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14-bis

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14-bis
Avião
Predefinição:Info/Aeronave
O 14-bis, na sua configuração final, fotografado em novembro de 1906.
Descrição
Fabricante Alberto Santos Dumont
Período de produção 1
Aposentado em 4 de abril de 1907 (118 anos)
Especificações
Dimensões
Comprimento 9,70 m (31,8 ft)
Envergadura 11,20 m (36,7 ft)
Altura 3,40 m (11,2 ft)
Notas
Dados de múltiplas fontes, incluindo análises modernas.[1][2]

O 14-bis, também conhecido como Oiseau de Proie (francês para “ave de rapina”),[3] foi um avião construído pelo inventor brasileiro Alberto Santos Dumont que em 12 de novembro de 1906 conquistou o Prêmio Archdeacon e o Prêmio do Aeroclube da França ao realizar um voo de 220 metros em Paris.[4]

Diferentemente dos voos dos Irmãos Wright, que ocorreram em segredo e necessitaram de dispositivos de lançamento (trilhos e catapulta), os voos do 14-bis foram realizados em público, perante a imprensa e comissários do Aéro-Club, decolando por meios próprios a partir de um trem de pouso com rodas. Este feito público e autônomo é a razão pela qual Santos Dumont é amplamente considerado, especialmente no Brasil, como o "Pai da Aviação".[5]

Apesar de seu sucesso, o 14-bis era um projeto experimental com sérias limitações de estabilidade. Santos Dumont tentou melhorá-lo, mas após um acidente em 4 de abril de 1907, onde a aeronave se danificou ao tentar uma curva, ele decidiu abandonar o projeto. O inventor, sempre olhando para frente, canibalizou suas peças — principalmente o valioso motor Antoinette — para seus projetos seguintes, notavelmente o ultraleve Demoiselle, que se tornaria uma de suas aeronaves mais bem-sucedidas e a primeira a ser produzida em série.[6]

Contexto e concepção

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No início do século XX, o desafio da aviação estava dividido em duas frentes: os aeróstatos (mais leves que o ar, como os dirigíveis) e os aeródinos (mais pesados que o ar). Santos Dumont já era uma celebridade mundial por seus voos controlados em dirigíveis, tendo vencido o Prêmio Deutsch de la Meurthe em 1901 com seu dirigível Nº 6.[7]

A concepção do 14-bis é uma síntese de ideias. Sua estrutura celular de biplano foi diretamente inspirada nas pipas-caixa (box kites) do inventor australiano Lawrence Hargrave, conhecidas por sua notável estabilidade aerodinâmica.[8] O nome "14-bis" (ou "14-de novo") surgiu de sua concepção inicial. Santos Dumont primeiro testou o aeroplano acoplado ao seu dirigível Nº 14 em meados de 1906. A ideia era que o balão, preenchido com hidrogênio, compensasse o peso da máquina, facilitando os testes de controle e estabilidade. A aeronave era, literalmente, um "anexo" do dirigível 14. No entanto, o enorme arrasto aerodinâmico do balão impedia que o avião ganhasse velocidade, tornando o sistema inviável para o voo autônomo.[9]

Análise técnica

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O 14-bis era uma máquina notável por seu design inovador e pelo uso inteligente de materiais leves. Sua análise revela tanto a genialidade de Santos Dumont quanto os imensos desafios da engenharia aeronáutica pioneira.

Estrutura e materiais

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A filosofia de construção do 14-bis era criar a estrutura mais leve e resistente possível com a tecnologia da época. A fuselagem e a estrutura das asas eram feitas principalmente de bambu e pinho, conectados por juntas de alumínio e reforçados com fios de aço de piano para enrijecimento (contraventamento).[5]

  • Bambu: Escolhido por sua excepcional relação resistência-peso, o bambu funciona como um compósito natural, com fibras longitudinais de alta resistência à tração envoltas em uma matriz de lignina mais leve. Santos Dumont utilizou varas de bambu da Índia para as longarinas principais da fuselagem e das asas.[10]
  • Telas: As superfícies aerodinâmicas (asas e canard) eram cobertas com seda japonesa, escolhida por sua leveza, resistência e baixa porosidade. A seda era esticada e envernizada para se tornar impermeável ao ar, otimizando a sustentação.
  • Estrutura Celular Hargrave: A configuração de pipa-caixa das asas, com seis células (três de cada lado), conferia grande rigidez estrutural e estabilidade intrínseca. A fuselagem triangular passava entre as células, e o piloto ficava em pé em uma cesta de vime à frente do motor.

O peso total da aeronave vazia era de aproximadamente 160 kg, um feito notável para uma máquina com mais de 11 metros de envergadura.[2]

Aerodinâmica, estabilidade e controle

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O 14-bis era uma aeronave de configuração canard, com a superfície de controle de profundidade (e direção) à frente das asas principais. Essa configuração, combinada com o diedro acentuado das asas (cerca de 10 graus), tinha implicações profundas em sua estabilidade e controle. Análises modernas por CFD revelaram que o 14-bis era marginalmente estável longitudinalmente e instável direcionalmente.[1]

  • Estabilidade longitudinal (Arfagem): A estabilidade longitudinal é a tendência de uma aeronave retornar à sua atitude de voo original após uma perturbação no eixo de arfagem (nariz para cima ou para baixo). No 14-bis, o coeficiente de momento de arfagem era próximo de zero. Isso significa que a aeronave não tinha uma forte tendência a corrigir sua atitude sozinha, exigindo controle ativo e constante do piloto. A posição do centro de gravidade (CG) era crucial; um CG muito recuado a tornaria incontrolavelmente instável.[1]
  • Estabilidade lateral-direcional (rolagem e guinada): A aeronave era naturalmente instável no eixo direcional (guinada). O grande diedro das asas conferia forte estabilidade lateral (rolagem), mas a falta de uma empenagem vertical traseira significativa tornava-a suscetível à "guinada adversa". Santos Dumont descreveu a dificuldade de pilotá-lo como tentar "disparar uma flecha com as penas na frente".[5]

O sistema de controle era engenhoso e direto:

  • Arfagem e Guinada: Controlados por uma única superfície canard na proa, que era articulada universalmente. O piloto movia um volante para controlar o movimento de arfagem (subir/descer) e guinada (esquerda/direita).
  • Rolagem: Para o voo recorde de novembro, Santos Dumont adicionou ailerons octogonais entre as asas. O controle era revolucionário: ele os conectou por cabos a um arnês que vestia. Ao inclinar o corpo para os lados, ele acionava os ailerons, utilizando um método de controle que se tornaria a base para os sistemas modernos.[11]

Sistema de propulsão

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A potência era o coração do desafio. Santos Dumont precisava do motor mais leve e potente disponível.

  • Motor Antoinette V8: Ele escolheu o motor Antoinette 8V, projetado por Léon Levavasseur. Inicialmente, usou uma versão de 24 hp, mas para os voos de sucesso, instalou uma versão de 50 hp. Era um motor V8 a 90º, pesando apenas 86 kg, uma incrível relação peso-potência para a época. Ele possuía inovações como injeção direta de combustível (uma bomba injetava gasolina diretamente nos cilindros) e um sistema de arrefecimento evaporativo, onde a água era fervida em uma jaqueta ao redor dos cilindros e o vapor liberado, eliminando a necessidade de um radiador pesado.[12]
  • Hélice: A hélice propulsora (pusher) de duas pás era montada atrás das asas. Era feita com pás de alumínio rebitadas a um tubo de aço, com um diâmetro de aproximadamente 2,2 metros. A eficiência dessas hélices pioneiras era muito baixa. Análises sugerem uma eficiência propulsiva entre 20% e 40%, significativamente inferior aos mais de 70% alcançados pelas hélices cientificamente projetadas dos Irmãos Wright.[8] Mesmo assim, os 50 hp brutos do Antoinette, mesmo com baixa eficiência, eram suficientes para gerar o empuxo necessário para a decolagem e o voo.

Voos históricos

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O voo do Oiseau de Proie III na capa do Le Petit Journal de 25 de novembro de 1906, ilustrando o impacto cultural do evento.

A jornada do 14-bis até o voo foi uma série de testes públicos, erros e modificações rápidas.

  • Primeiros Saltos (Agosto-Setembro de 1906): Após abandonar o balão Nº 14, Santos Dumont realizou os primeiros testes no solo em Bagatelle. Em 13 de setembro, com o motor de 24 hp, conseguiu um "salto" de 7 a 11 metros, que terminou com o trem de pouso danificado. Ele então instalou o motor mais potente de 50 hp e rebatizou a aeronave de Oiseau de Proie.
  • 23 de Outubro de 1906: O Prêmio Archdeacon: Perante uma multidão e a comissão oficial do Aéro-Club de France, Santos Dumont fez várias tentativas. Após alguns saltos curtos, ele finalmente conseguiu um voo sustentado de 60 metros a uma altura de 2 a 3 metros. O voo durou 7 segundos e foi suficiente para vencer a Taça Archdeacon, destinada ao primeiro voo de mais de 25 metros. O evento foi documentado, cronometrado e homologado oficialmente, marcando o primeiro voo público de um mais-pesado-que-o-ar na Europa.[13]
  • 12 de Novembro de 1906: O Prêmio do Aéro-Club: Insatisfeito e buscando maior controle e distância, Santos Dumont fez modificações cruciais, incluindo a adição dos ailerons interplanares. No dia 12 de novembro, novamente em Bagatelle, ele realizou uma série de voos cada vez mais longos. O clímax foi um voo de 220 metros que durou 21,5 segundos. Com este feito, ele não apenas quebrou seu próprio recorde, mas também venceu o prêmio de 1.500 francos do Aéro-Club de France para o primeiro voo de mais de 100 metros.[14] Este voo foi a consagração definitiva do 14-bis e de seu inventor.

Controvérsia: 14-bis vs. Wright Flyer

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A questão de "quem voou primeiro" é uma das mais duradouras na história da aviação e depende largamente dos critérios utilizados.

Comparativo Técnico e de Critérios: 14-bis vs. Wright Flyer
Critério Wright Flyer (17 de dezembro de 1903) 14-bis (23 de outubro de 1906)
Decolagem Necessitava de um trilho de lançamento e, em ventos fracos, de uma catapulta para atingir a velocidade de voo. Não possuía trem de pouso com rodas. Decolou por meios próprios a partir do solo, utilizando um trem de pouso com rodas.
Publicidade e Verificação Os voos ocorreram em um local isolado (Kitty Hawk) com poucas testemunhas (membros da estação de salvamento local). Os irmãos Wright eram avessos à publicidade para proteger suas patentes. A documentação (incluindo a famosa foto) não foi imediatamente divulgada. Os voos foram eventos públicos, amplamente cobertos pela imprensa internacional e oficialmente observados, cronometrados e homologados pelo Aéro-Club de France, a autoridade aeronáutica da época.
Estabilidade e Controle Era inerentemente instável nos três eixos, seguindo a filosofia dos Wright de que um piloto poderia aprender a controlar uma máquina instável (como uma bicicleta). O controle era feito por torção da asa (wing-warping) para rolagem e um profundor canard. Era marginalmente estável longitudinalmente e instável direcionalmente, mas seu design baseado nas pipas de Hargrave buscava mais estabilidade intrínseca. O controle era feito por superfícies aerodinâmicas distintas (canard e ailerons).
Sistema de Propulsão Motor de 4 cilindros em linha, 12 hp, projetado e construído pelos próprios irmãos. Duas hélices propulsoras altamente eficientes (~70%), resultado de extensas pesquisas em túnel de vento. Motor comercial Antoinette V8 de 50 hp. Uma hélice propulsora de baixa eficiência (<40%). O sucesso do 14-bis deveu-se à força bruta do motor para superar o arrasto e a ineficiência da hélice.

Defensores dos irmãos Wright argumentam que eles realizaram o primeiro voo sustentado e controlado três anos antes de Santos Dumont. A Federação Aeronáutica Internacional (FAI), fundada em 1905, reconhece o voo de 17 de dezembro de 1903 como "o primeiro voo sustentado e controlado de uma aeronave motorizada mais pesada que o ar".[15]

Por outro lado, defensores de Santos Dumont, especialmente no Brasil e na França, argumentam que o 14-bis foi a primeira aeronave a cumprir todos os requisitos para um "voo verdadeiro" na época: decolar por meios próprios, em público e sob supervisão oficial. Eles destacam que os voos dos Wright não foram publicamente demonstrados de forma convincente até 1908, e a dependência de uma catapulta os desqualificaria como uma decolagem autônoma.[16]

Réplicas e Legado

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O 14-bis original foi desmontado, mas seu legado vive através de várias réplicas construídas ao longo do último século.

  • Réplicas Históricas: As primeiras réplicas foram construídas para comemorar aniversários do voo, mas muitas vezes usavam materiais e motores modernos por razões de segurança e praticidade.
  • Réplica do Musée de l'Air et de l'Espace: Uma réplica em escala real está em exibição no Musée de l'Air et de l'Espace em Le Bourget, Paris, perto de onde a aeronave original voou.[17]
  • Projeto Alan Calassa: A réplica mais fiel foi provavelmente a construída pelo brasileiro Alan Calassa e sua equipe no início dos anos 2000. Utilizando bambu, seda e um motor Antoinette original, a equipe conseguiu realizar voos curtos com a aeronave, notavelmente pilotada pela filha de Alan, Aline Calassa. Uma dessas réplicas voou na Esplanada dos Ministérios em Brasília em 2006.[18]
  • Cerimônia de Abertura das Olimpíadas Rio 2016: O 14-bis teve um papel de destaque na Cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Verão de 2016, com uma réplica "voando" sobre o estádio do Maracanã em uma homenagem a Santos Dumont como um dos grandes inventores do Brasil.[19]

Referências

  1. a b c da Silva, G.A.; de Oliveira, R.B.; Bernardes, G.P. (2006). «Analysis of geometric and flying characteristics of Santos-Dumont's 14-Bis» (PDF). ABCM. Proceedings of the 11th Brazilian Congress of Thermal Sciences and Engineering. Consultado em 15 de junho de 2024. Cópia arquivada (PDF) em 11 de janeiro de 2024 
  2. a b «Santos Dumont 14-bis». Aircraft Investigation and Research. Consultado em 15 de junho de 2024 
  3. Bruce, Stuart E. Mechanical Flight Flight, 20 February 1909, p.108
  4. «10 Milestone Flights». Air and Space Magazine 
  5. a b c Zorzetto, Ricardo (novembro de 2006). «100 anos no ar». Revista Pesquisa FAPESP. Consultado em 15 de junho de 2024 
  6. de Barros, Henrique Lins (2007). «De l'ingénieur à l'artiste: Santos-Dumont et l'Aérostation» (PDF). Passages de Paris - APEB-Fr. p. 5. Consultado em 15 de junho de 2024. ...le 4 avril 1907, après un accident, il décide d'abandonner le 14 bis. Son projet suivant sera la Demoiselle. 
  7. Hoffman, Paul (2003). Asas da Loucura: A extraordinária vida de Santos-Dumont. Rio de Janeiro: Objetiva. pp. 178–185. ISBN 978-85-7302-592-2 Verifique |isbn= (ajuda) 
  8. a b Gozzard, David (29 de janeiro de 2018). «Great Australians – Lawrence Hargrave». DavidGozzard.com. Consultado em 15 de junho de 2024 
  9. Barros, Henrique Lins de (2006). Santos-Dumont e a invenção do avião (PDF). Rio de Janeiro: CBPF. p. 13. ISBN 85-85752-16-5. Consultado em 15 de junho de 2024 
  10. Bessoni, Zeus Siqueira (2011). Avaliação da rigidez do bambu através de ensaios não-destrutivos (PDF) (Dissertação de Mestrado). Universidade de Brasília (UnB). p. 23. Consultado em 15 de junho de 2024. A leveza e a resistência do bambu já eram conhecidas desde longa data, tanto que Santos Dumont o utilizou na estrutura do 14 Bis. 
  11. Crispin, Jose A. (2018). The Legacy of Santos Dumont in Aeronautics (PDF). 31st Congress of the International Council of the Aeronautical Sciences. Consultado em 15 de junho de 2024 
  12. «Antoinette V-8: The engine of the 14 Bis» (PDF). Model Expo. Consultado em 15 de junho de 2024 
  13. Swopes, Bryan R. (2023). «23 October 1906». This Day in Aviation. Consultado em 15 de junho de 2024 
  14. «Como Santos Dumont inventou o avião» (PDF) 3 ed. , Sociedade Brasileira de Física, Revista Brasileira de Ensino de Física, 31 (3605), 2009 .
  15. «History of the FAI». Fédération Aéronautique Internationale. Consultado em 15 de junho de 2024 
  16. «The Case of Santos-Dumont». Wright-Brothers.org. Consultado em 15 de junho de 2024 
  17. «Alberto Santos-Dumont : de l'airship à l'aéroplane». Wokipi Aerostation. Consultado em 15 de junho de 2024 
  18. SORIMA NETO, JOÃO. «O retorno do 14-Bis». Revista Época. Consultado em 19 de abril de 2014 
  19. UOL, ed. (6 de agosto de 2016). «Voo do 14 Bis na abertura das Olimpíadas reacende polêmica com americanos». Consultado em 29 de junho de 2025 

Ligações externas

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