Artes liberais

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
(Redirecionado de Liberal Arts)
Philosophia et septem artes liberales
("Filosofia e As Sete Artes liberais"). De Herrad de Landsberg da obra Hortus Deliciarum (século XII).

Artes liberais é o termo que define uma metodologia de ensino, organizada na Idade Média, cujo conceito foi herdado da antiguidade clássica. Contemporaneamente, o conceito de artes liberais denota a formação multidisciplinar visando a formação plena, sem necessariamente ser profissionalizante.

Referem-se aos ofícios, disciplinas acadêmicas ou profissões ("artes") desempenhadas pelos homens livres. São compostas do Trivium (lógica, gramática, retórica) e do Quadrivium (aritmética, música, geometria, astronomia). Tal conceito foi posto em oposição às Artes Mechanicae (artes mecânicas),[1] consideradas próprias aos servos ou escravos.

A personificação das Sete Artes Liberais (Trivium et Quadrivium) foi um tema iconográfico muito comum nas artes medieval e moderna.

Artes liberais clássicas[editar | editar código-fonte]

O conceito de arte dado por Aristóteles, "a capacidade de produzir com raciocínio reto", ou ainda, "uma disposição suscetível de criação acompanhada de razão verdadeira", é capaz de fornecer alguns elementos acerca do conceito de artes liberais que os homens da Antiguidade e da Idade Média tinham.[carece de fontes?]

Entre os romanos, Cícero e Sêneca, idealizaram a educação liberal que, para os latinos era fundada principalmente na retórica. As artes liberais eram consideradas as disciplinas próprias para a formação de um homem livre, desligadas de toda preocupação profissional, mundana ou utilitária. Contrapõem-se às artes mecânicas [1] ou seja, às disciplinas não diretamente relacionadas a interesses imateriais, metafísicos e filosóficos, mas estritamente técnicos (voltados à produção de utilidades que sirvam às necessidade cotidianas do homem). Mediante o domínio das artes liberais, o homem seria capaz de produzir obras e ideias com poder de elevar o espírito humano para além dos interesses puramente materiais, rumo a um entendimento racional e livre da verdade.

Quanto ao conteúdo, as artes liberais clássicas não possuíam um número fechado de disciplinas. Por vezes, a dança, a poesia, a ginástica, a medicina e a arquitetura eram contadas como artes liberais.

Artes liberais no período medieval[editar | editar código-fonte]

Embora a expressão e o conceito de artes liberais tenha se originado na antiguidade, foi nas universidades medievais que adquiriu seu alcance e significado de Studium Generale. A partir de Marciano Capela no século VI d.C. convencionou-se enumerá-las em sete artes liberais.

No início da Idade Média, a educação liberal servia para preparar o clero e para a educação cortesã. Foi assim na reforma proposta por Alcuíno na Renascença carolíngia. Com o advento das universidades a partir do século XII, as artes liberais ganharam um aspecto propedêutico, servindo de iniciação aos graus superiores.

As sete artes liberais[editar | editar código-fonte]

Tradicionalmente, as sete artes liberais englobam, desde a Idade Média, dois grupos de disciplinas: o trivium, com as artes retórica, lógica (dialéctica) e gramática; o quadrivium, com música, aritmética, geometria e astronomia. O trivium concentra o estudo do texto literário por meio de três ferramentas de linguagem pertinentes à mente. O quadrivium engloba o ensino por meio de quatro ferramentas relacionadas à matéria e à quantidade.

O Trivium[editar | editar código-fonte]

Ver artigo principal: Trivium (educação)

Etimologicamente, trivium significa "o cruzamento e articulação de três ramos ou caminhos"[2] Esse grupo de disciplinas incluía a lógica (ou dialéctica), a gramática e a retórica. As artes do trivium teriam como objetivo desenvolver a expressão da linguagem.

Representações do Trivium
Lógica
(Dialéctica)
Gramática
'Retórica' Joos van
Wassenhove

(século XV)

O Quadrivium[editar | editar código-fonte]

Ver artigo principal: Quadrivium

O quadrivium, etimologicamente o cruzamento de quatro ramos ou caminhos.[2] Está voltado para o estudo da matéria, por meio do domínio das seguintes disciplinas: aritmética (a teoria dos números); em música (a aplicação da teoria do número), em geometria (a teoria do espaço) e em astronomia (a aplicação da teoria do espaço).[2] De acordo com a definição de Irmã Miriam Joseph,[3] a matéria teria como característica essencial o número e a extensão, temas analisados respectivamente pela aritmética e pela música, bem como pela geometria e astronomia.

No âmbito do quadrivium, a música é entendida como o estudo dos princípios musicais (educação musical), tais como harmonia, não podendo ser confundida com a música instrumental aplicada (uma das sete belas-artes). O objetivo destas artes ditas "da quantidade" era prover meios e métodos para o estudo da matéria, sujeitos a aprimoramento no âmbito das disciplinas ditas superiores.

Representações do Quadrivium
Aritmética
'Música',
Joos van
Wassenhove

(século XV).
Geometria
Astronomia
(Astrologia
clássica
)[4]

Estudos superiores[editar | editar código-fonte]

Santo Tomás de Aquino e Aristóteles, na ocasião em que (ao primeiro) foi dito: "Bene scripsisti de me, Thoma"

As disciplinas ditas superiores (de acordo com a definição dada pelos conceitos clássicos e medievais) formavam a parte central e preparatória do currículo das universidades medievais, preparando o aluno para entrar em contato com as três principais formações de tais centros de saber: a medicina, o direito e a teologia.

Como outras artes normativas, que ajustam ou regulam segundo um padrão ou norma, as artes da linguagem consistem em estudos práticos que ajustam a linguagem segundo uma norma, como por exemplo:

  1. o pensamento segundo a verdade;
  2. as palavras faladas e escritas segundo a correção; ou
  3. a comunicação segundo a eficácia.

É por isso que, no âmbito das artes liberais e dos princípios da educação superior, diz-se que "a verdade é a norma ou a meta da lógica", "a correção é a norma da gramática" ou "a eficácia é a norma da retórica".

Renascimento[editar | editar código-fonte]

Segundo os propugnadores de tal método educacional clássico, como Raimundo Lúlio, para que se possa penetrar em níveis de conhecimento superior das ciências, da metafísica ou da teologia, o indivíduo deve ser capaz de pensar de forma retilínea e coerente, fazendo uso correto e eficaz das palavras, nos mais variados níveis de discurso.

A partir do século XVI as artes liberais passaram por várias transformações que refletiam as mudanças daquela época. Com as descobertas científicas, as grandes navegações, a difusão da imprensa, o Renascimento e a Reforma, tornou-se necessário adaptar as artes liberais às demandas de seu tempo.

O Humanismo italiano renascentista continuou a tradição de ensino das artes liberais da Idade Média (ver: Renascença italiana e Humanismo renascentista). Mas enfatizou e renomeou os estudos iniciais, o trivium, aumentando a sua abrangência, conteúdo e significado no currículo de escolas e universidades, sob o ambicioso nome de Studia humanitatis.[5] Precursores das actuais humanidades, os Studia humanitatis mantinham o estudo da gramática e da retórica mas excluíam a lógica, e acrescentavam o estudo do grego, da filosofia moral e da poesia, tornada a matéria mais importante do grupo.[6][7]

University College Utrecht (Universidade de Utrecht, Holanda).

(Necessário incluir nota do porquê da imagem acima, ou seja, no contexto, qual a importância dela.)

Nesse contexto, o educador Comenius separou a educação superior da educação pré-universitária de jovens e crianças. Segundo seu currículo, haveria o estudo disciplinas das artes liberais embutidas no nível equivalente ao ensino médio: a gramática, a física, a matemática, a ética, a dialética e retórica, além das línguas clássicas e modernas.

Na Conferência "What does liberal education offer the civil society?”, realizada em Budapeste em 1996, Roger Martin, presidente do Moravian College (uma faculdade de artes liberais nos Estados Unidos), relembrou do papel de Comênius para desenvolver as artes liberais contemporâneas.[8] Essa conferência marcou a reintrodução das artes liberais como programa de ensino superior na Europa.

Iluminismo e a educação profissional oitocentista[editar | editar código-fonte]

As Artes Liberais não sobreviveriam ao iluminismo europeu, sendo substituídas pela educação superior profissional ou científica.

A educação liberal deu lugar à formação profissional a partir das reformas universitárias na Prússia, lideradas por Wilhelm von Humboldt e na educação universitária francesa após a revolução. A Escola Normal Superior e a Escola Politécnica visava a formação profissional e considerava a formação liberal como resquício da aristocracia. Gradualmente, a maior parte das universidades da Europa e do mundo, abandonaram a educação liberal. As primeiras faculdades do Brasil visavam a formação profissional e não a formação liberal e assim foi quando instituíram as universidades no país no século XX (ver: História da educação no Brasil). O conceito de educação superior liberal continuou a existir nos Estados Unidos.

Nos EUA e Canadá[editar | editar código-fonte]

Flagler College (Flórida).

Nos Estados Unidos e Canadá a educação interdisciplinar segue um esquema contemporâneo das artes liberais.[9]

Tipicamente um Bacharelado em Artes ou um Bacharelado em Ciências, em inglês Bachelor of Arts, sigla B.A. e Bachelor of Science abreviado B.S., leva quatro anos, estudando matérias obrigatórias e optativas dentro de chaves de disciplinas como:

Além das disciplinas tradicionais acima, há a possibilidade de estudar conjuntamente cursos técnicos, artísticos e profissionalizantes como Tecnologia da Informação, fotografia, design gráfico, administração.

O aluno pode declarar uma major (área de concentração de seus estudos) e uma minor (uma segunda área de concentração de estudos), com uma titulação específica (a exemplo: Bachelor of Arts, Major in Mathematics, Minor in Economics).

Além de programas vinculados à universidades há os chamados Liberal Arts Colleges que são pequenas faculdades, geralmente com maior investimento por aluno, com turmas e salas de aulas pequenas, forte ênfase em composição de ensaios, e demandam uma grande interação com os professores.[9]

Após concluir o bacharelado em artes liberais o estudante pode seguir carreiras profissionais, como medicina, direito, teologia; ou acadêmicas como o Master of Arts e o Doctor of Philosophy.[9]

No Brasil e em Portugal[editar | editar código-fonte]

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Universidade Federal de Juiz de Fora.

Os impedimentos coloniais no Brasil dificultaram o estabelecimento de educação superior antes da independência do país. Já no século XVIII, houve o curso de artes liberais no Colégio Jesuítico da Bahia, sendo banido seus diplomas superiores. Um certo João da Cointa é notado pelo Padre Anchieta de ter ensinado essas artes no litoral paulista. Assim, com a independência surgiram os cursos superiores de engenharia, direito e medicina, não voltados para uma educação liberal, mas uma educação tecnicista nos moldes das faculdades alemãs e francesas.

Apesar disso, há instâncias de brasileiros, como Gilberto Freyre, tendo se graduado nas Artes Liberais. Entretanto, somente no século XIX que se firmariam uma educação multidisciplinar humanística e científica com os bacharelados interdisciplinares.

As artes liberais contemporâneas não se limitam ao trivium e quatrivium, nem na formação clássica dos Liberal Arts colleges americanos do século XIX. Antes, essa educação busca conhecer as ciências, humanidades e tecnologias além de proficiência em análise quantitativa e comunicação eficiente.[10]

Chamados de Bacharelados Interdisciplinares no Brasil ou de Licenciatura em Estudos Gerais em Portugal [11], as Artes Liberais voltaram ser cursos de graduação na Europa e Brasil, inspirados no modelo americano. No Brasil há cursos interdisciplinares em várias universidades federais, como a UFBA, UFSB, UFJF, UFVJM, UFABC, UFSJ[12], UFRGS, UFERSA, UFC, UNILAB, UNIPAMPA, UNIFESP. Em Portugal, há o novo curso na Universidade de Lisboa.[13] Esses cursos permitem uma mobilidade do estudante através de departamentos e disciplinas, além de cobrar uma área de concentração, formando assim estudantes com conhecimentos amplos e habilidades profundas em uma área do saber. Com esse conhecimento, há a possibilidade de uma posterior formação profissional em um segundo ciclo ou pós-graduação.[14] O estudante sai preparado a adaptar às mudanças da sociedade, tecnologias e do mercado, além de estar pronto para avaliar e utilizar criticamente as informações.[11]

Em 2021, o Instituto Hugo de São Vítor, que oferece formação nas Artes Liberais por meio de cursos e livros, anunciou um projeto de financiamento coletivo para a construção de uma escola física, o Colégio São José, que irá utilizar a doutrina do Trivium e do Quadrivium como fundamento pedagógico.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. a b Hans Vredeman de Vries and the Artes Mechanicae Revisited. Piet Lombaerde, Brepols, 2005. (em inglês) ISBN 9782503518138 Adicionado em 03/09/2014.
  2. a b c JOSEPH, Miriam. O Trivium - As Artes Liberais da Lógica, Gramática e Retórica. Tradução de Henrique Paul Dmyterko. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 21. ISBN 9788588062603
  3. JOSEPH, Miriam. p. 27.
  4. Astrologia Classica e Antica (em italiano) Acessado em 26/11/2015.
  5. "Wiesner-Hanks, p32"
  6. Oskar Kristeller-Paul, Renaissance Pensamento II: Artigos sobre Humanismo e as Artes (New York: Harper Torchbooks, 1965), p. 178.
  7. Kristeller's Renaissance Thought I, "Humanism and Scholasticism In the Italian Renaissance", Byzantion 17 (1944–45), pp. 346–74. Reprinted in Renaissance Thought (New York: Harper Torchbooks), 1961.
  8. http://articles.mcall.com/1997-03-23/features/3127347_1_liberal-arts-exchange-students-czech-republic
  9. a b c Rolling College. Educação em Artes Liberais. acessado em 12 de dezembro de 2012.
  10. UFJF. Apresentação: Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas acessado em 12 de dezembro de 2012.
  11. a b ALVES, Leonardo M. Educação Liberal: formação além dos limites profissionais. acessado em 12 de dezembro de 2012.
  12. «BACHARELADO INTERDISCIPLINAR EM BIOSSISTEMAS». Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). 18 de outubro de 2022. Consultado em 8 de janeiro de 2023 
  13. Estudos Gerais na Universidade de Lisboa Arquivado em 2 de abril de 2015, no Wayback Machine. acessado em 12 de dezembro de 2012.
  14. UNIPAMPA. Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia acessado em 12 de dezembro de 2012.

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

  • FRIAÇA, AMANCIO. Trivium & Quadrivium, as artes liberais na Idade Média. IBIS, 1999. ISBN 9788585582210 Adicionado em 03/09/2014.
  • ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
  • CASTRO, CLÁUDIO DE MOURA. Educar para o ofício ou educar para mudar de ofício? em Revista Ensino Superior: UNICAMP, Ano II - nº 3| Junho de 2011.
  • PETERSON, Patti McGill. Balanço Global: A educação liberal na perspectiva global . Em Revista Ensino Superior: UNICAMP, Ano II - nº 3| Junho de 2011.
  • MCLUHAN, MARSHALL. O Trivium Clássico. É Realizações, 2012. ISBN 8580330726 Adicionado em 03/09/2014.
  • TRINDADE DE ALMEIDA, JUSSARA. Quadrivium, As Quatro Artes Liberais Clássicas da Aritmética, da Geometria, da Música e da Cosmologia. É Realizações, 2014. ISBN 9788580331622 Adicionado em 03/09/2014.

Ligações externas[editar | editar código-fonte]

Commons
Commons
O Commons possui imagens e outros ficheiros sobre Artes liberais