Populismo: diferenças entre revisões

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== Antipopulismo ==
== Antipopulismo ==
Se do momento de sua criação no século XIX até o meio do século XX a palavra "populismo" carregava uma conotação positiva, sendo reivindicada por atores políticos russos, americanos e brasileiros, o período [[pós-guerra]] marca o início de uma inflexão.<ref name="Zicman e Lago" /><ref name="Stravakakis 2017" /> Entre os anos 1950 e 1970, o populismo começa a ser encarado com desconfiança por diferentes correntes político-ideológicas, tanto de [[esquerda política|esquerda]] quanto de [[direita política|direita]]. O termo passa a ter sentido pejorativo,<ref name="Laclau Monde">Laclau, Ernesto (2012). Entrevista: [http://www.lemonde.fr/idees/article/2012/02/09/sans-une-certaine-dose-de-populisme-la-democratie-est-inconcevable-aujourd-hui_1641181_3232.html «Sans une certaine dose de populisme, la démocratie est inconcevable aujourd'hui»]. ''[[Le Monde]]'', 9 de fevereiro de 2012.</ref> sendo usado como arma de combate discursivo, para a desqualificação do oponente.
Se do momento de sua criação no século XIX até o meio do século XX a palavra "populismo" carregava uma conotação positiva, sendo reivindicada por atores políticos russos, americanos e brasileiros, o período [[pós-guerra]] marca o início de uma inflexão.<ref name="Zicman e Lago" /><ref name="Stravakakis 2017" /> Entre os anos 1950 e 1970, o populismo começa a ser encarado com desconfiança por diferentes correntes político-ideológicas, tanto de [[esquerda política|esquerda]] quanto de [[direita política|direita]], e o próprio termo passa a ter sentido pejorativo.<ref name="Laclau Monde">Laclau, Ernesto (2012). Entrevista: [http://www.lemonde.fr/idees/article/2012/02/09/sans-une-certaine-dose-de-populisme-la-democratie-est-inconcevable-aujourd-hui_1641181_3232.html «Sans une certaine dose de populisme, la démocratie est inconcevable aujourd'hui»]. ''[[Le Monde]]'', 9 de fevereiro de 2012.</ref> No entanto, o antipopulismo se expressa em diversas formas e contextos.


===Críticas políticas===
===Críticas políticas===
Parte da hostilidade ao populismo surge de seus adversários políticos imediatos, via de regra conservadores. No Brasil, por exemplo, a [[UDN]] e demais opositores à "Frente Populista" que uniu [[Adhemar de Barros]] e [[Getúlio Vargas]] nas eleições de 1950 utilizaram a palavra atribuindo a ela sentidos negativos. Na Argentina, o mesmo se verificou entre os [[Peronismo|antiperonistas]] da [[União Cívica Radical]]. Tais críticos recriminaram o populismo por suas práticas consideradas vulgares e suas atitudes "[[Demagogia|demagógicas]]", notadamente a concessão de [[direitos sociais|benefícios sociais]] através do aumento do [[gasto público]]. Outros os acusariam o populismo de estabelecer um vínculo emocional, e portanto não-racional, com o "[[povo]]", aliciando e manipulando as [[classes sociais]] de menor poder aquisitivo. Alegadamente, esse vínculo também seria "direto", sem a intermediação de [[Partido político|partidos]] ou corporações.
Parte da hostilidade ao populismo surge de seus adversários políticos imediatos, via de regra conservadores. No Brasil, por exemplo, a [[UDN]] e demais opositores à "Frente Populista" que uniu [[Adhemar de Barros]] e [[Getúlio Vargas]] nas eleições de 1950 utilizaram a palavra atribuindo a ela sentidos negativos. Na Argentina, o mesmo se verificou entre os [[Peronismo|antiperonistas]] da [[União Cívica Radical]]. Em muitos casos, o populismo é recriminado por suas práticas consideradas vulgares e suas atitudes [[Demagogia|demagógicas]] e manipuladoras. Contudo, em muitos momento o termo é empregado de maneira vaga como arma de combate discursivo, para a desqualificação do oponente.


===Críticas intelectuais===
===Críticas intelectuais===
Para além das disputas políticas, diversos autores têm apontado o papel de intelectuais na estigmatização do populismo. Ao longo dos anos 1950, diversos sociólogos americanos passaram a utilizar a noção de populismo para estudar o fenômeno do [[macarthismo]].<ref name="Shils" /><ref name="Hofstadter" /> Essa associação, vista por muitos como espúria,<ref name="Stravakakis 2017" /><ref name="Stravakakis and Jäger">{{Citar periódico|titulo = Accomplishments and limitations of the ‘new’ mainstream in contemporary populism studies|url = http://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1368431017723337|jornal = European Journal of Social Theory |issn = |paginas =547–565 |volume =21 |numero = 4 |ano=2017 |doi =10.1177/1368431017723337|primeiro = Yannis|ultimo = Stravakakis|ultimo2=Jäger|primeiro2=Anton}}</ref> teria sido importante para reforçar a conexão entre populismo e ameaças à democracia liberal, ainda hoje muito presente na literatura.<ref>{{Citar livro |autor=Müller, Jan-Werner |coautor= |título=What Is Populism? |subtítulo= |url= |língua= |formato= |edição= |local=New York |editora=Penguin |ano=2017 |página= |páginas= |isbn= |acessodata= }}</ref><ref>{{Citar livro |autor=Mounk, Yascha |coautor= |título= The People vs. Democracy: Why Our Freedom Is in Danger and How to Save It|subtítulo= |url= |língua= |formato= |edição= |local=Cambridge, MA|editora=Harvard University Press |ano=2018 |página= |páginas= |isbn= |acessodata= }}</ref><ref>{{Citar livro |autor=Urbinati, Nadia |coautor= |título= Me The People: How Populism Transforms Democracy |subtítulo= |url= |língua= |formato= |edição= |local=Cambridge, MA|editora=Harvard University Press|ano=2019 |página= |páginas= |isbn=9780674240889 |acessodata= }}</ref><ref>{{Citar livro |autor=Rosanvallon, Pierre |coautor= |título= Le siècle du populisme|subtítulo= |url= |língua= |formato= |edição= |local=Paris|editora=Seuil |ano=2020 |página= |páginas= |isbn=9782021401929 |acessodata= }}</ref>
Para além das disputas políticas, diversos autores têm apontado o papel de intelectuais na estigmatização do populismo. Ao longo dos anos 1950, diversos sociólogos americanos passaram a utilizar a noção de populismo para estudar o fenômeno do [[macarthismo]].<ref name="Shils" /><ref name="Hofstadter" /> Essa associação, vista por muitos como espúria,<ref name="Stravakakis 2017" /><ref name="Stravakakis and Jäger">{{Citar periódico|titulo = Accomplishments and limitations of the ‘new’ mainstream in contemporary populism studies|url = http://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1368431017723337|jornal = European Journal of Social Theory |issn = |paginas =547–565 |volume =21 |numero = 4 |ano=2017 |doi =10.1177/1368431017723337|primeiro = Yannis|ultimo = Stravakakis|ultimo2=Jäger|primeiro2=Anton}}</ref> teria sido importante para reforçar a conexão entre populismo e ameaças à democracia liberal, ainda hoje muito presente na literatura.<ref>{{Citar livro |autor=Müller, Jan-Werner |coautor= |título=What Is Populism? |subtítulo= |url= |língua= |formato= |edição= |local=New York |editora=Penguin |ano=2017 |página= |páginas= |isbn= |acessodata= }}</ref><ref>{{Citar livro |autor=Mounk, Yascha |coautor= |título= The People vs. Democracy: Why Our Freedom Is in Danger and How to Save It|subtítulo= |url= |língua= |formato= |edição= |local=Cambridge, MA|editora=Harvard University Press |ano=2018 |página= |páginas= |isbn= |acessodata= }}</ref><ref>{{Citar livro |autor=Urbinati, Nadia |coautor= |título= Me The People: How Populism Transforms Democracy |subtítulo= |url= |língua= |formato= |edição= |local=Cambridge, MA|editora=Harvard University Press|ano=2019 |página= |páginas= |isbn=9780674240889 |acessodata= }}</ref><ref>{{Citar livro |autor=Rosanvallon, Pierre |coautor= |título= Le siècle du populisme|subtítulo= |url= |língua= |formato= |edição= |local=Paris|editora=Seuil |ano=2020 |página= |páginas= |isbn=9782021401929 |acessodata= }}</ref> Esses autores costumam acusar o populismo de estabelecer um vínculo emocional, e portanto não-racional, com o "[[povo]]", aliciando e manipulando as [[classes sociais]] de menor poder aquisitivo. Alegadamente, esse vínculo também seria "direto", sem a intermediação de [[Partido político|partidos]] ou corporações.


Na [[América Latina]], foram sobretudo os intelectuais adeptos da abordagem marxista que contribuíram para a crítica do populismo. No Brasil, e sobretudo no período posterior ao [[Golpe de Estado no Brasil em 1964|golpe militar de 1964]], pensadores de esquerda passaram a atribuir às limitações do populismo as causas do fim da democracia. Se por um lado esse antipopulismo de esquerda considera que o populismo foi um poderoso mecanismo de integração das massas populares à vida política, favorecendo o [[desenvolvimento econômico]] e [[desenvolvimento social|social]], por outro lado essa integração seria apenas proto-democratizante, estando subordinada a um enquadramento estritamente [[burguês]].<ref>Vieira, Luiz Renato ''Consagrados e malditos: os intelectuais e a Editora Civilização Brasileira''. Brasília: Thesaurus, 1998</ref> Pra tais intelectuais, as [[benesse]]s populistas teriam caráter desmobilizador, pois faziam crer que tudo dependeria apenas da vontade [[despótica]] de um [[caudilho]]. No caso de Getúlio Vargas, por exemplo, o mérito de seu empenho na aprovação de [[trabalhismo|reformas trabalhistas]] que favoreceram o [[operariado]] seria mitigado por suas medidas que alegadamente minaram o poder dos [[sindicato]]s e de seus líderes, tornando-os dependentes do [[Estado]] e sendo usados pelos políticos por muito tempo para ganharem voto.
Na [[América Latina]], foram sobretudo os intelectuais adeptos da abordagem marxista que contribuíram para a crítica do populismo. No Brasil, e sobretudo no período posterior ao [[Golpe de Estado no Brasil em 1964|golpe militar de 1964]], pensadores de esquerda passaram a atribuir às limitações do populismo as causas do fim da democracia. Se por um lado esse antipopulismo de esquerda considera que o populismo foi um poderoso mecanismo de integração das massas populares à vida política, favorecendo o [[desenvolvimento econômico]] e [[desenvolvimento social|social]], por outro lado essa integração seria apenas proto-democratizante, estando subordinada a um enquadramento estritamente [[burguês]].<ref>Vieira, Luiz Renato ''Consagrados e malditos: os intelectuais e a Editora Civilização Brasileira''. Brasília: Thesaurus, 1998</ref> Pra tais intelectuais, as [[benesse]]s populistas teriam caráter desmobilizador, pois faziam crer que tudo dependeria apenas da vontade [[despótica]] de um [[caudilho]]. No caso de Getúlio Vargas, por exemplo, o mérito de seu empenho na aprovação de [[trabalhismo|reformas trabalhistas]] que favoreceram o [[operariado]] seria mitigado por suas medidas que alegadamente minaram o poder dos [[sindicato]]s e de seus líderes, tornando-os dependentes do [[Estado]] e sendo usados pelos políticos por muito tempo para ganharem voto.

===Críticas econômicas===
Apesar de não constituir uma abordagem teórica propriamente dita, uma expressão corrente do antipopulismo na América Latina busca conectar a demagogia frequentemente atribuida ao populismo a políticas econômicas irresposáveis. Segundo Paris Aslanidis, as críticas a um alegado populismo econômico foram originalmente formuladas pelo economista argentino Marcelo Diamand, que entendia que as economias latino-americanas viveriam em um movimento pendular.<ref name="Aslanidis">{{Citar periódico|titulo =The Red Herring of Economic Populism|url = https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-030-80803-7_14|jornal = The Palgrave Handbook of Populism |issn = |paginas =245–261 |volume = |numero = |ano=2021 |doi =10.1007/978-3-030-80803-7_14|primeiro = Paris|ultimo = Aslanidis}}</ref> Para Diamand, países como a Argentina oscilariam entre políticas de austeridade excessivas levadas a cabo por economistas liberais, e políticas fiscalmente irresposáveis implementadas por governos ditos populistas que concederiam [[direitos sociais|benefícios sociais]] vistos como insustentáveis através do aumento do [[gasto público]]. As ideias de Diamand teriam sido então recuperadas pelos economistas do [[National Bureau of Economic Research|NBER]] como [[Jeffrey Sachs]], [[Rudi Dornbusch|Rudiger Dornbusch]] e Sebastian Edwards.<ref>{{Citar livro |autor=Dornbusch, Rudiger; Edwards, Sebastian (Eds.) |coautor= |título= The Macroeconomics of Populism in Latin America|subtítulo= |url=https://www.nber.org/books-and-chapters/macroeconomics-populism-latin-america |língua= |formato= |edição= |local=Chicago|editora=Chicago University Press |ano=1991 |página= |páginas= |isbn= |acessodata= }}</ref> No entanto, esses economistas baseados nos Estados Unidos teriam abandonado a parte da crítica de Diamand dirigida às políticas de austeridade exageradas, defendendo-as como antídoto para crises econômicas latino-americanas.<ref name="Aslanidis" /> Apesar de a ideia de um populismo econômico ser estranha ao ambiente europeu, há publicações sobre populismo econômico na Europa.<ref>{{Citar livro |autor=D'Albis, Hippolyte; Benhamou, Françoise (Eds.) |coautor= |título= Des économistes répondent aux populistes|subtítulo= |url= |língua= |formato= |edição= |local=Paris|editora=Odile Jacob |ano=2022 |página= |páginas= |isbn= |acessodata= }}</ref>


===A "''hype''" populista===
===A "''hype''" populista===

Revisão das 14h09min de 2 de dezembro de 2022

Populismo é um conceito contestado,[1][2] utilizado para se referir a um conjunto de práticas políticas que se justificam num apelo ao "povo", geralmente contrapondo este grupo a uma "elite". Não existe uma única definição do termo, que surgiu no século XIX e tem obtido diferentes significados desde então.[3][4] Em filosofia política e nas ciências sociais, diferentes definições de populismo têm sido usadas.[5] O termo também é usado de forma variada entre países e contextos políticos diferentes.

O termo "populismo" foi utilizado pela primeira vez no Império Russo. O populismo russo do final do século XIX, que visava transferir o poder político às comunas camponesas por meio de uma reforma agrária radical. Em seguida, a palavra ressurge nos Estados Unidos, reivindicada pelo chamado Partido do Povo, que propunha o incentivo à pequena agricultura através da prática de uma política monetária baseada na expansão da base monetária e do crédito (bimetalismo).

A palavra entre no léxico político latino-americano no pós-guerra, notadamente no Brasil.[3] Na época, ela nomeava políticos carismáticos capazes de mobilizar grandes novas massas formadas a partir da migração de trabalhadores para as grandes cidades brasileiras. No contexto de democratização do país, esses novos contingentes eleitorais escapavam das dinâmicas de voto de cabresto, sendo incorporados à vida política nacional. Se a palavra foi por vezes utilizada de forma pejorativa, sendo associada à demagogia e à manipulação, de modo geral ele carregava uma conotação positiva, sendo reivindicada por diversos políticos.[3]

Posteriormente, o termo seria incorporado pelas ciências sociais, assumindo caráter negativo.[6] São centrais nesse processo de estigmatização sociólogos americanos, como Edward Shils e Richard Hofstadter,[7][8] e acadêmicos latino-americanos, como os brasileiros Hélio Jaguaribe, Francisco Weffort e Fernando Henrique Cardoso,[9][10][11] e o ítalo-argentino Gino Germani.[12][3]

A noção de populismo é considerada um conceito contestado por não haver consenso na academia sobre uma definição do termo. Muitos autores afirmam ser impossível definir o que populismo de fato é. Ademais, as discussões normativas ao redor do conceito, visto como negativo para alguns e positivo para outros, turvaria a possibilidade de se construir um entendimento compartilhado sobre o significado da palavra.[1]

Teorias

Como conceito polissêmico, o populismo foi interpretado por diversas correntes teóricas, recebendo diferentes definições. Notoriamente, uma conferência em Londres em 1967 reunindo os maiores especialista sobre o tema à época resultou inconclusiva.[13] Atualmente, as principais teorias sobre o populismo são a ideacional, as classistas, a discursiva e a performativa.

Abordagem ideacional

A abordagem ideacional, desenvolvida notadamente por Cas Mudde e Cristóval Rovira Kaltwasser, defende que o populismo seria uma ideologia de centro fino (thin-centred ideology).[5][14] Para os autores, o populismo não teria um corpo doutrinal bem estabelecido, como ocorre em ideologias tais quais o socialismo, o liberalismo e o conservadorismo. O populismo se basearia na ideia de um "povo" puro e homogêneo se oporia a uma "elite" corrupta, e tal ideia poderia se associar a diversos conteúdos ideológicos, da extrema-direita à esquerda radical. Da mesma forma, a abordagem ideacional rejeita que o populismo esteja ligado a políticas econômicas específicas, podendo ser encontrado tanto entre políticos de viés intervencionista, quanto entre partidários de políticas liberalizantes. Segundo Mudde e Kaltwasser, líderes e movimentos populistas poderiam revigorar a democracia liberal quando estão na oposição, mas costumam colocá-la em perigo quando chegam ao poder.[5][15]

Abordagens classistas

As abordagens classistas entendem que o populismo é um fenômeno de classe. Na sociologia americana, Seymour Martin Lipset afirmava que o populismo seria um movimento que reúne diversas classes sociais ao redor de um líder carismático.[16] Lipset afirma que essa também seria uma característica do fascismo, mas que enquanto o fascismo se basearia principalmente nas classes médias, o populismo teria sua base social principal entre os pobres. Outra escola que entende que o populismo é um fenômeno de classe é a marxista, muito presente na América Latina com figuras como Francisco Weffort e Fernando Henrique Cardoso.[10][11] Se afastando da obra tardia de Karl Marx, simpática ao populismo russo,[17] essa corrente se inspira nas reflexões marxianas sobre o bonapartismo e de Antonio Gramsci sobre o cesarismo. Tal abordagem afirma que o populismo emerge num momento de equilíbrio de forças, em que a burguesia já perdeu sua capacidade de liderança, mas o proletariado ainda não triunfou.[4] Nesse contexto, o poder político assumiria certa autonomia em relação às principais classes sociais, arbitrando entre elas. Marcado por um processo de conciliação de classes, o populismo basearia sua força no apoio do que Marx chamava de massa, um grupo social desorganizado e sem consciência de classe que poderia ser manipulado por um chefe carismático.

Abordagem discursiva

A abordagem discursiva teve como seu principal expoente o teórico político argentino Ernesto Laclau.[18] Para Laclau, o populismo deve ser entendido como uma lógica discursiva em que uma série de demandas insatisfeitas se reúnem ao redor de um símbolo que nomeie um movimento popular em oposição a uma elite. Apesar de afirmam que os símbolos mais comuns de movimentos populistas tendem a ser líderes carismáticos, a abordagem discursiva entende que pode haver populismo sem esse tipo de liderança. Em termos normativos, a definição de populismo de Laclau se isenta de dizer se o populismo seria positivo ou negativo, mas se distingue das abordagens anteriores por ver algumas experiências populistas no poder como autenticamente democratizantes.

Abordagem performativa

A abordagem performativa, também conhecida como socio-cultural, é por vezes apresentada como um ramo da abordagem discursiva. Seus principais expoentes são Pierre Ostiguy e Benjamin Moffitt.[19][20][21] Essa abordagem critica um excessivo formalismo da teoria de Laclau. Para suprir essa lacuna, esses autores afirmam que o populismo é uma maneira de performar a política. Para eles, haveria certa teatralidade no populismo, através da qual o populista romperia com as formas tradicionais e com as normas de comportamento na política. O populismo seria transgressivo, irreverente, culturalmente popular.[22] Como na abordagem discursiva, os defendores da teoria performativa entendem que, em certos casos, o populismo pode ter expressões emancipadoras.

Antipopulismo

Se do momento de sua criação no século XIX até o meio do século XX a palavra "populismo" carregava uma conotação positiva, sendo reivindicada por atores políticos russos, americanos e brasileiros, o período pós-guerra marca o início de uma inflexão.[3][6] Entre os anos 1950 e 1970, o populismo começa a ser encarado com desconfiança por diferentes correntes político-ideológicas, tanto de esquerda quanto de direita, e o próprio termo passa a ter sentido pejorativo.[23] No entanto, o antipopulismo se expressa em diversas formas e contextos.

Críticas políticas

Parte da hostilidade ao populismo surge de seus adversários políticos imediatos, via de regra conservadores. No Brasil, por exemplo, a UDN e demais opositores à "Frente Populista" que uniu Adhemar de Barros e Getúlio Vargas nas eleições de 1950 utilizaram a palavra atribuindo a ela sentidos negativos. Na Argentina, o mesmo se verificou entre os antiperonistas da União Cívica Radical. Em muitos casos, o populismo é recriminado por suas práticas consideradas vulgares e suas atitudes demagógicas e manipuladoras. Contudo, em muitos momento o termo é empregado de maneira vaga como arma de combate discursivo, para a desqualificação do oponente.

Críticas intelectuais

Para além das disputas políticas, diversos autores têm apontado o papel de intelectuais na estigmatização do populismo. Ao longo dos anos 1950, diversos sociólogos americanos passaram a utilizar a noção de populismo para estudar o fenômeno do macarthismo.[7][8] Essa associação, vista por muitos como espúria,[6][24] teria sido importante para reforçar a conexão entre populismo e ameaças à democracia liberal, ainda hoje muito presente na literatura.[25][26][27][28] Esses autores costumam acusar o populismo de estabelecer um vínculo emocional, e portanto não-racional, com o "povo", aliciando e manipulando as classes sociais de menor poder aquisitivo. Alegadamente, esse vínculo também seria "direto", sem a intermediação de partidos ou corporações.

Na América Latina, foram sobretudo os intelectuais adeptos da abordagem marxista que contribuíram para a crítica do populismo. No Brasil, e sobretudo no período posterior ao golpe militar de 1964, pensadores de esquerda passaram a atribuir às limitações do populismo as causas do fim da democracia. Se por um lado esse antipopulismo de esquerda considera que o populismo foi um poderoso mecanismo de integração das massas populares à vida política, favorecendo o desenvolvimento econômico e social, por outro lado essa integração seria apenas proto-democratizante, estando subordinada a um enquadramento estritamente burguês.[29] Pra tais intelectuais, as benesses populistas teriam caráter desmobilizador, pois faziam crer que tudo dependeria apenas da vontade despótica de um caudilho. No caso de Getúlio Vargas, por exemplo, o mérito de seu empenho na aprovação de reformas trabalhistas que favoreceram o operariado seria mitigado por suas medidas que alegadamente minaram o poder dos sindicatos e de seus líderes, tornando-os dependentes do Estado e sendo usados pelos políticos por muito tempo para ganharem voto.

Críticas econômicas

Apesar de não constituir uma abordagem teórica propriamente dita, uma expressão corrente do antipopulismo na América Latina busca conectar a demagogia frequentemente atribuida ao populismo a políticas econômicas irresposáveis. Segundo Paris Aslanidis, as críticas a um alegado populismo econômico foram originalmente formuladas pelo economista argentino Marcelo Diamand, que entendia que as economias latino-americanas viveriam em um movimento pendular.[30] Para Diamand, países como a Argentina oscilariam entre políticas de austeridade excessivas levadas a cabo por economistas liberais, e políticas fiscalmente irresposáveis implementadas por governos ditos populistas que concederiam benefícios sociais vistos como insustentáveis através do aumento do gasto público. As ideias de Diamand teriam sido então recuperadas pelos economistas do NBER como Jeffrey Sachs, Rudiger Dornbusch e Sebastian Edwards.[31] No entanto, esses economistas baseados nos Estados Unidos teriam abandonado a parte da crítica de Diamand dirigida às políticas de austeridade exageradas, defendendo-as como antídoto para crises econômicas latino-americanas.[30] Apesar de a ideia de um populismo econômico ser estranha ao ambiente europeu, há publicações sobre populismo econômico na Europa.[32]

A "hype" populista

Diversos autores têm apontado que, notadamente após a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016 e a vitória do Brexit referendo pela saída do Reino Unido da União Europeia, houve um aumento vertiginoso de referências à noção de populismo no debate público, alimentando discursos antipopulistas.[33] A mídia se destaca no que foi batizado de "estardalhaço populista" (populist hype), com diversos artigos de imprensa dedicados à questão populista. Segundo pesquisadores, contudo, a palavra seria usada de maneira pouco rigorosa, frequentemente de modo incoerente, e para se referir de forma pejorativa a figuras diversas.[33] Paralelamente, se verificou igualmente um aumento de publicações acadêmicas sobre o populismo, também em muitos casos de maneira pouco rigorosa. Segundo alguns pesquisadores, o "estadalhaço populista" reforçaria a normalização da extrema-direita que muitos autores buscariam descrever.[34][35]

Respostas ao antipopulismo

Entre os pensadores que adotam uma visão positiva em relação ao populismo, os adeptos da abordagem discursiva se destacam. Contudo, há duas correntes nesse campo. A primeira corrente é composta por autores que dizem que certas expressões do populismo podem ser democratizantes. A segunda corrente, cujos expoentes são Paula Biglieri, Luciana Cadahia, Camila Vergara e Frederico Tarragoni, reúne aqueles que dizem que o populismo é emancipatório por definição.[36][37][38]

Efetivamente, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe argumentam que o populismo poderia oferecer maior espaço e voz às classes usualmente excluídas.[39][40] Inspirado na experiência peronista e kirchnerista, Laclau dizia que o populismo representava uma articulação profunda por mudanças institucionais, tendo um papel enormemente positivo para a democracia, notadamente na América Latina, onde os movimentos de massa poderiam provocar mudanças políticas, com a ascensão de governos de corte nacional-popular. Laclau e Mouffe sublinham que as experiências populistas de esquerda ao redor do mundo não buscariam destruir a democracia liberal, mas aprofundá-la, incomportando setores excluídos.[41][23][3]

Entre os críticos do antipopulismo, muitos apontam que a ideia de que o vínculo entre o líder populista e as massas seria de ordem emocional se baseia em uma distinção entre razão e emoção que não se sustenta. Para esses autores, toda política envolve apelos emocionais, e que tais ataques buscariam silenciar vozes de setores subalternos.[42]

Ver também

Referências

  1. a b Kalwasser, Cristóbal Rovira (2018). «How to define populism? Reflections on a contested concept and its (mis)use in the social sciences». Populism and the Crisis of Democracy 1 (Concepts and Theory). New York: Routledge. p. 62. doi:10.4324/9781315108070-5
  2. Weyland, Kurt (2001). «Clarifying a Contested Concept: Populism in the Study of Latin American Politics». Comparative Politics. 34 (1): 1-22. doi:10.2307/422412 
  3. a b c d e f Zicman de Barros, Thomás; Lago, Miguel (2022). Do que falamos quando falamos de populismo. São Paulo: Companhia das Letras. ISBN 9786559211241 
  4. a b Ronderos, Sebastián; Zicman de Barros, Thomás (2020). «Populismo e Antipopulismo na Política Brasileira: Massas, Lógicas Políticas e Significantes em Disputa». Aurora. 12 (36). doi:10.23925/v12n36_dossie2 
  5. a b c Mudde, Cas; Kaltwasser, Cristóbal Rovira (2017). Populism: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press. pp. 1–6 
  6. a b c Stravakakis, Yannis (2017). «How did 'populism' become a pejorative concept? And why is this important today? A genealogy of double hermeneutics» (PDF). Populismus Working Paper (6) 
  7. a b Shils, Edward (1954). «Populism and the Rule of Law». University of Chicago Law School Conference on Jurisprudence and Politics (15) 
  8. a b Hofstadter, Richard (1955). The Age of Reform. New York: Vintage Books. pp. 60–93 
  9. Jaguaribe, Hélio (1954). «O que é o ademarismo?». Cadernos do Nosso Tempo (2): 139-149. doi:10.22409/rep.v3i5.38628 
  10. a b Cardoso, Fernando Henrique (1962). «Proletariado no Brasil: situação e comportamento social». Revista Brasiliense (41): 98-122 
  11. a b Weffort, Francisco (1978). O populismo na política brasileira. São Paulo: Civilização Brasileira 
  12. Germani, Gino (1962). De la sociedad tradicional a la participación total en América Latina. Buenos Aires: Paidós 
  13. Ionescu, Ghita; Gellner, Ernest (Eds.) (1967). Populism: Its Meanings and National Characteristics. Letchworth: The Garden City PRess 
  14. Freeden, Michael (2017). «After the Brexit referendum: revisiting populism as an ideology». Journal of Political Ideologies. 22 (1). doi:10.1080/13569317.2016.1260813 
  15. Mudde, Cas; Kaltwasser, Cristóbal Rovira (2012). «Populism and (Liberal) Democracy: A Framework for Analysis». Populism in Europe and the Americas: Threat or Corrective for Democracy?. Cambridge: Cambridge University Press. p. 10. doi:10.1017/CBO9781139152365
  16. Lipset, Seymour Martin (1960). Political Man. New York: Doubleday & Company 
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