Essencialismo
O essencialismo é uma doutrina filosófica segundo a qual os particulares (pessoas, cadeiras, árvores, números, etc.) têm pelo menos algumas propriedades essenciais.[1][2] Um particular tem uma certa propriedade essencial quando esse particular não poderia existir sem ter essa propriedade. Por exemplo, intuitivamente, Sócrates não poderia deixar de ter a propriedade de ser um ser humano; mas poderia não ter sido ateniense, se tivesse nascido noutra cidade.
Na biologia e outras ciências naturais, o essencialismo forneceu a justificativa para a taxonomia pelo menos até a época de Charles Darwin,[3] e teorias sociais mais antigas eram frequentemente conceitualmente essencialistas.[4]
A crença de que identidades sociais como raça, etnia, nacionalidade ou gênero são essenciais tem sido central para muitas ideologias discriminatórias ou extremistas.[5] Por exemplo, o essencialismo psicológico está correlacionado com preconceito racial.[6][7] Visões essencialistas sobre raça também demonstraram diminuir a empatia ao lidar com membros de outro grupo racial.[8] Nas ciências médicas, o essencialismo pode levar a uma visão reificada das identidades, levando a conclusões falaciosas e tratamento potencialmente desigual.[9]
Definições
[editar | editar código]A definição formal de propriedade essencial é a seguinte:
- Um particular tem uma dada propriedade essencialmente se, e só se, esse particular tem essa propriedade em todos os mundos possíveis nos quais esse particular existe.
Deste modo, podemos distinguir as propriedades essenciais das propriedades necessárias:
- Um particular tem uma propriedade necessariamente se, e só se, esse particular tem essa propriedade em todos os mundos possíveis.
Dada a definição, só os existentes necessários — os particulares que existem em todos os mundos possíveis — podem ter propriedades necessárias. Os particulares contingentes, como as pessoas, as árvores, etc., só podem ter propriedades essenciais, mas não necessárias.
Um particular tem uma dada propriedade contingentemente quando tem efectivamente essa propriedade, mas poderia não ter; ou, na linguagem dos mundos possíveis, quando esse particular tem essa propriedade no mundo tal como é, mas não a tem em alguns mundos possíveis.
Há propriedades essenciais triviais, como a propriedade de não ser mais alto do que si próprio. Este tipo de propriedades essenciais não caracterizam a tese do essencialismo, que defende a existência de propriedades essenciais substanciais, como a propriedade que a água tem de ser H2O, ou a propriedade que Sócrates tem de ser um ser humano, ou a propriedade que o João tem de ser filho de Maria.
História do essencialismo
[editar | editar código]As primeiras ideias essencialistas foram defendidas por Aristóteles, mas caíram em desgraça com o nascimento da ciência moderna; tais ideias foram "condenadas por associação pecaminosa", isto é, por estarem de algum modo relacionado com a metafísica medieval, considerada incompatível com a ciência moderna. Quine condena o essencialismo em parte por causa deste preconceito, e em parte porque o essencialismo pressupõe a noção de que o mundo tem uma natureza independente do modo como o pensamos ou descrevemos (realismo), ao qual Quine se opunha igualmente.
Willard Van Orman Quine, em "Three Grades of Modal Involvement", caracterizou da seguinte maneira o essencialismo: "A doutrina de que alguns dos atributos de uma coisa (inteiramente independente da linguagem em que a coisa é referida, se é que é referida) pode ser essencial à coisa, e outros, acidentais."[10]
Quine opõe-se ao essencialismo por considerar que as coisas não têm em si mesmas propriedades essenciais ou acidentais; tudo depende da maneira como as descrevemos. Para provar esta tese, Quine apresenta os famosos argumentos do ciclista matemático e dos planetas. Mas nenhum dos argumentos consegue fazer mais do que refutar a teoria linguística da necessidade, desenvolvida por Carnap e rejeitada por Quine. A nova teoria essencialista apresentada por Kripke e outros filósofos não é abalada pelos argumentos de Quine.
Actualmente muitos filósofos aceitam o essencialismo substancial de Kripke; outros, todavia, continuam a rejeitar estas ideias, favorecendo a ideia positivista de que a lógica, ou a linguagem, é "a mãe da necessidade".
Um dos avanços mais significativos da filosofia do século XX foi o facto de Saul Kripke ter mostrado claramente que as refutações fáceis do essencialismo, que pareciam mostrar que se tratava de uma teoria irremediavelmente defeituosa, resultavam na verdade de uma confusão elementar entre palavras e coisas. Se os nomes próprios não forem encarados como designadores rígidos, ou se não se admitir outros designadores quaisquer que sejam rígidos, é impossível refutar o essencialismo, mas fica-se com a sensação falsa de que se refuta o essencialismo. Isto porque nesse caso se consegue mostrar trivialmente que a frase "Sócrates era um ser humano" é falsa em alguns mundos possíveis, nomeadamente, nos mundos possíveis em que não estamos a falar de Sócrates, mas de outro particular referido pelo nosso nome "Sócrates". Só que, como não estamos já a falar de Sócrates, mas de outro particular, não conseguimos refutar realmente o essencialismo: apenas confundimos palavras com coisas. Seria como tentar provar que Cavaco Silva, presidente de Portugal, poderia ter sido Mário Soares: num mundo possível em que ele perdeu as eleições e em que Mário Soares ganhou as eleições, a expressão "o presidente da República" refere Mário Soares. Mas pensar que, por causa disto, Cavaco Silva poderia ter sido Mário Soares, é confundir palavras com coisas.
Referências
- ↑ Robertson Ishii, Teresa; Atkins, Philip (2023). Zalta, Edward N.; Nodelman, Uri, eds. «Essential vs. Accidental Properties». Metaphysics Research Lab, Stanford University. Consultado em 19 de outubro de 2025
- ↑ Cartwright, Richard L. (24 de outubro de 1968). «Some Remarks on Essentialism». The Journal of Philosophy (20). 615 páginas. doi:10.2307/2024315
- ↑ Ereshefsky, Marc (2001). «Philosophy of Biological Classification». John Wiley & Sons, Ltd (em inglês). ISBN 978-0-470-01590-2. doi:10.1038/npg.els.0003447
- ↑ Kurzwelly, Jonatan; Rapport, Nigel; Spiegel, Andrew D. (2 de abril de 2020). «Encountering, explaining and refuting essentialism». Anthropology Southern Africa (em inglês) (2): 65–81. ISSN 2332-3256. doi:10.1080/23323256.2020.1780141. Consultado em 19 de outubro de 2025
- ↑ Kurzwelly, Jonatan; Fernana, Hamid; Ngum, Muhammad Elvis (2 de abril de 2020). «The allure of essentialism and extremist ideologies». Anthropology Southern Africa (em inglês) (2): 107–118. ISSN 2332-3256. doi:10.1080/23323256.2020.1759435
- ↑ Chen, Jacqueline M.; Ratliff, Kate A. (junho de 2018). «Psychological Essentialism Predicts Intergroup Bias». Social Cognition (em inglês) (3): 301–323. ISSN 0278-016X. doi:10.1521/soco.2018.36.3.301. Consultado em 19 de outubro de 2025
- ↑ Mandalaywala, Tara M.; Amodio, David M.; Rhodes, Marjorie (maio de 2018). «Essentialism Promotes Racial Prejudice by Increasing Endorsement of Social Hierarchies». Social Psychological and Personality Science (em inglês) (4): 461–469. ISSN 1948-5506. PMC 7643920
. PMID 33163145. doi:10.1177/1948550617707020. Consultado em 19 de outubro de 2025
- ↑ «How Should Educators and Publishers Eliminate Racial Essentialism?». AMA Journal of Ethics (em inglês) (3): E201–211. 1 de março de 2022. ISSN 2376-6980. doi:10.1001/amajethics.2022.201
- ↑ Duster, Troy (18 de fevereiro de 2005). «Race and Reification in Science». Science (em inglês) (5712): 1050–1051. ISSN 0036-8075. doi:10.1126/science.1110303. Consultado em 19 de outubro de 2025
- ↑ The Ways of Paradox, New York: Random House, 1966, p. 173
Ligações externas
[editar | editar código]- «Britânica» (em inglês)