Aniki Bóbó

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Aniki Bóbó
Portugal Portugal
1942 •  pb •  68 mn min 
Género drama
Direção Manoel de Oliveira
Produção António Lopes Ribeiro
Roteiro Manoel de Oliveira e João Rodrigues de Freitas (livro)
Elenco António Palma
António Santos
António Soares
Armando Pedro
Feliciano David
Fernanda Matos
Horácio Silva
Manuel de Azevedo
Nascimento Fernandes
Música Jaime Silva, Filho
Diretor de fotografia António Mendes
Companhia(s) produtora(s) Tobis Portuguesa
Distribuição Lisboa Filme
Lançamento 18 de Dezembro de 1942
Idioma português

Aniki Bóbó (1942) é um filme português de Manoel de Oliveira, a sua primeira longa metragem de ficção, obra retocada com certos traços realistas. O argumento baseia-se no conto Os Meninos Milionários, da autoria de João Rodrigues de Freitas (1908 -1976), escritor e advogado.

O filme estreia em Lisboa no cinema Eden[1][2] a 18 de Dezembro de 1942 [3]. Foi muitas vezes reexibido pela RTP, principalmente no período de Natal e do Ano Novo. Regressa às salas de Lisboa (Alvaláxia) e do Porto (Dolce Vita) em cópia restaurada a 8 de Dezembro de 2010. É simultaneamente lançado em DVD de alta-definição, no formato 2K (resolução de 2048×1080 píxeis)[4].

Sinopse[editar | editar código-fonte]

O filme ilustra as aventuras e os amores de rapazes de baixa condição social da cidade do Porto. É uma invocação da infância pelo olho da câmara, que recua à década de quarenta, em plena Segunda Grande Guerra e no auge do regime fascista de Oliveira Salazar. Por outras palavras, Aniki Bóbó realça «a paixão de um tímido rapaz por uma rapariga da sua escola, paixão que o fará ultrapassar os limites ensinados pelo mundo adulto (ao roubar uma boneca e viver com a culpa do seu gesto)» (cit. Francisco Valente).

Nessa história está envolvido um triângulo amoroso cujo vértice é a Teresinha e, na sua base, o Carlitos e o Eduardo. O Carlitos é um rapaz alto e sereno, vizinho da Teresinha, que dela não tira os olhos e que, quando não a vê, a espera ou a procura com pezinhos de lã em trajectos bem pensados, incluindo os telhados. O seu melhor e mais solidário amigo é o Pistarim, um baixote irrequieto, mau aluno mas grande nadador, que pouco consegue fazer por ele quanto ao almejado namoro. Nisso, o grande rival do Carlitos, o tal Eduardo, é bastante mais atrevido no assédio à Teresinha junto de quem exibe, como argumento convincente, o músculo que tem. Não perde além disso uma oportunidade de provocar o amigo em brincadeiras que o humilham, tanto na rua como na escola que frequentam, onde se distrai a alvejá-lo com a sua primorosa fisga, com infalível pontaria.

As velhas ruas do bairro pobre em que habitam e a zona ribeirinha da cidade do Porto são o palco das suas aventuras. É aí que se sentem felizes. É aí que a liberdade que procuram se alcança. Esses inestimáveis bens são apenas cerceados pela rigidez autoritária do seu professor, na escola, e na rua pela atenta vigilância que o polícia que por ali anda sobre eles exerce. O mestre-escola e o polícia tornam-se desse modo figuras simbólicas da repressão em causa, gente que eles não conseguem deixar de provocar ou de quem simplesmente não conseguem fugir. É esta a questão central da história, o ponto nevrálgico que leva o regime político vigente na época a reagir e a tomar as devidas precauções perante a ousadia do jovem realizador que tanto se identifica com essa canalha e assim denuncia o estado social que retrata.

Insensatamente e contra normas que devem ser cumpridas («Segue sempre por bom caminho…»), a paixão do Carlitos leva-o a roubar na Loja das Tentações, onde tudo se compra, uma linda boneca de que ela muito gosta. O expediente resulta. Com a oferta da boneca, o Carlitos aquenta-lhe o coração, mas o medo de ser descoberto e o sentimento de culpa atormentam-no. Entre inúmeras peripécias e cómicas situações, o drama agrava-se, ao ponto de ser a bem-amada a denunciar involuntariamente o delito. O dono da loja, comerciante mesquinho mas sensível, por fim comove-se. O crime é perdoado e tudo acaba em bem.

Os conflitos de interesse das classes sociais que se confrontam no filme, embora atenuados por crianças que os relectem e os representam, são motivo suficiente para que muitos comentadores considerem Aniki Bóbó um filme precursor do neo-realismo italiano no cinema, tanto pelas ideias que veicula como pelos seus ingredientes formais, pela sua estética.

Enquadramento histórico[editar | editar código-fonte]

O equívoco neo-realista ou o “qui” problemático[editar | editar código-fonte]

Aniki Bóbó tem sido destacado por inúmeros críticos e historiadores de cinema como um filme precursor do neo-realismo italiano [5] [6][7][8][9][10]. Tudo começa com um parágrafo do livro “História do Cinema” (1962) da autoria do historiador e crítico de arte francês André Bazin, um dos fundadores dos Cahiers du cinéma (1951) e com um breve texto por ele pouco depois publicado nessa revista. No artigo de um investigador português de cinema é dito que tal classificação dará origem a um «processo não isento de algumas categorizações problemáticas como foi, acima de todas, a que o relacionou retrospectivamente, já na década de cinquenta, com o cinema neo-realista italiano dos anos quarenta».[11][12].

Seleccionando alguns realizadores portugueses de 1940 a 1958, escreve Bazin sobre Aniki-Bóbó, a páginas 346 e 347 do seu livro, o seguinte: «Mau grado um certo sentimentalismo, o filme, simples, directo, vivo, foi sucesso excepcional, sobretudo se não esquecermos que é anterior ao neo-realismo italiano»[13]. No mesmo artigo do investigador, que reproduz esta frase, é logo a seguir destacado que a «referência directa ao realismo italiano» foi feita por Bazin nos Cahiers em 1957, numa breve referência publicada cerca de um ano depois de regressar a França, após uma visita a Portugal em que «privara longa e intimamente com Oliveira e pudera ver Douro, Faina Fluvial (1931) e O Pintor e a Cidade (1956) – mas não Aniki-Bóbó (!)». Na segunda referência de Bazin, aos Cahiers, Manoel de Oliveira é descrito «como “l’auteur de Aniki-Bobo qui, dès 1944 [sic] et sous l’influence directe du cinéma italien, s’accordait au grand mouvement néo-réaliste”». Em português: o autor de Aniki-Bóbó, que desde 1944 e por influência direta do cinema italiano, se identificava com o grande movimento neo-realista. Note-se que o “qui” de Bazin se refere ao autor e não ao filme. No entanto adverte-se prudentemente no mesmo artigo que «Não tendo visto o filme, Bazin talvez se apoiasse na Histoire du cinéma Mondial de Georges Sadoul, publicada em Paris em 1949, onde se estabelecia idêntica relação (embora menos directa) entre o filme de Oliveira e o cinema neo-realista italiano». No seu Dicionário dos Filmes, Sadoul classifica Aniki-Bóbó como «semi-documentário» e admite a possibilidade de ter sido influenciado pelo neo-realismo, «embora tenha sido feito cinco anos antes de Sciuscià» (1946) de Vittorio De Sica.

Numa outra citação de dois estudiosos e incontornáveis admiradores do celebrado cineasta, Manoel de Oliveira comenta o caso numa conversa em que confirma que ele, Bazin, quis ver o filme «mas eu não tive possibilidade de dispor da cópia. De regresso a Paris, escreveu um pequeno texto sobre mim nos Cahiers. Dizia que Aniki-Bóbó, que não tinha tido ocasião de ver, seguia o neo-realismo. Enviei-lhe uma carta para lhe fazer notar o seu erro. Bazin era muito culto, mas também muito intuitivo» [14]. Alertados pela gaffe, amigos e insuspeitos analistas de Oliveira acodem: neo-realismo, mesmo sendo coisa grande, no Manoel de Oliveira jamais, valha-nos Deus! «“Lirismo documental” (Luís de Pina), “verismo” (Roberto Nobre e João Bénard da Costa), “realismo poético” (Luís Neves Real e o próprio Oliveira», isso sim, com certeza! Garantindo não ser vulnerável a certas fraquezas plebeias, só talvez ao de leve, o «Mestre» explica-se de uma vez por todas, sem dar margem a equívocos: «Se se entrevê ou se sente, no decorrer do filme, qualquer aspecto de carácter social ou económico, o certo é que isso nunca foi ponto fundamental de estrutura ou construção. Como já não era em Douro, Faina Fluvial. Quando muito, em Aniki-Bóbó, intencionalmente, mas muito ao de leve, pretendi sugerir uma mensagem de amor e compreensão do semelhante, como advertência a uma sociedade que luta e se desespera em injustiças»[15].

Sobre “leves” mensagens destas, verismos ou realismos poéticos, no que toca «o momento mais precioso da história do cinema» há quem vá mais longe[16]. Aliás, a “estética da realidade” no cinema vai tão longe quanto Nanook of the North[17], filme de 1922, conhecido em português como Nanook, o esquimó[18], o primeiro documentário de longa-metragem da história do cinema, retocado com umas tantas pinceladas poéticas e certas atrevidas encenações.

O passado e o presente[editar | editar código-fonte]

Aniki Bóbó e Ala-Arriba[19], de Leitão de Barros, são filmes do mesmo ano e dificilmente se percebe por que motivo há quem considere o primeiro como uma obra com ingredientes do neo-realismo no cinema e ninguém fale do segundo nesse sentido, quando ambos contêm elementos próprios dessa estética. Os apregoados clichés que são virtude no primeiro (a intrusão do documentário, o realismo poético, o verismo, etc. e tal, além do recurso a actores não profissionais que representam papéis idênticos aos do seu quotidiano na vida real) estão bem presentes no segundo: num em comédia ligeira, no outro em pesado melodrama, nesse longínquo passado do cinema português.

Certas circunstâncias no entanto impõem modos de fabrico bem diferentes à produção desses filmes. Manoel de Oliveira, filho de um abastado fabricante de lâmpadas, com ajuda do pai e com generoso apoio de António Lopes Ribeiro, consegue adquirir equipamento e os meios necessários para fazer um filme independente numa época de sombrias dependências. Leitão de Barros reúne os meios de que precisa com os apoios que o Estado Novo concede à cultura e a ele se verga para o resto da vida. Manoel de Oliveira, por essas e outras, não poderá meter-se em grandes aventuras por uns bons quarenta anos[20]. Depois de esporádicas incursões na arte do cinema com alguns documentários e uma curta de ficção, A Caça, Oliveira só iniciará actividade regular em 1971 (O Passado e o Presente), graças a certas convergências com seus jovens colegas do Centro Português de Cinema e a hábeis influências movidas pelos tais amigos solidários com quem compartilha a sua fé.

Experiente nas suas lides e com os fartos meios de que dispõe, Leitão de Barros realiza o seu filme com grande desenvoltura, em imagens poderosas como as do construtivismo russo[21]. Diversifica abundantemente a escala e o ângulo dos seus planos para chegar aonde quer. Com mais escassa abundância, em tenra idade (34 anos), Manoel esmera-se numa fresca city synphony[22], estilo bem adequado, tal como no Douro, Faina Fluvial e em O Pintor e a Cidade, ao modo em como ele sente a sua terra.

Ficha artística[editar | editar código-fonte]

  • Horácio Silva (Carlitos)
  • António Pereira (Pistarim)
  • António Santos (Eduardinho)
  • Fernanda Matos (Teresinha)[23][24]
  • Nascimento Fernandes (Lojista)
  • Américo Botelho (Estrelas)
  • Feliciano David (Pompeu)
  • António Morais Soares (Pistarim)
  • Manuel de Sousa (Filósofo)
  • Rafael Mota (Rafael)
  • Vital dos Santos (Professor) [25]
  • Manuel de Azevedo (Cantor de Rua)
  • António Palma (Freguês) [26]
  • Armando Pedro (Caixeiro)
  • Pinto Rodrigues (Polícia)

Referências

  1. «Eden - Imóvel de Interesse Público»  na pág. da CML
  2. «Eden, o gigante dos Restauradores»  em Restos de Colecão
  3. «Aniki-Bóbó»  em Amor de Perdição
  4. «Aniki Bóbó, de Manoel de Oliveira, regressa às salas de cinema». Consultado em 9 de dezembro de 2010. Arquivado do original em 6 de dezembro de 2010  – Notícia Sapo (cinema), 03/12/2010
  5. «Aniki Bóbó»  na Encilopédia Britânica
  6. «Nota»  referente a Aniki-Bóbó, p. 12, Dictionary of Films, tradução em língua inglesa de Dictionnaire des films, Seuil, Paris, 1965 (Google Books)
  7. «Aniki-Bóbó (1942) - The Roots of Neo-Realism»  – artigo em Filmuforia, 20/05/13
  8. «Aniki Bóbó»  em The Movie Db
  9. «Aniki Bobo»  – (fr) artigo de Serge Kaganski em [Les Inrocks], 01/01/95
  10. «Aniki Bóbó»  – Cinecartaz do jornal Público (votos dos críticos)
  11. «Aniki-Bóbó, Fábula Humanista» (PDF). Consultado em 24 de janeiro de 2014. Arquivado do original (PDF) em 21 de fevereiro de 2014  – artigo de Tiago Baptista, escritor e investigador de cinema (entre outras actividades)
  12. «CV de Tiago Baptista». Consultado em 24 de janeiro de 2014. Arquivado do original em 21 de fevereiro de 2014 
  13. Histoire du Cinéma, André Bazin, p. 347, colecção J’AI LU, Librairie Flammarion, Paris,1962
  14. Cf. Antoine de Baecque e Jacques Parsi, Conversas com Manoel de Oliveira, Porto, Campo das Letras, 1999 (1ª ed. francesa, Paris, Editions Cahiers du Cinéma, 1996), pp.139-140
  15. «Notas sobre o cinedebate com o filme Aniki Bóbó»  no Centro Cultural da Ponte, 02/06/2011
  16. «The roots of neorealism»  – artigo ilustrado de Pasquale Iannone em [http://www.bfi.org.uk/ Film Forever (British Film Institute)
  17. «Nanook of the North»  (Wiki en)
  18. «"Nanook, O Esquimó": Discurso Documental em Consonância com as Estratégias Ficcionais» (PDF)  – Artigo de Tatyanne de Morais, Faculdades Integradas Barros Melo – AESO (Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
  19. «Ala Arriba». Consultado em 24 de janeiro de 2014. Arquivado do original em 11 de março de 2007  em Amor de Perdição (base de dados)
  20. «A travessia do deserto (Manoel de Oliveira, parte II)»  – artigo de Jorge Leitão Ramos no semanário Expresso, 11/12/08 (parte 2)
  21. «Construtivismo Russo e a Encomenda Social: Sergei M. Eisenstein» (PDF)  – artigo de Peterson Soares Pessoa, Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, pp. 597/605, 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 19 a 23 de agosto de 2008, Florianópolis
  22. «Urban Modernity and Fluctuating Time: "Catching the Tempo" of the 1920s City Symphony Films»  – artigo de Sarah Jilani em Senses of Cinema, setembro de 2013
  23. «Fernanda Matos: Actriz de um só filme, mas para sempre». CienciaHoje.pt. 3 de fevereiro de 2014. Cópia arquivada em 13 de fevereiro de 2017 
  24. «Fernanda Matos»  – declarações no Jornal do Minho
  25. «Rafael Mota»  na IMDb
  26. «António Palma»  na IMDb

Ver também[editar | editar código-fonte]

Ligações externas[editar | editar código-fonte]