Tak-Hung (1993). «Narrative as Argument: The Yuewei caotang biji and The Late Eighteenth-Century Elite Discouse on The Supernatural». Harvard Journal of Asiatic Studies. 53 (1): 25-62. doi:10.2307/2719467 
  9. a b c d e Pollard, ed. (2014). Real Life in China at the Height of Empire: Revealed by the Ghosts of Ji Xiaolan. Hong Kong: The Chinese University of Hong Kong Press. ISBN 9629966018 
  10. Yu; Branscum, eds. (2021). The Shadow Book of Ji Yun: The Chinese Classic of Weird True Tales, Horror Stories, and Occult Knowledge. [S.l.]: Empress Wu Books. pp. xv – xxiii. ISBN 1953124011 
  11. Ma, Lan (2014). An Analysis of Beijing's Hutongs and Siheyuans: An Urban Tree Approach. The Pennsylvania State University. p. 26
  12. Yun, Chi; Keenan, David (5 de dezembro de 2016). Shadows in a Chinese Landscape: Chi Yun's Notes from a Hut for Examining the Subtle (em inglês). [S.l.]: Taylor & Francis 
  13. a b Chan, Leo Tak-Hung (1 de novembro de 1998). The Discourse on Foxes and Ghosts: Ji Yun and Eighteenth-Century Literati Story-telling (em inglês). [S.l.]: University of Hawaii Press. pp. 111–149 
  14. a b Chan, Tak-hung Leo (1998). The Discourse on Foxes and Ghosts: Ji Yun and Eighteenth-century Literati Storytelling (em inglês). [S.l.]: Chinese University Press. p. 66-75 
  15. Chan, Leo Tak-Hung (1 de novembro de 1998). The Discourse on Foxes and Ghosts: Ji Yun and Eighteenth-Century Literati Story-telling (em inglês). [S.l.]: University of Hawaii Press. p. 81 
  16. a b c Lackner, Michael (28 de abril de 2020). «Foreword: Chinese Literati and Intellectuals on Mantic Arts: A Philosophy of Divination?». In: Lackner, Michael; Tam, Kwok-kan; Gänssbauer, Monika; Yip, Terry Siu Han. Fate and Prognostication in the Chinese Literary Imagination (em inglês). [S.l.]: BRILL 
  17. Lackner, Michael (2017). "Scholar Meets Expert – The Traditional Chinese Elite’s Assessment of Mantic Practices". Fate, Freedom and Prognostication, Strategies for Coping with the Future in East Asia and Europe. International Consortium for Research in Humanities.
  18. Lackner, Michael (25 de setembro de 2023). «A Credulous Skeptic: Ji Yun on the Mantic Arts and Spirit-Writing». In: Schumann, Matthias; Valussi, Elena. Communicating with the Gods. Spirit-Writing in Chinese History and Society. [S.l.]: BRILL. Ji is known as the editor-in-chief of the largest anthology in Chinese history, the Siku quanshu 四庫全書 
  19. Hammond, Charles E. (junho de 2008). «What Yuan Mei Spoke of». Journal of Chinese Religions. 36 (1): 95, nota 57. ISSN 0737-769X. doi:10.1179/073776908803501114 
  20. Huntington, Rania (26 de outubro de 2020). «The Weird in the Newspaper». In: Zeitlin, Judith T. Writing and Materiality in China: Essays in Honor of Patrick Hanan (em inglês). [S.l.]: BRILL. p. 391, nota 104 
  21. Huntington, Rania (23 de março de 2020). Alien Kind: Foxes and Late Imperial Chinese Narrative (em inglês). [S.l.]: BRILL. p. 73-85; 94, nota 10; 104 
  22. Huntington, Rania (23 de março de 2020). Alien Kind: Foxes and Late Imperial Chinese Narrative (em inglês). [S.l.]: BRILL. p. 324 em diante 
  23. Chan, Leo Tak-Hung (1 de novembro de 1998). The Discourse on Foxes and Ghosts: Ji Yun and Eighteenth-Century Literati Story-telling (em inglês). [S.l.]: University of Hawaii Press. pp. 228–232 
  24. Huntington, Rania (23 de março de 2020). Alien Kind: Foxes and Late Imperial Chinese Narrative (em inglês). [S.l.]: BRILL. pp. 25–30 
  25. Chen, Jianguo (2009). The Aesthetics of the "beyond": Phantasm, Nostalgia, and the Literary Practice in Contemporary China (em inglês). [S.l.]: University of Delaware Press 
  26. Lu, Sheldon H. (31 de maio de 2007). Chinese Modernity and Global Biopolitics: Studies in Literature and Visual Culture (em inglês). [S.l.]: University of Hawaii Press 
  27. Lackner, Michael (12 de junho de 2018). «Introduction». Coping with the Future: Theories and Practices of Divination in East Asia (em inglês). [S.l.]: BRILL