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Confederalismo democrático: diferenças entre revisões

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{{Socialismo libertário}}
{{Socialismo libertário}}


'''Confederalismo democrático''',<ref name="Ocalan-Democratic-Confederalism">{{Cite book|title=Democratic Confederalism|last=Öcalan|first=Abdullah|isbn=978-3-941012-47-9|publisher=Transmedia Publishing Ltd.|year=2011|location=London}}</ref> também conhecido como '''Comunalismo curdo''' ou '''Apoismo''' (derivado do apelido de seu fundador {{nota de rodapé|Seguidores de Öcalan e membros do PKK são conhecidos por seu nome diminuto como ''Apocu'' (Apoitas), e seu movimento é conhecido como ''Apoculuk'' (Apoismo).<ref>{{cite book|url=https://books.google.com/books?id=Q9lfQvRL7J4C&pg=PA32|title=Turkey and the War on Terror: For Forty Years We Fought Alone|author=Andrew Mango|isbn=978-0-415-35002-0|year=2005|publisher=Taylor & Francis|page=32}}</ref>}}), é um conceito político-social teorizado pelo [[Ativista política|ativista político]] [[Turquia|turco]] de origem [[Curdos|curda]] [[Abdullah Öcalan]] e que é inspirado principalmente pelas ideias preconizadas pelo [[filósofo]] [[Socialismo libertário|socialista libertário]] [[Murray Bookchin]] sobre [[Ecologia social (teoria filosófica)|ecologia social]] e [[Comunalismo (política)|municipalismo libertário]].<ref name="utopia1">{{cite web|last1=Bookchin|first1=Debbie|url=https://www.nybooks.com/daily/2018/06/15/how-my-fathers-ideas-helped-the-kurds-create-a-new-democracy/|title=How My Father’s Ideas Helped the Kurds Create a New Democracy|work=The New York Review of Books|date=2018-06-15|accessdate=2016-05-20}}</ref><ref name="utopia2">{{cite web|last1=Enzinna|first1=Wes|url=http://www.nytimes.com/2015/11/29/magazine/a-dream-of-utopia-in-hell.html|title=A Dream of Secular Utopia in ISIS' Backyard|work=The New York Times|date=2015-11-24|accessdate=2020-07-02}}</ref><ref name="Paul-White">Paul White, "Democratic Confederalism and the PKK's Feminist Transformation," in ''The PKK: Coming Down from the Mountains'' (London: Zed Books, 2015), pp. 126–149.</ref>
'''Confederalismo democrático''' (em [[Língua curda|curdo]]: ''Demokratik Konfederalizm'';<ref name="Ocalan-Confederalismo-Democrático">{{Cite book|url=http://ocalanbooks.com/downloads/PT-BR-confederalismo_democratico_2016.pdf|title=Confederalismo democrático|last=Öcalan|first=Abdullah|isbn=978-85-5700-045-2|publisher=Rizoma|year=2016|location=Rio de Janeiro}}</ref> também conhecido como '''Comunalismo curdo''' ou '''Apoismo''', este derivado do apelido de seu fundador {{nota de rodapé|Seguidores de Öcalan e membros do PKK são conhecidos por seu nome diminuto como ''Apocu'' (Apoitas), e seu movimento é conhecido como ''Apoculuk'' (Apoismo).<ref>{{cite book|url=https://books.google.com/books?id=Q9lfQvRL7J4C&pg=PA32|title=Turkey and the War on Terror: For Forty Years We Fought Alone|author=Andrew Mango|isbn=978-0-415-35002-0|year=2005|publisher=Taylor & Francis|page=32}}</ref>}}) é um conceito político-social teorizado pelo [[Ativista política|ativista]] [[Turquia|turco]] de origem [[Curdos|curda]] [[Abdullah Öcalan]] de um sistema de auto-organização democrática em forma de [[confederação]] baseado em princípios do [[ecologismo]], do [[feminismo]], da [[democracia direta]], do [[Multiculturalismo|pluralismo cultural]], do [[cooperativismo]], da [[Defesa pessoal|autodefesa]], da [[autogestão]] e do [[autonomismo]].<ref name="Ocalan-Confederalismo-Democrático" /><ref name="Alter-Confederalismo-Democrático" /><ref name="Ocalan-Guerra-Paz">{{Cite book|url=http://www.freedom-for-ocalan.com/linguas/hintergrund/schriften/Ocalan-Guerra-e-paz-no-Curdistao.pdf|title=Guerra e paz no Curdistão:Perspectivas para uma solução política da questão curda|last=Öcalan|first=Abdullah|publisher=International Initiative Freedom for Abdullah Ocalan – Peace in Kurdistan|year=2008|location=Köln}}</ref><ref name="Revolucao-Ignorada">{{Cite book|title=A Revolução Ignorada. Liberação da Mulher, Democracia Direta e Pluralismo Radical no Oriente Médio|last=Dirik|first=Dilar|chapter=Confederalismo Democrático|isbn=978-8569536079|publisher=Autonomia Literária|year=2016|location=São Paulo|chapter-url=https://books.google.com/books?id=sM5SDwAAQBAJ&pg=PT45&lpg=PT45&dq=PKK+marxista-leninista#v=onepage}}</ref> Sistematizado por Öcalan feitos na prisão a partir de seus estudos sobre [[Ecologia social (teoria filosófica)|ecologia social]], [[Municipalismo Libertário|municipalismo libertário]], [[jineologia]] (ou "feminismo curdo"), [[Médio Oriente|historia do Oriente Médio]], [[nacionalismo]] e [[Teoria Geral do Estado|teoria geral do Estado]], o conceito é apresentado como a solução para a [[questão curda]], bem como de outros problemas fundamentais em países da região profundamente enraizados à [[Classe social|sociedade de classes]], e a possibilidade concreta da libertação e da democratização para os povos em todo o mundo.<ref name="Ocalan-Confederalismo-Democrático"/><ref name="Alter-Confederalismo-Democrático">{{cite web|last=Öcalan|first=Abdullah|url=http://cga.libertar.org/wp-content/uploads/2017/10/CONFEDERALISMO-DEMOCR%C3%81TICO.pdf|title=Confederalismo Democrático|work=Convergência de Grupos Autônomos|translator1=Bülend Karadağ|translator2=Daniel de Oliveira Cunha|date=2018-06-15|accessdate=2016-05-20}}</ref><ref name="Ocalan-Guerra-Paz" /><ref name="Revolucao-Ignorada" />


Embora em sua origem a luta do [[Partido dos Trabalhadores do Curdistão]] (''Partiya Karkerên Kurdistanê'', PKK) tenha sido guiada pela perspectiva de criação de um Estado nacional curdo a partir de um viés [[Marxismo-leninismo|marxista-leninista]], Öcalan desiludiu-se com o modelo de [[estado-nação]] e o [[socialismo estatal]], percebendo equívocos nessa ideologia a respeito da libertação nacional e social dos povos.<ref name="Alter-Confederalismo-Democrático" /><ref name="declaration">[[Abdullah Öcalan|Öcalan, Abdullah]],[http://www.freemedialibrary.com/index.php/Declaration_of_Democratic_Confederalism_in_Kurdistan Declaration of Democratic Confederalism in Kurdistan] {{webarchive|url=https://web.archive.org/web/20160929163726/http://www.freemedialibrary.com/index.php/Declaration_of_Democratic_Confederalism_in_Kurdistan|date=2016-09-29}}, 20-03-2005, {{en}}</ref><ref name="utopia1">{{cite web|last1=Bookchin|first1=Debbie|url=https://www.nybooks.com/daily/2018/06/15/how-my-fathers-ideas-helped-the-kurds-create-a-new-democracy/|title=How My Father’s Ideas Helped the Kurds Create a New Democracy|work=The New York Review of Books|date=2018-06-15|accessdate=2016-05-20}}</ref> Influenciado por ideias de [[Filosofia ocidental|pensadores ocidentais]] como o sociólogo [[Immanuel Wallerstein]] e, principalmente, o [[Anarquismo|anarquista]] e [[Ecologia social (teoria filosófica)|ecologista social libertário]] [[Murray Bookchin]] - em especial pelos conceitos sobre [[Ecologia social (teoria filosófica)|ecologia social]] e [[Comunalismo (política)|municipalismo libertário]] deste autor<ref name="utopia1" /><ref name="haaretz-shilton">{{cite web|url=https://www.haaretz.com/middle-east-news/.premium.MAGAZINE-amid-syria-s-darkness-a-democratic-egalitarian-and-feminist-society-emerges-1.7339983|title=In the Heart of Syria's Darkness, a Democratic, Egalitarian and Feminist Society Emerges|last=Shilton|first=Dor|date=2019-06-09|publisher=Haaretz|accessdate=2020-07-02}}</ref><ref name="utopia2">{{cite web|last1=Enzinna|first1=Wes|url=http://www.nytimes.com/2015/11/29/magazine/a-dream-of-utopia-in-hell.html|title=A Dream of Secular Utopia in ISIS' Backyard|work=The New York Times|date=2015-11-24|accessdate=2020-07-02}}</ref> -, Öcalan reformulou profundamente os objetivos políticos do movimento de libertação curdo, abandonando o velho projeto [[Socialismo estatal|socialista estatista e centralizador]] por uma radical e renovada proposta de [[socialismo democrático]]-[[Socialismo libertário|libertário]] que não almeja mais a construção de um [[Lista de Estados soberanos|estado nacional independente]] da [[Turquia]] (e que agregasse territórios de maioria populacional curdas do [[Irão]], do [[Iraque]] e da [[Síria]]), mas do estabelecimento de uma entidade autônoma, democrática e descentralizada a partir das ideias do chamado ''confederalismo democrático''.<ref name="Ocalan-Confederalismo-Democrático" /><ref name="Alter-Confederalismo-Democrático" /><ref name="Ocalan-Guerra-Paz" /><ref name="Revolucao-Ignorada" />
Em suas obras, Bookchin defende que a submissão e a destruição da [[natureza]] são a continuação da submissão de outros [[Humano|seres humanos]] ao [[capitalismo]].<ref name="haaretz-shilton">{{cite web|url=https://www.haaretz.com/middle-east-news/.premium.MAGAZINE-amid-syria-s-darkness-a-democratic-egalitarian-and-feminist-society-emerges-1.7339983|title=In the Heart of Syria's Darkness, a Democratic, Egalitarian and Feminist Society Emerges|last=Shilton|first=Dor|date=2019-06-09|publisher=Haaretz|accessdate=2020-07-02}}</ref> Estabelecendo uma conexão entre a [[Crise ecológica|crise ambiental]] e a [[sociedade capitalista]], o filósofo americano observa que a estrutura social da humanidade precisa ser repensada e transformada de uma sociedade capitalista destrutiva para uma sociedade social ecológica que mantenha um equilíbrio entre suas partes e onde suas comunidades possam organizar suas vidas de forma independente a partir de um ente municipal-confederativo.<ref name="Bookchin-Social-Ecology">{{cite book|url=http://new-compass.net/sites/new-compass.net/files/Bookchin%27s%20Social%20Ecology%20and%20Communalism.pdf|title=Social Ecology and Communalism|last=Bookchin|first=Murray|isbn=978-1-904859-49-9|ref=harv|year=2006|publisher=AK Press}}</ref><ref name="Bookchin-Psichenatura">{{cite web|last=Bookchin|first=Murray|title=What is Social Ecology?|url=http://www.psichenatura.it/fileadmin/img/M._Bookchin_What_is_Social_Ecology.pdf|year=2007|publisher=psichenatura.it}}</ref><ref name="Stokols2018">{{cite book|url=https://books.google.com/books?id=T4mZDgAAQBAJ|title=Social Ecology in the Digital Age: Solving Complex Problems in a Globalized World|last=Stokols|first=Daniel|isbn=978-0-12-803114-8|year=2018|publisher=Elsevier Science|page=33}}</ref>


Refutando tanto o [[autoritarismo]] e o [[Burocracia|burocratismo]] do socialismo estatal quando a predação do [[capitalismo]], sistema visto por Öcalan como maior responsável pela [[Desigualdade social|desigualdades socioeconômicas]], pelo [[sexismo]] e pela destruição [[Meio ambiente|ambiental]] no mundo,<ref name="Ocalan-Guerra-Paz" /><ref name="Revolucao-Ignorada" /><ref name="Paul-White">Paul White, "Democratic Confederalism and the PKK's Feminist Transformation," in ''The PKK: Coming Down from the Mountains'' (London: Zed Books, 2015), pp. 126–149.</ref> o ''confederalismo democrático'' defende um "tipo de organização ou administração pode ser chamado de administração política não-estatal ou democracia sem Estado",<ref name="Ocalan-Confederalismo-Democrático" /><ref name="Alter-Confederalismo-Democrático" /> que proporcionaria os marcos para a organização autônoma de "toda comunidade, grupo confessional, coletivo específico de gênero e/ou grupo étnico minoritário, entre outros".<ref name="Ocalan-Guerra-Paz" /> É um modelo de [[democracia direta]] construído sobre a autogestão de comunidades locais e a organização em conselhos abertos, conselhos de município, parlamentos locais e congressos gerais, onde os próprios cidadãos são os atores desse autogoverno, permitindo a indivíduos e comunidades exercerem influência real sobre seu ambiente e suas atividades em comum.'''''<ref name="Ocalan-Confederalismo-Democrático" /><ref name="Ocalan-Guerra-Paz" /><ref name="declaration" />''''' Inspirado no feminismo curdo nas fileiras do PKK, o ''confederalismo democrático'' estabelece a [[Igualdade de género|igualdade de gênero]] como um dos seus pilares centrais.'''''<ref name="Ocalan-Confederalismo-Democrático" /><ref name="Alter-Confederalismo-Democrático" /><ref name="Revolucao-Ignorada" />''''' Vendo o [[sexismo]] socialmente arraigado como "um produto ideológico do estado nacional e do poder" não "menos perigoso que o capitalismo, defende uma nova visão de sociedade a fim de desmontar as relações institucionais e psicológicas de poder estabelecidas atualmente nas [[Capitalismo|sociedades capitalistas]] e de assegurar às mulheres um papel vital e igual ao dos homens em todos os níveis da organização e tomada de decisão.<ref name="utopia1" /><ref name="haaretz-shilton" /> Outros princípios chaves do ''confederalismo democrático'' são o [[ambientalismo]], a [[Defesa pessoal|autodefesa]], o [[multiculturalismo]] (religioso, político, étnico e cultural), as [[Liberdades civis|liberdades individuais]] (como as [[Liberdade de expressão|de expressão]] ou de escolha), e uma [[economia]] do tipo compartilhada, onde o controle dos recursos econômicos não do Estado, mas da sociedade.<ref name="rojava-pluto">{{cite web|url=https://www.plutobooks.com/9781783719884/revolution-in-rojava/|title=Revolution in Rojava Democratic Autonomy and Women's Liberation in Syrian Kurdistan|publisher=Pluto Books|accessdate=2020-07-02}}</ref><ref>{{Cite book|title=Democratic Confederalism|last=Öcalan|first=Abdullah|isbn=978-3-941012-47-9|publisher=Transmedia Publishing Ltd.|year=2011|location=London|pages=21}}</ref><ref name="guardian-malik">{{cite web|url=https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/oct/27/syria-kurds-dreamt-of-rojava-revolution-assad-will-snuff-this-out|title=Syria’s Kurds dreamt of a ‘Rojava revolution’. Assad will snuff this out|last=Malik|first=Kenan|date=2019-10-27|publisher=Guardian|accessdate=2020-07-02}}</ref><ref name="biehl dialectics">{{cite web|url=http://new-compass.net/articles/bookchin-öcalan-and-dialectics-democracy|title=Bookchin, Öcalan, and the Dialectics of Democracy|last=Biehl|first=Janet|date=2012-02-16|publisher=New Compass|accessdate=2014-01-27}}</ref> Ainda que se apresente como um modelo oposto ao estado nacional, o confederalismo democrático acredita na possibilidade, sob circunstâncias específicas, de coexistência pacífica entre ambos, desde que não haja intervenção em assuntos centrais da autogestão nem tentativas de [[Assimilação cultural|assimilação social]].'''<ref name="Ocalan-Confederalismo-Democrático" />''<ref name="Alter-Confederalismo-Democrático" />''''' Ademais, embora tenha sido teorizada inicialmente como uma nova base social e ideológica para o movimento curdo, o ''confederalismo democrático'' apresenta-se como um conceito teórico [[Multiculturalismo|multiétnico]] e [[internacionalista]].'''''<ref name="Ocalan-Guerra-Paz" />'''''<ref name="utopia1" />
Profundamente desiludido com o modelo de [[estado-nação]] e com o próprio [[socialismo estatal]], do qual já havia começado a se afastar antes mesmo de sua captura em 1999,<ref name="haaretz-shilton" /> Öcalan ficou fascinado pelos conceitos sobre ecologia social de Bookchin, e essas ideias inspiraram, juntamente com as influências do emergente [[feminismo]] curdo da [[década de 1990]] e de civilizações mesopotâmicas da [[Idade Antiga]], a reformulação dos objetivos principais do movimento nacionalista curdo no [[Médio Oriente|Oriente Médio]].<ref name="utopia1" />


As linhas gerais do ''confederalismo democrático'' foram apresentadas em março de 2005, através de uma declaração "ao povo curdo e à [[comunidade internacional]]"<ref name="declaration" /> e, nos anos posteriores, o conceito foi desenvolvido com maior profundidade com o lançamento de um livro com título homônino e na publicação em quatro volumes do ''"Manifesto da Civilização Democrática''".<ref name="Alter-Confederalismo-Democrático" /> Pouco depois de divulgado, a declaração foi imediatamente adotada pelo PKK, que organizou assembleias clandestinas na [[Turquia]], na [[Síria]] e no [[Iraque]], das quais resultou a criação da [[União das Comunidades do Curdistão]] (''Koma Civakên Curdistão'', KCK), a organização política comprometida com a implementação do programa político. A chance de implementar o sistema de auto-organização democrática veio durante a [[Guerra Civil Síria|Guerra Civil da Síria]],<ref name="utopia2" /><ref name="Paul-White" /> quando o [[Partido de União Democrática]] (''Partiya Yekîtiya Demokrat'', PYD) declarou a autonomia de três cantões de [[Curdistão sírio|Rojava]] (também conhecido como Curdistão sírio).<ref name="rojava-pluto" /><ref name="guardian-malik" /><ref name="nyt-krajeski">{{cite web|url=https://www.nytimes.com/2019/10/14/opinion/trump-syria-kurds-turkey.html|title=What the World Loses if Turkey Destroys the Syrian Kurds|last=Krajeski|first=Jenna|date=2019-10-14|publisher=The New York Times|accessdate=2020-07-02}}</ref><ref name="nyt-marcus">{{cite web|url=https://www.nytimes.com/2020/07/01/style/autonomous-zone-anarchist-community.html|title=In the Autonomous Zones|last=Marcus|first=Ezra|date=2020-07-01|publisher=The New York Times|accessdate=2020-07-02}}</ref>
A partir de suas leituras e interpretações das obras de Bookchin, Öcalan concluiu que a [[autodeterminação]] do povo curdo não passava mais pela luta por um [[Lista de Estados soberanos|Estado curdo politicamente independente]] da [[Turquia]] e também de outras nações com populações curdas na região, como [[Irão]], o [[Iraque]] e a [[Síria]]; mas sim pela defesa e construção de uma entidade social democrática autônoma e descentralizada, descrita por Öcalan como ''"uma administração política não estatal ou uma democracia sem Estado"'', que impediria a criação de um governo centralizado e opressor aos seus povos, oferecendo autonomia semelhante a todos os seus sujeitos e permitindo a indivíduos e comunidades que exercessem influência real sobre seu ambiente e suas atividades em comum.<ref name="utopia1" /><ref name="haaretz-shilton"/><ref name="diplo1">{{cite web|author=Benjamin Fernandez|title=Murray Bookchin, écologie ou barbarie|url=https://www.monde-diplomatique.fr/2016/07/FERNANDEZ/55910|date=Julho de 2016|publisher=Le Monde diplomatique|language=fr}}</ref>


Alguns dos conceitos-chave do confederalismo democrático são a cooperação conjunta e multiétnica em sistemas organizacionais e de tomada de decisão autogerenciados, a [[democracia direta]], o [[Multiculturalismo|pluralismo cultural]], a ativa participação política, a [[economia]] do [[Cooperativismo|tipo cooperativista]], o [[meio ambiente]], e o feminismo.<ref name="rojava-pluto">{{cite web|url=https://www.plutobooks.com/9781783719884/revolution-in-rojava/|title=Revolution in Rojava Democratic Autonomy and Women's Liberation in Syrian Kurdistan|publisher=Pluto Books|accessdate=2020-07-02}}</ref><ref>{{Cite book|title=Democratic Confederalism|last=Öcalan|first=Abdullah|isbn=978-3-941012-47-9|publisher=Transmedia Publishing Ltd.|year=2011|location=London|pages=21}}</ref><ref name="guardian-malik">{{cite web|url=https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/oct/27/syria-kurds-dreamt-of-rojava-revolution-assad-will-snuff-this-out|title=Syria’s Kurds dreamt of a ‘Rojava revolution’. Assad will snuff this out|last=Malik|first=Kenan|date=2019-10-27|publisher=Guardian|accessdate=2020-07-02}}</ref><ref name="biehl dialectics">{{cite web|url=http://new-compass.net/articles/bookchin-öcalan-and-dialectics-democracy|title=Bookchin, Öcalan, and the Dialectics of Democracy|last=Biehl|first=Janet|date=2012-02-16|publisher=New Compass|accessdate=2014-01-27}}</ref> Indo além do conceito de [[patriarcado]] presente nas obras de Bookchin, Öcalan presume que será preciso uma nova visão de sociedade e, principalmente, uma avaliação pessoal profunda por parte dos homens, a fim de desmontar as relações institucionais e psicológicas de poder estabelecidas atualmente nas sociedades capitalistas e de assegurar às mulheres um papel vital e igual ao dos homens em todos os níveis da organização e tomada de decisão.<ref name="utopia1" /><ref name="haaretz-shilton"/>

Embora tenha sido teorizada inicialmente como uma nova base social e ideológica para o movimento curdo, o confederalismo democrático apresenta-se como um conceito teórico [[Multiculturalismo|multiétnico]] e [[internacionalista]].<ref name="utopia1" /><ref name="utopia2" /> Visto por Öcalan como a solução ideal para muitos conflitos nacionais e religiosos no Oriente Médio,<ref name="declaration">[[Abdullah Öcalan|Öcalan, Abdullah]],[http://www.freemedialibrary.com/index.php/Declaration_of_Democratic_Confederalism_in_Kurdistan Declaration of Democratic Confederalism in Kurdistan] {{webarchive|url=https://web.archive.org/web/20160929163726/http://www.freemedialibrary.com/index.php/Declaration_of_Democratic_Confederalism_in_Kurdistan|date=2016-09-29}}, 20-03-2005, {{en}}</ref> o confederalismo democrático foi posto em prática pela primeira vez pelas [[Unidades de Proteção Popular]] de [[Curdistão sírio|Rojava]] que entraram em combate contra o [[Estado Islâmico do Iraque e do Levante|Estado Islâmico]] durante a [[Guerra Civil Síria|Guerra Civil da Síria]].<ref name="rojava-pluto" /><ref name="guardian-malik" /><ref name="nyt-krajeski">{{cite web|url=https://www.nytimes.com/2019/10/14/opinion/trump-syria-kurds-turkey.html|title=What the World Loses if Turkey Destroys the Syrian Kurds|last=Krajeski|first=Jenna|date=2019-10-14|publisher=The New York Times|accessdate=2020-07-02}}</ref><ref name="nyt-marcus">{{cite web|url=https://www.nytimes.com/2020/07/01/style/autonomous-zone-anarchist-community.html|title=In the Autonomous Zones|last=Marcus|first=Ezra|date=2020-07-01|publisher=The New York Times|accessdate=2020-07-02}}</ref>


== História ==
== História ==
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Esse processo de [[autocrítica]] ao [[marxismo-leninismo]] intensificou-se após a prisão de Öcalan pelos [[Serviço de inteligência|serviços de inteligência]] da [[Turquia]] em 1999. Enquanto tentava elaborar uma estratégia legal para sua própria defesa durante seu [[julgamento]] por traição e apelos subsequentes, Öcalan teve acesso a centenas de livros, incluindo [[Língua turca|traduções turcas]] de numerosos textos históricos e filosóficos do [[Filosofia ocidental|pensamento ocidental]]. Seu plano inicialmente era encontrar fundamentos teóricos nessas obras para legitimar as ações revolucionárias passadas do PKK e discutir a [[Rebelião curda na Turquia (1978–presente)|conflito entre turcos e curdos no século XX]] dentro uma análise abrangente do desenvolvimento do [[estado-nação]] ao longo da [[História]].<ref name="utopia1" /><ref name="haaretz-shilton" />
Esse processo de [[autocrítica]] ao [[marxismo-leninismo]] intensificou-se após a prisão de Öcalan pelos [[Serviço de inteligência|serviços de inteligência]] da [[Turquia]] em 1999. Enquanto tentava elaborar uma estratégia legal para sua própria defesa durante seu [[julgamento]] por traição e apelos subsequentes, Öcalan teve acesso a centenas de livros, incluindo [[Língua turca|traduções turcas]] de numerosos textos históricos e filosóficos do [[Filosofia ocidental|pensamento ocidental]]. Seu plano inicialmente era encontrar fundamentos teóricos nessas obras para legitimar as ações revolucionárias passadas do PKK e discutir a [[Rebelião curda na Turquia (1978–presente)|conflito entre turcos e curdos no século XX]] dentro uma análise abrangente do desenvolvimento do [[estado-nação]] ao longo da [[História]].<ref name="utopia1" /><ref name="haaretz-shilton" />


Dessa forma, Öcalan iniciou seus estudos a partir da [[mitologia suméria]] e das origens das [[Neolítico|culturas neolíticas]], bem como da história das primeiras [[Cidade-Estado|cidades-estados]].<ref name="utopia1" /> Mas foram as leituras de pensadores como [[Friedrich Nietzsche]] (que Öcalan chama de "profeta"), [[Fernand Braudel]], [[Immanuel Wallerstein]], [[Maria Mies]], [[Michel Foucault]], e particularmente [[Murray Bookchin]], que fizeram o líder curdo concluir sua transição [[Ideologia|ideológica]], de um defensor de um [[Socialismo estatal|socialismo estatista]] de [[Centralismo|viés centralizador]] para um [[Socialismo libertário|socialista de influência libertária]] que luta por um [[socialismo democrático]] cujo tipo de administração ''"pode ser chamada de administração política não estatal ou democracia sem Estado"''.<ref name="Ocalan-Democratic-Confederalism" />
Dessa forma, Öcalan iniciou seus estudos a partir da [[mitologia suméria]] e das origens das [[Neolítico|culturas neolíticas]], bem como da história das primeiras [[Cidade-Estado|cidades-estados]].<ref name="utopia1" /> Mas foram as leituras de pensadores como [[Friedrich Nietzsche]] (que Öcalan chama de "profeta"), [[Fernand Braudel]], [[Immanuel Wallerstein]], [[Maria Mies]], [[Michel Foucault]], e particularmente [[Murray Bookchin]], que fizeram o líder curdo concluir sua transição [[Ideologia|ideológica]], de um defensor de um [[Socialismo estatal|socialismo estatista]] de [[Centralismo|viés centralizador]] para um [[Socialismo libertário|socialista de influência libertária]] que luta por um [[socialismo democrático]] cujo tipo de administração ''"pode ser chamada de administração política não estatal ou democracia sem Estado"''.


Profundamente admirado pelas ideias contidas nas obras de Bookchin e em busca de orientação em seus estudos, Öcalan decidiu entrar em contato via [[e-mail]], por intermédio do [[Língua alemã|tradutor alemão]] Reimar Heider, com o próprio filósofo ecologista social em abril de 2004.<ref name="utopia1" /> A mensagem contava que Öcalan estava lendo, em sua pequena cela na ilha de İmralı, no [[mar de Mármara]], traduções turcas dos livros de Bookchin e que o ativista curdo se considerava um "bom aluno" de suas obras, as quais o próprio Öcalan estava recomendando ''"a todos os prefeitos de todos as cidade curdas e queria que todo mundo as lesse"''.<ref name="utopia1" /> Ainda na mensagem endereçada a Bookchin, é relatado que Öcalan estava reconstruindo uma nova estratégia política ''"em torno da visão de uma sociedade ecológica-democrática"'' e desenvolvendo um novo modelo político-social ''"para construir uma sociedade civil no Curdistão e no Oriente Médio"''.<ref name="utopia1" /> Embora Bookchin tenha relatado que estava doente demais para aceitar a entrevista, ele enviou uma carta de apoio em resposta, e outras mensagens foram trocadas entre as partes.<ref name="utopia2" />
Profundamente admirado pelas ideias contidas nas obras de Bookchin e em busca de orientação em seus estudos, Öcalan decidiu entrar em contato via [[e-mail]], por intermédio do [[Língua alemã|tradutor alemão]] Reimar Heider, com o próprio filósofo ecologista social em abril de 2004.<ref name="utopia1" /> A mensagem contava que Öcalan estava lendo, em sua pequena cela na ilha de İmralı, no [[mar de Mármara]], traduções turcas dos livros de Bookchin e que o ativista curdo se considerava um "bom aluno" de suas obras, as quais o próprio Öcalan estava recomendando ''"a todos os prefeitos de todos as cidade curdas e queria que todo mundo as lesse"''.<ref name="utopia1" /> Ainda na mensagem endereçada a Bookchin, é relatado que Öcalan estava reconstruindo uma nova estratégia política ''"em torno da visão de uma sociedade ecológica-democrática"'' e desenvolvendo um novo modelo político-social ''"para construir uma sociedade civil no Curdistão e no Oriente Médio"''.<ref name="utopia1" /> Embora Bookchin tenha relatado que estava doente demais para aceitar a entrevista, ele enviou uma carta de apoio em resposta, e outras mensagens foram trocadas entre as partes.<ref name="utopia2" />


Profundamente absorvido e inspirado pela filosofia da [[Ecologia social (teoria filosófica)|ecologia social]] de Bookchin (especialmente na prática política de [[Comunalismo (política)|municipalismo libertário]]), Öcalan começou a desenvolver uma crítica ao estado-nação que o fez interpretar o [[Autodeterminação (direito humano)|direito dos povos à autodeterminação]] como ''"a base para o estabelecimento de uma democracia de base, sem necessidade de buscar novas fronteiras políticas"''.<ref name="Ocalan-Democratic-Confederalism" /><ref name="utopia1" /> Além das ideias de Bookchin, Öcalan também encontrou inspiração na luta feminista do próprio movimento curdo, especialmente reconhecendo o sacrifício e à independência de uma geração de mulheres curdas liderada por [[Sakine Cansiz]], co-fundadora do PKK e uma figura-chave da organização que sobreviveu a anos de tortura nas prisões turcas na [[década de 1980]].<ref name="utopia1" /><ref name="Paul-White" />
Profundamente absorvido e inspirado pela filosofia da [[Ecologia social (teoria filosófica)|ecologia social]] de Bookchin (especialmente na prática política de [[Comunalismo (política)|municipalismo libertário]]), Öcalan começou a desenvolver uma crítica ao estado-nação que o fez interpretar o [[Autodeterminação (direito humano)|direito dos povos à autodeterminação]] como ''"a base para o estabelecimento de uma democracia de base, sem necessidade de buscar novas fronteiras políticas"''.<ref name="utopia1" /> Além das ideias de Bookchin, Öcalan também encontrou inspiração na luta feminista do próprio movimento curdo, especialmente reconhecendo o sacrifício e à independência de uma geração de mulheres curdas liderada por [[Sakine Cansiz]], co-fundadora do PKK e uma figura-chave da organização que sobreviveu a anos de tortura nas prisões turcas na [[década de 1980]].<ref name="utopia1" /><ref name="Paul-White" />


=== O manifesto ===
=== O manifesto ===

Revisão das 00h41min de 5 de julho de 2020

Confederalismo democrático (em curdo: Demokratik Konfederalizm;[1] também conhecido como Comunalismo curdo ou Apoismo, este derivado do apelido de seu fundador [nota 1]) é um conceito político-social teorizado pelo ativista turco de origem curda Abdullah Öcalan de um sistema de auto-organização democrática em forma de confederação baseado em princípios do ecologismo, do feminismo, da democracia direta, do pluralismo cultural, do cooperativismo, da autodefesa, da autogestão e do autonomismo.[1][3][4][5] Sistematizado por Öcalan feitos na prisão a partir de seus estudos sobre ecologia social, municipalismo libertário, jineologia (ou "feminismo curdo"), historia do Oriente Médio, nacionalismo e teoria geral do Estado, o conceito é apresentado como a solução para a questão curda, bem como de outros problemas fundamentais em países da região profundamente enraizados à sociedade de classes, e a possibilidade concreta da libertação e da democratização para os povos em todo o mundo.[1][3][4][5]

Embora em sua origem a luta do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (Partiya Karkerên Kurdistanê, PKK) tenha sido guiada pela perspectiva de criação de um Estado nacional curdo a partir de um viés marxista-leninista, Öcalan desiludiu-se com o modelo de estado-nação e o socialismo estatal, percebendo equívocos nessa ideologia a respeito da libertação nacional e social dos povos.[3][6][7] Influenciado por ideias de pensadores ocidentais como o sociólogo Immanuel Wallerstein e, principalmente, o anarquista e ecologista social libertário Murray Bookchin - em especial pelos conceitos sobre ecologia social e municipalismo libertário deste autor[7][8][9] -, Öcalan reformulou profundamente os objetivos políticos do movimento de libertação curdo, abandonando o velho projeto socialista estatista e centralizador por uma radical e renovada proposta de socialismo democrático-libertário que não almeja mais a construção de um estado nacional independente da Turquia (e que agregasse territórios de maioria populacional curdas do Irão, do Iraque e da Síria), mas do estabelecimento de uma entidade autônoma, democrática e descentralizada a partir das ideias do chamado confederalismo democrático.[1][3][4][5]

Refutando tanto o autoritarismo e o burocratismo do socialismo estatal quando a predação do capitalismo, sistema visto por Öcalan como maior responsável pela desigualdades socioeconômicas, pelo sexismo e pela destruição ambiental no mundo,[4][5][10] o confederalismo democrático defende um "tipo de organização ou administração pode ser chamado de administração política não-estatal ou democracia sem Estado",[1][3] que proporcionaria os marcos para a organização autônoma de "toda comunidade, grupo confessional, coletivo específico de gênero e/ou grupo étnico minoritário, entre outros".[4] É um modelo de democracia direta construído sobre a autogestão de comunidades locais e a organização em conselhos abertos, conselhos de município, parlamentos locais e congressos gerais, onde os próprios cidadãos são os atores desse autogoverno, permitindo a indivíduos e comunidades exercerem influência real sobre seu ambiente e suas atividades em comum.[1][4][6] Inspirado no feminismo curdo nas fileiras do PKK, o confederalismo democrático estabelece a igualdade de gênero como um dos seus pilares centrais.[1][3][5] Vendo o sexismo socialmente arraigado como "um produto ideológico do estado nacional e do poder" não "menos perigoso que o capitalismo, defende uma nova visão de sociedade a fim de desmontar as relações institucionais e psicológicas de poder estabelecidas atualmente nas sociedades capitalistas e de assegurar às mulheres um papel vital e igual ao dos homens em todos os níveis da organização e tomada de decisão.[7][8] Outros princípios chaves do confederalismo democrático são o ambientalismo, a autodefesa, o multiculturalismo (religioso, político, étnico e cultural), as liberdades individuais (como as de expressão ou de escolha), e uma economia do tipo compartilhada, onde o controle dos recursos econômicos não do Estado, mas da sociedade.[11][12][13][14] Ainda que se apresente como um modelo oposto ao estado nacional, o confederalismo democrático acredita na possibilidade, sob circunstâncias específicas, de coexistência pacífica entre ambos, desde que não haja intervenção em assuntos centrais da autogestão nem tentativas de assimilação social.[1][3] Ademais, embora tenha sido teorizada inicialmente como uma nova base social e ideológica para o movimento curdo, o confederalismo democrático apresenta-se como um conceito teórico multiétnico e internacionalista.[4][7]

As linhas gerais do confederalismo democrático foram apresentadas em março de 2005, através de uma declaração "ao povo curdo e à comunidade internacional"[6] e, nos anos posteriores, o conceito foi desenvolvido com maior profundidade com o lançamento de um livro com título homônino e na publicação em quatro volumes do "Manifesto da Civilização Democrática".[3] Pouco depois de divulgado, a declaração foi imediatamente adotada pelo PKK, que organizou assembleias clandestinas na Turquia, na Síria e no Iraque, das quais resultou a criação da União das Comunidades do Curdistão (Koma Civakên Curdistão, KCK), a organização política comprometida com a implementação do programa político. A chance de implementar o sistema de auto-organização democrática veio durante a Guerra Civil da Síria,[9][10] quando o Partido de União Democrática (Partiya Yekîtiya Demokrat, PYD) declarou a autonomia de três cantões de Rojava (também conhecido como Curdistão sírio).[11][13][15][16]


História

Antecedentes

Por mais que em suas origens o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (Partiya Karkerên Kurdistanê, PKK) e Abdullah Öcalan, seu principal ideólogo, defendessem a luta do movimento curdo por sua autodeterminação a partir de um viés marxista-leninista que resultasse na criação de um Estado nacional curdo, com o passar do tempo se fizeram nítidos os equívocos deste conceito de libertação nacional e social.[nota 2][7][8] Já a partir da década de 1990, Öcalan havia iniciado uma transição substancial no PKK de uma organização marxista-leninista inclinada a tomar o poder estatal para uma entidade que buscava uma forma de socialismo muito diferente daquela associada à antiga União Soviética.[7]

Esse processo de autocrítica ao marxismo-leninismo intensificou-se após a prisão de Öcalan pelos serviços de inteligência da Turquia em 1999. Enquanto tentava elaborar uma estratégia legal para sua própria defesa durante seu julgamento por traição e apelos subsequentes, Öcalan teve acesso a centenas de livros, incluindo traduções turcas de numerosos textos históricos e filosóficos do pensamento ocidental. Seu plano inicialmente era encontrar fundamentos teóricos nessas obras para legitimar as ações revolucionárias passadas do PKK e discutir a conflito entre turcos e curdos no século XX dentro uma análise abrangente do desenvolvimento do estado-nação ao longo da História.[7][8]

Dessa forma, Öcalan iniciou seus estudos a partir da mitologia suméria e das origens das culturas neolíticas, bem como da história das primeiras cidades-estados.[7] Mas foram as leituras de pensadores como Friedrich Nietzsche (que Öcalan chama de "profeta"), Fernand Braudel, Immanuel Wallerstein, Maria Mies, Michel Foucault, e particularmente Murray Bookchin, que fizeram o líder curdo concluir sua transição ideológica, de um defensor de um socialismo estatista de viés centralizador para um socialista de influência libertária que luta por um socialismo democrático cujo tipo de administração "pode ser chamada de administração política não estatal ou democracia sem Estado".

Profundamente admirado pelas ideias contidas nas obras de Bookchin e em busca de orientação em seus estudos, Öcalan decidiu entrar em contato via e-mail, por intermédio do tradutor alemão Reimar Heider, com o próprio filósofo ecologista social em abril de 2004.[7] A mensagem contava que Öcalan estava lendo, em sua pequena cela na ilha de İmralı, no mar de Mármara, traduções turcas dos livros de Bookchin e que o ativista curdo se considerava um "bom aluno" de suas obras, as quais o próprio Öcalan estava recomendando "a todos os prefeitos de todos as cidade curdas e queria que todo mundo as lesse".[7] Ainda na mensagem endereçada a Bookchin, é relatado que Öcalan estava reconstruindo uma nova estratégia política "em torno da visão de uma sociedade ecológica-democrática" e desenvolvendo um novo modelo político-social "para construir uma sociedade civil no Curdistão e no Oriente Médio".[7] Embora Bookchin tenha relatado que estava doente demais para aceitar a entrevista, ele enviou uma carta de apoio em resposta, e outras mensagens foram trocadas entre as partes.[9]

Profundamente absorvido e inspirado pela filosofia da ecologia social de Bookchin (especialmente na prática política de municipalismo libertário), Öcalan começou a desenvolver uma crítica ao estado-nação que o fez interpretar o direito dos povos à autodeterminação como "a base para o estabelecimento de uma democracia de base, sem necessidade de buscar novas fronteiras políticas".[7] Além das ideias de Bookchin, Öcalan também encontrou inspiração na luta feminista do próprio movimento curdo, especialmente reconhecendo o sacrifício e à independência de uma geração de mulheres curdas liderada por Sakine Cansiz, co-fundadora do PKK e uma figura-chave da organização que sobreviveu a anos de tortura nas prisões turcas na década de 1980.[7][10]

O manifesto

Em 20 de março de 2005, no dia do Ano Novo Curdo, Öcalan emitiu a "Declaração do Confederalismo Democrático no Curdistão", um manifesto que lançava a bases do confederalismo democrático.[6]

Implementação

O movimento curdo começou a formar assembleias clandestinas imediatamente na Turquia, na Síria e no Iraque, que resultaram em 2007 na criação da União das Comunidades do Curdistão (Koma Civakên Curdistão, KCK), a organização política comprometida com a implementação da ideologia do confederalismo democrático.[6] Além de reunir o PKK, o KCK também reúne todos os partidos políticos confederalistas democráticos do Curdistão, como o Partido de União Democrática (Partiya Yekîtiya Demokrat, PYD), Partido da Vida Livre do Curdistão (Partiya Jiyana Azad a Kurdistanê, PJAK) e Partido da Solução Democrática do Curdistão (Partî Çareserî Dîmukratî Kurdistan, PÇDK).

Foi durante a Guerra Civil na Síria que surgiu a oportunidade de implementar a nova doutrina política de Ocalan, quando o PYD declarou a autonomia de três cantões de Rojava, região que compreende partes do norte e nordeste do território sírio.[7][9][10]

Criando uma entidade política oposta ao estado-nação capitalista, Rojava experimentou uma experiência de sociedade democrática, descentralizada e não-hierárquica, baseada em ideias feministas, ecológicos, multiculturais, cooperativista, e da política participativa e de construção consensual.[11][13][15][16]

Ver também

Notas e referências

Notas

  1. Seguidores de Öcalan e membros do PKK são conhecidos por seu nome diminuto como Apocu (Apoitas), e seu movimento é conhecido como Apoculuk (Apoismo).[2]
  2. Em seu livro "Em defesa do povo" (publicado em alemão em 2010), Öcalan escreveu que "o desenvolvimento da autoridade e da hierarquia mesmo antes do surgimento da sociedade de classes é um ponto de virada significativo na história", acrescentando que "nenhuma lei da natureza exige que as sociedades naturais se transformem em sociedades hierárquicas baseadas no estado" e avaliando que seria um grande erro "a crença marxista de que a sociedade de classes é uma inevitabilidade."

Referências

  1. a b c d e f g h Öcalan, Abdullah (2016). Confederalismo democrático (PDF). Rio de Janeiro: Rizoma. ISBN 978-85-5700-045-2 
  2. Andrew Mango (2005). Turkey and the War on Terror: For Forty Years We Fought Alone. [S.l.]: Taylor & Francis. p. 32. ISBN 978-0-415-35002-0 
  3. a b c d e f g h Öcalan, Abdullah (15 de junho de 2018). «Confederalismo Democrático» (PDF). Convergência de Grupos Autônomos. Traduzido por Bülend Karadağ; Daniel de Oliveira Cunha. Consultado em 20 de maio de 2016 
  4. a b c d e f g Öcalan, Abdullah (2008). Guerra e paz no Curdistão:Perspectivas para uma solução política da questão curda (PDF). Köln: International Initiative Freedom for Abdullah Ocalan – Peace in Kurdistan 
  5. a b c d e Dirik, Dilar (2016). «Confederalismo Democrático». A Revolução Ignorada. Liberação da Mulher, Democracia Direta e Pluralismo Radical no Oriente Médio. São Paulo: Autonomia Literária. ISBN 978-8569536079 
  6. a b c d e Öcalan, Abdullah,Declaration of Democratic Confederalism in Kurdistan Arquivado em 2016-09-29 no Wayback Machine, 20-03-2005, (em inglês)
  7. a b c d e f g h i j k l m n Bookchin, Debbie (15 de junho de 2018). «How My Father's Ideas Helped the Kurds Create a New Democracy». The New York Review of Books. Consultado em 20 de maio de 2016 
  8. a b c d Shilton, Dor (9 de junho de 2019). «In the Heart of Syria's Darkness, a Democratic, Egalitarian and Feminist Society Emerges». Haaretz. Consultado em 2 de julho de 2020 
  9. a b c d Enzinna, Wes (24 de novembro de 2015). «A Dream of Secular Utopia in ISIS' Backyard». The New York Times. Consultado em 2 de julho de 2020 
  10. a b c d Paul White, "Democratic Confederalism and the PKK's Feminist Transformation," in The PKK: Coming Down from the Mountains (London: Zed Books, 2015), pp. 126–149.
  11. a b c «Revolution in Rojava Democratic Autonomy and Women's Liberation in Syrian Kurdistan». Pluto Books. Consultado em 2 de julho de 2020 
  12. Öcalan, Abdullah (2011). Democratic Confederalism. London: Transmedia Publishing Ltd. 21 páginas. ISBN 978-3-941012-47-9 
  13. a b c Malik, Kenan (27 de outubro de 2019). «Syria's Kurds dreamt of a 'Rojava revolution'. Assad will snuff this out». Guardian. Consultado em 2 de julho de 2020 
  14. Biehl, Janet (16 de fevereiro de 2012). «Bookchin, Öcalan, and the Dialectics of Democracy». New Compass. Consultado em 27 de janeiro de 2014 
  15. a b Krajeski, Jenna (14 de outubro de 2019). «What the World Loses if Turkey Destroys the Syrian Kurds». The New York Times. Consultado em 2 de julho de 2020 
  16. a b Marcus, Ezra (1 de julho de 2020). «In the Autonomous Zones». The New York Times. Consultado em 2 de julho de 2020 

Ligações externas