Aníbal

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 Nota: Para outros significados, veja Aníbal (desambiguação).
Aníbal BarcaCombatente Militar
Aníbal
Um busto de Aníbal
Nascimento 247 a.C.
Cartago, Tunísia
Morte c.183 a.C. (64 anos)
Libisa, Bitínia
País República Cartaginesa
Hierarquia General
Batalhas/Guerras

Aníbal, filho de Amílcar Barca[n 1] (Cartago, 248 a.C.Bitínia, 183 a.C.)[1][2][3] ou 182 a.C.,[n 2] conhecido comumente apenas como Aníbal (em púnico: ḤNBʻL; Ḥannibaʻal ou Ḥannibaʻl,[4][5] lit. "Ba'al é/foi bondoso"[5][6] ou "Graça de Baal"[4] ou "recebi a graça de Baal",[7] talvez também nas formas Ḥannobaʻal,[8] ou ʼDNBʻL, ʼAdnibaʻal, lit. "Ba'al é meu senhor"; em grego: Ἁννίβας; romaniz.:Hanníbas) foi um general e estadista cartaginês considerado por muitos como o maior dos táticos militares da história. Seu pai, Amílcar Barca (Barca, "raio"),[9] foi o principal comandante cartaginês durante a Primeira Guerra Púnica, travada contra Roma; seus irmãos mais novos foram os célebres Magão e Asdrúbal, e seu cunhado foi Asdrúbal, o Belo.

Sua vida decorreu no período de conflitos em que a República Romana estabeleceu supremacia na bacia mediterrânea, em detrimento de outras potências como a própria Cartago, Macedônia, Siracusa e o Império Selêucida. Foi um dos generais mais ativos da Segunda Guerra Púnica, quando levou a cabo uma das façanhas militares mais audazes da Antiguidade: Aníbal e seu exército, onde se incluíam elefantes de guerra, partiram da Hispânia e atravessaram os Pirenéus e os Alpes com o objetivo de conquistar o norte da península Itálica. Ali derrotou os romanos em grandes batalhas campais como a do lago Trasimeno ou a de Canas, que ainda se estuda em academias militares na atualidade. Apesar de seu brilhante movimento, Aníbal não chegou a capturar Roma. Existem diversas opiniões entre os historiadores, que vão desde carências materiais de Aníbal em máquinas de combate a considerações políticas que defendem que a intenção de Aníbal não era tomar Roma, senão obrigá-la a render-se.[10] Não obstante, Aníbal conseguiu manter um exército na Itália durante mais de uma década, recebendo escassos reforços. Por causa da invasão da África por parte de Cipião, o Senado púnico lhe chamou de volta a Cartago, onde foi finalmente derrotado por Públio Cornélio Cipião Africano na Batalha de Zama.

O historiador militar Theodore Ayrault Dodge o chamou "pai da estratégia".[11] Foi admirado inclusive por seus inimigos — Cornélio Nepos o batizou como «o maior dos generais»[12]—, assim sendo, seu maior inimigo, Roma, adaptou certos elementos de suas táticas militares a seu próprio arsenal estratégico. Seu legado militar o conferiu uma sólida reputação no mundo moderno, e tem sido considerado como um grande estrategista por grandes militares como Napoleão ou Arthur Wellesley, o duque de Wellington. Sua vida tem sido objeto de muitos filmes e documentários. Bernard Werber lhe rende homenagem através do personagem do «Libertador»,[13] e de um artigo em L’Encyclopédie du savoir relatif et absolu mencionada em sua obra Le Souffle des dieux.[14]

História

Antecedentes e início de carreira

Antecedentes históricos

Ver artigo principal: Primeira Guerra Púnica

Em meados do século III a.C., a cidade de Cartago, onde nasceu Aníbal,[1] estava fortemente influenciada pela cultura helenística derivada dos vestígios do império de Alexandre Magno.[15] Cartago ocupava então um lugar importante nos intercâmbios comerciais da bacia mediterrânea, e em particular nos empórios da Sicília, Sardenha e nas costas da Ibéria e da África do Norte. A cidade dispunha igualmente de uma importante frota de guerra que protegia suas rotas marítimas, que transportavam o ouro procedente do Golfo da Guiné e o estanho procedente das costas britânicas.

A outra potência mediterrânea da época era Roma, com a qual Cartago entrou em guerra durante vinte anos em um conflito conhecido como a Primeira Guerra Púnica,[16] a primeira guerra de grande envergadura em que Roma saiu vitoriosa. Este enfrentamento entre a República Romana e Cartago foi provocado por um conflito secundário em Siracusa, e se desenvolveu por terra e mar, em três fases: combates na Sicília (264–256 a.C.), combates na África (256–250 a.C.) e de novo na Sicília (250–241 a.C.). Durante esta última fase, e sobretudo com a guerra, nasceu a fama de Amílcar Barca, pai de Aníbal, que dirigia a guerra contra Roma desde o ano 247 a.C. Com a grande derrota naval nas ilhas Égadi, ao noroeste da Sicília, os cartagineses se viram obrigados a firmar um tratado na primavera de 241 a.C. com o cônsul Caio Lutácio Cátulo.[17] Entre os termos impostos a Cartago por este tratado se encontravam a cessão dos territórios da Sicília e Sardenha,[15] e o desmantelamento de sua frota.

Ao final da Primeira Guerra Púnica, apesar das precauções adotadas por Amílcar Barca, Cartago encontrou problemas na hora de dispersar seus regimentos armados de mercenários, que não tardaram em assaltar à cidade e provocar um conflito da envergadura de uma guerra civil.[17] Este episódio histórico é conhecido como a Guerra dos Mercenários. Amílcar conseguiu reprimir esta rebelião depois de três anos, depois de vencer aos rebeldes no rio Bagradas e de novo, com um grande derramamento de sangue, no desfiladeiro da Serra. Políbio o nomeia como o "desfiladeiro da serra",[18] mas Gustave Flaubert, que utiliza a tradução de Vincent Thuillier, o chama "o desfiladeiro do machado".[19] Da sua parte, Roma havia aproveitado a falta de oposição para tomar a Sardenha, anteriormente em mãos dos cartagineses.[20] Para compensar esta perda, Amílcar marchou à Ibéria, onde se apoderou de vastos territórios no sudeste do país. Durante uma década, Amílcar dirigiu a conquista do sul da Ibéria, apoiado militar e logisticamente por seu genro Asdrúbal.[17] Esta conquista restabelecia a situação econômica de Cartago, graças à exploração das minas de prata e estanho.

Juventude

Caricatura do juramento que fez Aníbal a seu pai de ser sempre inimigo de Roma.

Aníbal Barca era o filho mais velho do general Amílcar Barca e de sua mulher ibérica.[20][21] Ainda que «Barca» não era um sobrenome, senão um apelido (de barqä, "raio" em língua púnica), foi adotado como tal por seus filhos.[22] Os historiadores designam à família de Amílcar com o nome de Bárcidas, a fim de evitar a confusão com outras famílias cartaginesas com os mesmos nomes (Aníbal, Asdrúbal, Amílcar, Magón, etc.).

Sobre a educação de Aníbal é pouco o recolhido pelos autores greco-romanos. É sabido que aprendeu de um preceptor espartano, chamado Sosilos, as letras gregas,[23] a história de Alexandre Magno e a arte da guerra. Assim adquiriu o modo de raciocínio e de ação que os gregos chamavam Métis, fundado na inteligência e a astúcia.

Depois de haver incrementado seu território, Amílcar enriqueceu sua família e, por extensão, Cartago.[17] Ao perseguir tal objetivo, Amílcar se apoiou na cidade de Gadir (atual Cádis, Espanha), próxima ao Estreito de Gibraltar, e começou a submeter as tribos iberas. Naquele momento, Cartago se encontrava em tal estado de empobrecimento que sua marinha era incapaz de transportar o exército à Hispânia. Amílcar se viu, pois, obrigado a fazê-lo marchar até as Colunas de Hércules a pé, para cruzar ali em barco o Estreito de Gibraltar, entre o que atualmente seriam Marrocos e Espanha.

O historiador romano Tito Lívio menciona que quando Aníbal foi ver ao seu pai e lhe rogou que o permitisse acompanhá-lo, este aceitou com a condição de que jurasse que durante toda sua existência nunca seria amigo de Roma.[1][20][21][24] Outros historiadores referem que Aníbal declarou a seu pai:

Seu aprendizado tático começou sobre o terreno, baixo a égide de seu pai. Continuou aprendendo de seu cunhado, Asdrúbal, o Belo,[26] quem sucedeu a Amílcar, morto no campo de batalha contra os rebeldes iberos[21] em 229 a.C.[15] ou em 230 a.C.,[27] momento em que o nomeia chefe da cavalaria.[1][28] neste domínio, Aníbal revela de imediato sua resistência e seu sangue frio,[29] e sua capacidade para se fazer apreciar e admirar por seus soldados.[30] Asdrúbal perseguiu uma política de consolidação dos interesses ibéricos de Cartago.[15] Para isso, casou Aníbal com uma princesa ibera[31] de nome Imilce,[32] com a qual teve um filho.[33][34] No entanto, esta aliança matrimonial é considerada improvável e não está atestada por todos.[34] Por outro lado, Asdrúbal assinou em 226 a.C. um tratado com Roma pela qual a Península Ibérica ficava dividida em duas zonas de influência.[27] O rio Ebro constituía a fronteira:[27] Cartago não devia expandir-se mais ao norte deste rio, na mesma medida que Roma não se estenderia ao sul do curso fluvial.[28] Em 221 a.C., Asdrúbal fundou a nova capital, Qart Hadasht, hoje Cartagena, situada no que é atualmente a província de Múrcia (ao sudeste da Espanha).[15] Porém, um pouco mais tarde, um escravo gaulês, que acusou Asdrúbal de haver assassinado seu amo[28][35] o assassinou por sua vez em torno do ano 221 a.C.[33]

Governo da Hispânia

Ver artigo principal: Aníbal e o governo da Hispânia

Após ter assumido o comando, Aníbal passou dois anos consolidando suas aquisições e completando a conquista da Hispânia ao sul do Ebro.[11] Contudo, Roma, temendo a força crescente de Aníbal na Ibéria, fez aliança com a cidade de Sagunto, que fica a uma distância considerável ao sul do rio Ebro e proclamou a cidade como seu protetorado. Aníbal entendeu isso como um rompimento do tratado assinado com Asdrúbal, fazendo assim um cerco na cidade, que caiu após oito meses. Roma reagiu a essa aparente violação do tratado e demandou justiça de Cartago. Em vista da grande popularidade de Aníbal, o governo cartaginês não repudiou as ações de Aníbal, e a guerra que ele buscava foi declarada no final do ano. Aníbal agora estava determinado a levar a guerra até o coração da Itália com uma rápida marcha através da Hispânia e sul da Gália.

Segunda Guerra Púnica na Itália (218–203 a.C.)

Ver artigo principal: Segunda Guerra Púnica

Preparativos para atacar Roma

Aníbal e seus homens cruzando os Alpes

A missão romana retorna ciente da hostilidade da Hispânia, da neutralidade dos gauleses e do apoio de Massília. Quando os dois novos cônsules foram escolhidos, Cipião foi incumbido de considerar a Hispânia como sua "província", e que desenvolvesse uma nova frota, pois o sítio e a pilhagem de Sagunto não poderia ser tolerado, sob a pena de abalar sua reputação entre gauleses e iberos.

Os cartagineses iberos possuíam apenas alguns navios de guerra para a proteção da navegação entre a península Ibérica e a África do Norte. Cientes de sua supremacia marítima, os romanos se prepararam para transportar suas legiões, via Massília, para uma invasão dos territórios de Nova Cartago ao sul do Ebro. Contudo, Aníbal não se preparava para defender seus novos territórios, nem planejava cruzar o rio para prosseguir com sua campanha ao norte. Os próprios romanos também não consideravam o ataque pelos Alpes, pois tal jornada implicaria nada menos do que quinze centenas de milhas.

Aníbal instruiu Asdrúbal para assumir o comando na Hispânia caso se ausentasse durante um ataque romano, além de conseguir o apoio da maior parte da Península Ibérica, deixou seu irmão comandando o forte e nova cidade-porto e ainda reuniu a tropa que julgava necessária. Devido à sua estratégia, a guerra havia sido declarada pelos romanos, que seriam vistos como causadores do rompimento do tratado com Cartago. Isso foi mostrado às tribos gaulesas como um exemplo da falta de palavra de Roma.

Aníbal dispôs tropas para salvaguardar tanto a África quanto a península Ibérica, e para assegurar-se de que seu irmão não enfrentaria problemas de lealdade enquanto ele estivesse distante, adotou a política de transferir tropas iberas para a África e tropas africanas para a Ibéria.

Na primavera de 218 a.C. as tropas foram deslocadas dos quartéis de inverno para o norte onde cruzaram o rio Ebro com doze mil cavaleiros e noventa mil soldados de infantaria. Na Catalunha, entre o Ebro e os Pirenéus, encontraram resistentes tribos das montanhas. Sua passagem foi fortemente impedida, e muitas aldeias precisaram ser arrasadas antes que eles conseguissem prosseguir. Essa resistência não era esperada, contudo, ficou claro que ele havia partido com uma força maior do que a pretendida para a campanha, haja vista que deixara encarregados do novo território e de manter guarda sobre os desfiladeiros entre a península Ibérica e a Gália mil cavaleiros e dez mil soldados de infantaria, sob o comando de seu irmão Hanão.

Contornando o porto grego de Ampúrias, o exército foi em direção aos Pirenéus. Após Aníbal ter exposto seu plano de campanha às tropas, qualquer demora mais prolongada do que o necessário à conclusão das preparações finais para a marcha deveria ser evitada, pois possuía informações de que a época ideal para transpor os Alpes era o verão. Contudo, o tempo necessário para alcançá-los foi maior do que o pretendido.

Apesar de contar com grande número de cavaleiros, as tropas também levavam 37 elefantes que seguiram desde a península Ibérica, através dos Pirenéus e do rio ródano, sobre os Alpes, até à península Itálica. Não há registro de que algum deles tenha morrido durante a marcha, mas está escrito que, quando o Aníbal chegou ao destino, seus elefantes ainda permaneciam com ele.

A utilização de elefantes de guerra era bastante antiga no oriente, embora só tivessem sido mencionados nas campanhas de Alexandre, o Grande, quando em 313 a.C. derrotou Dario III, que tinha quinze elefantes em seu exército na batalha de Gaugamela.

O que não era esperado era que os gauleses boios, no norte da Itália, entusiasmados pela notícia de que Aníbal estava em marcha, se rebelassem contra Roma e, conclamando seus aliados, os ínsubres, para se unirem a eles, invadissem a terra que os romanos haviam colonizado. Os gauleses, valendo-se de seu habitual poder de fogo, apanharam os romanos desprevenidos, obrigando-os a revisar seus planos prévios. As legiões que partiriam para a península Ibérica não poderiam ser dispensadas até que o problema na Gália Cisalpina fosse contornado.

O retorno dos cavaleiros númidas teria sido suficiente para confirmar a pressa de Aníbal. Em sua jornada de reconhecimento, eles haviam encontrado uma força de trezentos cavaleiros de Cipião, enviados numa missão similar. Após esse encontro, os númidas, que se saíram mal, bateram em retirada seguidos pelos romanos. Acuados por dois fogos, eles se puseram a correr desordenadamente. Aníbal cuidou deles com rapidez, e é significativo que em suas campanhas tenha utilizado mão-de-obra gaulesa de um modo cínico, exaltando sua bravura mas nunca os colocando num posto onde não estivessem cercados por tropas treinadas, tampouco sem uma retaguarda que os detivesse se eles resolvessem desertar e fugir.

Os gauleses fugiram assim que a força total dos cartagineses desembarcou. Aníbal havia estabelecido sua cabeça-de-praia na margem oriental do Ródano, e as outras tropas ficaram para seguirem assim que um transporte regular por balsas foi organizado. Enquanto os últimos preparativos eram feitos e a travessia dos elefantes realizada, Aníbal se reunia com chefes tribais das planícies do , que haviam lutado contra os romanos e que agora insistiam para que não atrasasse sua passagem para a Itália.

Cipião regressou para Massília com suas legiões. Mas a Hispânia lhe fora designada como sua esfera de operações, assim como toda a península Ibérica ainda permanecia sendo a chave de toda a guerra. Com Aníbal e seu exército afastados, os romanos poderiam alcançar a vitória e destruir o poder cartagineses. Quanto a ele, estava claro que deveria retornar à Itália para se encarregar pessoalmente das tropas ao norte. Ele enviou sua frota e seu exército à Hispânia sob o comando de seu irmão Cneu e embarcou para a Itália. Se as tropas de Aníbal conseguissem atravessar os Alpes, elas o encontrariam à sua espera.

Com os elefantes e uma retaguarda de cavalaria seguindo o corpo principal das tropas, o exército deslocava-se ao longo do rio Ródano no sentido ascendente, marchado o mais rápido possível, de modo a escapar dos romanos.[carece de fontes?]

Há um corredor escarpado na provável rota de Aníbal durante os estágios iniciais de seu avanço em direção aos Alpes que tem sido aceitavelmente identificado ao lugar onde os cartagineses tiveram seu primeiro conflito com os gauleses das montanhas. É o desfiladeiro de Gás, que por ser muito estreito era potencialmente uma armadilha mortal, e se foi através dessa rota que o exército passou, é possível supor que Aníbal não havia feito qualquer reconhecimento e fora enganado por seus guias, ou que ele simplesmente resolveu arriscar. Nenhuma dessas suposições parece provável, mas a geografia da rota de Aníbal tem originado inúmeros livros e teses, nenhum com efetiva comprovação, a menos que algum dia alguma evidência arqueológica seja encontrada para provar que "os cartagineses um dia passaram por esse caminho"; o máximo que se pode dizer é "devem tê-lo feito". À luz do dia, o exército começou a se posicionar para a passagem através da garganta. A essa altura, os alóbrogos já haviam descoberto que seus pontos estratégicos tinham sido ocupados durante a noite.

Rota da invasão de Aníbal.

Aníbal estava agora a meio caminho de seu destino, aproximadamente, numa travessia dos Alpes que ninguém jamais pensara que um grande exército pudesse realizar. De modo a não deixar o comboio de animais de carga e bagagens indefeso na retaguarda, Aníbal, rápida e cuidadosamente, posicionou-o atrás do corpo principal da cavalaria, na vanguarda; depois vinha o grosso do exército, seguido da nata da infantaria pesada como retaguarda. É quase certo que, se não tomasse essas sábias providências, teria perdido todo o seu exército. Dois dias de marcha adiante, os gauleses, que silenciosamente haviam se concentrado nas montanhas ao redor, prepararam seu ataque. O exército passava através de uma estreita garganta, seguindo a trilha que acompanhava o curso de um pequeno e rápido rio (possivelmente o rio Guil), que desagua no rio Durance, o qual haviam deixado para trás. Era outubro, e naquela tardia estação do ano os cartagineses talvez tivessem pouca noção de direção básica — sem contar que desconheciam a área específica daquele território. Aníbal sabia que a Itália ficava em algum lugar a sudeste, mas mesmo coordenadas elementares, tais como o nascer e o pôr-do-sol, eram mascaradas pelas montanhas. Os guias, como ele suspeitava todo o tempo, provaram ser traiçoeiros.

Então, finalmente, "após uma subida de nove dias, Aníbal atingiu o cume (…)". Lá embaixo se revelava o território verde-escuro da Itália. Para isso muitos tinham morrido, e somente a impossibilidade de retorno e a impetuosa inspiração de seu líder haviam mantido esse exército multirracial e poliglota em movimento através da imensidão dos Alpes. Ele esperou por dois dias no ponto onde a trilha não ia mais acima.[carece de fontes?]

Consta[onde?] que Aníbal saiu de Cartagena aproximadamente na metade de junho de 218 a.C. e passou cinco meses entre Cartagena e as planícies do . Portanto, foi em meados de outubro que ele se deteve ante a linha divisória de águas acima da Itália e fitou o sul.[carece de fontes?]

Contrariando o otimismo expressado no discurso de Aníbal, a descida desde a linha d'água foi até mesmo pior do que a longa subida até ali. O inimigo não era mais o gaulês das montanhas, mas sim as condições impostas pelo inverno — a queda de neve nas primeiras nevascas daquele ano, sob a qual, naquela altitude, jazia a dura e compacta neve do ano anterior.

A cavalaria deteve-se ali — parecia-lhes que haviam finalmente alcançado o fim da estrada, uma posição sem chances de avanço — e foi comunicado a Aníbal que o caminho era intransponível. Não somente um deslizamento de terra, mas também o volume de neve acumulada bloqueavam o exército. A neve fresca encobrindo as velhas trilhas fazia com que os animais, quando rompiam a superfície, afundassem as patas no leito mais abaixo, enquanto a neve mole se fechava ao redor deles, segurando-os como uma garra gelada. Os homens se saíam pouca coisa melhor: quando tentavam erguer-se sobre as mãos e joelhos, eles não conseguiam apoio na neve velha e profundamente congelada, e escorregavam pelas escarpas que serviam como degraus. Aníbal percebeu que não havia como fazer qualquer desvio, mas que o estreito desfiladeiro da montanha podia ser reforçado e toda a trilha nivelada.[carece de fontes?]

Por qual desfiladeiro Aníbal conduziu seu exército na descida até as planícies do rio Pó é pergunta que tem gerado muita controvérsia no decorrer dos séculos e ocasionado vários escritos diferentes, de muitos monógrafos. Alguns desfiladeiros, tais como o Grande St. Bernard e o Pequeno St. Bernard, são relativamente fáceis de se descartar, uma vez que eles não levam ao país habitado pelos taurinos — tribo em cujo território as forças de Aníbal emergiram em sua descida dos Alpes. O que é perfeitamente claro nos relatos da travessia de Aníbal pelos Alpes é que o desfiladeiro utilizado por ele está entre os altos e perigosos que conduziam de modo íngreme à Itália. Após verificarmos todos os dados, sem contar as teorias, os quatro mais cotados continuam sendo o monte Cenis (tornado famoso por Carlos Magno e Napoleão), o passo Clapier, o Montgenèvre e o passo de Traversette. O desfiladeiro Monte Cenis e o Passo Clapier possuem ambos locais próximos ao cume onde o exército poderia ter acampado, mas o Passo Clapier tem preferência, sendo um desfiladeiro alto e rústico. Ele também possui uma saliente espora no início de sua descida em direção à Itália, de onde se tem uma esplêndida vista das planícies abaixo. O Montgenèvre, que através dos anos ganhou muitos partidários, oferece um bom local para acampamento, mas é o mais baixo de todos os desfiladeiros e não está de acordo com o retrato da perigosa rota tomada por Aníbal.

O desfiladeiro mais alto de todos os quatro, o passo de Traversette, preenche quase todos os requisitos das narrativas[quem?], mas falta um local de acampamento adequado. Fortes argumentos podem ser, e têm sido, adaptados para cada uma dessas quatro rotas de acesso. A escolha final parece recair entre o desfiladeiro de Clapier e o de Traversette, com ligeira diferença em favor do passo Clapier.

Para que não possam restar dúvidas, quando chegaram as notícias a Roma de que o impossível acontecera — Aníbal e seu exército cartaginês haviam irrompido tal qual uma águia nos desfiladeiros dos Alpes — houve pânico na cidade. Era, contudo, uma águia esfarrapada e magra, que então alisava suas asas sob a pálida luz do sol de inverno do norte italiano e tentava tirar algum proveito do que restou da horrível marcha.

Reunidas uma vez mais em uma terra que fornecia pasto, cereais e animais para abate, as tropas, que em aparência e condição mais se assemelhavam a animais do que a homens, poderiam, pela primeira vez em muitos meses, desfrutar de algum conforto — ainda que não por muito tempo — e recuperar suas forças. Aníbal podia agora proceder a uma cuidadosa análise e saber com exatidão o que o seu inacreditavelmente arriscado empreendimento havia lhe custado. Pela vantagem da surpresa e para assegurar a ligação da sua causa à dos gauleses na Itália, ele havia pago tão caro que a maioria dos generais teria considerado a campanha já perdida. De acordo com Políbio, a mais notável autoridade no assunto, ele havia cruzado o Ródano com cerca de cinquenta mil soldados de infantaria e nove mil cavaleiros[18] e, uma vez que não há registro de quaisquer perdas após ou durante a travessia do Ródano, presume-se que fora com um número aproximado — levando-se em conta as perdas naturais devido a acidentes e doenças — que ele tenha iniciado sua subida aos Alpes.

Quinto Fábio Pictor, primeiro dos historiadores latinos, conhecido como o "Pai da História Romana", lutou contra Aníbal na guerra que estava para começar e reconheceu que naquele período os romanos e seus Estados aliados eram capazes de mobilizar setecentos e cinquenta mil homens. Aníbal sabia, pois fora avisado previamente pelos gauleses na Itália, que muitos milhares deles iriam se sublevar, aclamando-o como libertador, e se uniriam às suas forças na guerra contra Roma. Ele conhecia a bravura deles (bem como sua falta de disciplina), mas o que não poderia saber, enquanto contemplava seu maltratado exército recuperando-se no sopé dos Alpes, era quantos deles exatamente se uniriam sob seu estandarte. Havia subjugado as tribos do norte da Hispânia, e tudo o que precisavam da península Ibérica constituía agora colônia cartaginesa; cruzara os Pirenéus e o rio Ródano; e podia olhar para trás em direção aos luzentes picos alpinos, que conquistara com tão severas perdas, como a última grande aventura entre ele e seu objetivo. Porém agora deveria enfrentar os fortes e disciplinados exércitos de Roma — e naquele momento ele tinha não mais do que vinte mil semidefinhados soldados, seis mil cavaleiros em esqueléticos cavalos, e trinta e sete extenuados elefantes. Era muito pouco com que medir forças contra o maior poderio do mundo mediterrâneo.

Primeiras batalhas contra os romanos

A batalha de Ticino, travada em novembro de 218 a.C., foi uma batalha da Segunda Guerra Púnica, na qual Aníbal derrotou os Romanos sob Públio Cornélio Cipião numa luta de cavalaria. A batalha do Trébia deu-se em dezembro do ano 218 a.C., junto das margens do rio Trébia, na atual região italiana da Emília-Romanha, na qual o general romano Públio Cornélio Cipião foi derrotado pelo exército cartaginês comandado por Aníbal, em um dos sucessos bélicos mais importantes das Guerras Púnicas onde se confrontaram romanos e cartagineses. A batalha do Lago Trasimeno, travada na primavera de 217 a.C., foi uma batalha da Segunda Guerra Púnica, na qual Aníbal destruiu o exército romano de Caio Flamínio numa emboscada, matando-o.

A ditadura de Fábio

Ver artigo principal: Ditadura de Fábio Máximo
Estátua de Quinto Fábio Máximo, ditador romano durante a Segunda Guerra Púnica

A derrota de Caio Flamínio no lago Trasimeno, deixou Roma à mercê de Aníbal. Esperava-se que o cartaginês, em seguida, investisse contra a cidade para tomá-la e terminar, vitoriosamente, a guerra. Diante dessa séria ameaça, o senado romano decidiu nomear um ditador para dirigir a defesa, e a escolha recaiu sobre o senador e ex-cônsul, Fábio Máximo, que já exercera essa função extraordinária, anteriormente.

Supondo que Aníbal marcharia contra Roma, Fábio concentrou seus esforços em preparar a cidade e seus cidadãos para a resistência ao invasor. Mas como o exército cartaginês não apareceu ele concluiu que Aníbal não dispunha dos equipamentos necessários para cerco e assalto, e que esperava que os romanos reunissem suas últimas reservas para esmagá-las em campo de batalha.

Mas o ditador não se dispôs a dar a Aníbal o que ele queria. Ao contrário, consciente da superioridade militar do inimigo, decidiu evitar uma nova batalha campal, preferindo fustigar as forças púnicas, numa guerra de desgaste. Para tanto, ordenou que todas as pessoas residentes na linha de marcha de Aníbal abandonassem suas casas e fazendas, queimassem todas as suas propriedades e destruíssem suas colheitas, para privar os invasores de quaisquer meios locais de manutenção. Por adotar essa tática, tão estranha à tradição militar romana, Fábio foi apelidado, pejorativamente, de "cunctator" (contemporizador), sendo alvo de muitas críticas por parte de seus concidadãos e, sobretudo, de seus adversários políticos.

Quando Aníbal moveu-se para o sul, Fábio o seguiu, mantendo seus homens no sopé dos Apeninos, de onde ele poderia despachar grupos de ataque para isolar forrageadores e acossar os flancos do inimigo. E todas as vezes que o cartaginês lhe ofereceu uma oportunidade de combate, ele, cautelosamente, a ignorou. Nem mesmo quando Aníbal atacou Cápua, esperando que Fábio usasse suas legiões para defender a cidade, nem assim o ditador abandonou a estratégia que decidira adotar.

Quando se esgotou o tempo (limitado) de sua ditadura, Fábio Máximo devolveu o comando aos cônsules Servílio e Régulo (que havia substituído Flamínio). Pouco tempo depois, foram eleitos os cônsules de 216 a.C.: Lúcio Emílio Paulo, membro de uma renomada família patrícia, e Caio Terêncio Varrão, um plebeu de opiniões radicais, que se tornara um dos maiores críticos da estratégia contemporizadora de Fábio Máximo. Eles dariam a Aníbal o que Fábio lhe negara: uma grande batalha, que talvez decidisse a guerra.

Canas

Ver artigo principal: Batalha de Canas
Aníbal contando os anéis dos cavaleiros romanos caídos na Batalha de Canas (216 a.C.). Mármore de 1704 esculpido por Sébastien Slodtz, atualmente exposto no Museu do Louvre.

Na primavera de 216 a.C., Aníbal começou a movimentar-se. Os suprimentos de Gerônio estavam quase esgotados e não havia mais nada a ser tirado da terra conquistada. Enquanto os romanos mantinham um firme sistema de suprimento para os seus exércitos em campo, Aníbal sempre era forçado a capturar algum rico depósito ou deixar o país, uma desvantagem que ele iria sentir ao longo de suas campanhas. Marchou para o sul e, cruzando o rio Aufido (Ofanto), desceu sobre a cidade de Canas.

Apesar de ser um lugar sem importância em si, era um dos principais depósitos de grãos que os romanos usavam para abastecer o exército. A cidade situava-se em uma colina que se erguia abruptamente de uma indistinta planície, através da qual o Aufido fluía de modo tortuoso para o Adriático, cerca de seis milhas distante.

Apoderando-se de Canas, Aníbal privara o exército romano de uma importante fonte de suprimentos, assegurando, além disso, alimentação mais do que adequada para seu próprio exército. Depois, o precoce milho da Apúlia estava amadurecendo e ele encontrava-se, assim, em posição de isolar os romanos dessas futuras colheitas.

Servílio e Atílio, os cônsules do ano anterior que ainda estavam com o exército, defrontavam-se com um dilema. Até que fossem rendidos pelos dois novos cônsules, Lúcio Emílio Paulo e Caio Terêncio Varrão, estavam tecnicamente no comando. Eles certamente não tinham o desejo de travar batalha contra o formidável cartaginês, particularmente porque sabiam que o exército que iria se juntar a eles significava, praticamente, a única esperança que os romanos possuíam de derrotar o inimigo. Fora a batalha, suas únicas opções reais eram seguir Aníbal a uma distância segura e conseguir seus suprimentos de armazéns distantes, ou retirar o exército inteiramente até que fossem reforçados pelas novas legiões.

O senado havia determinado aquele ano para a batalha. Eles tinham o apoio não só do povo como também dos equites, a cavalheiresca casta aristocrática. Todos os segmentos da população, embora houvesse grande divisão entre eles — divisão fomentada por homens como Varrão — estavam decididos a vingar as derrotas que Roma sofrera nas campanhas dos dois anos prévios, e apagar o desprezo lançado sobre o nome romano pela presença desse general cartaginês e seu exército improvisado nas terras da Itália.

Não apenas sua honra e suas tradições os exortavam a oferecerem seus serviços, mas consta que tanto plebeus quanto aristocratas perceberam que Roma, não só a cidade mas também todo o conceito da Roma eterna, havia chegado a um ponto crítico. Embora ainda fosse uma república, era fato que a Roma imperial já havia começado a despontar — e nenhum império pode sobreviver se não consegue lidar com os invasores de sua própria terra. Era essencial, para manter o respeito dos países sob seu poder, e dos que ainda viriam a estar, que o invasor fosse aniquilado. Determinado, então, a uma decisiva batalha em larga escala, o Senado deu ordens para os procônsules permanecerem com o exército existente e não fazerem qualquer movimento até que fossem reforçados pelos cônsules Lúcio Emílio Paulo e Caio Terêncio Varrão — e o novo exército de 216 a.C.

Contra eles, Aníbal colocou quarenta mil homens de infantaria e dez mil de cavalaria. Parte da discussão a respeito do número exato de romanos engajados em Canas parece ter vindo do fato de os comentadores não aceitarem de bom grado a possibilidade de tamanha desproporção entre a extensão dos dois exércitos: no máximo, os romanos teriam o dobro de homens que o inimigo e, na pior das hipóteses, seriam um quarto mais numerosos. Porém, exemplos suficientes existem, ao longo dos tempos, de pequenas forças triunfando sobre grandes, e em Canas havia muitas vantagens do lado de Aníbal que de longe sobrepujavam qualquer superioridade numérica ostentada pelos romanos. Sucede que ele não era somente um génio da guerra, mas também estava num comando solitário e sem divisões. Ademais, seus outros comandantes eram excepcionalmente brilhantes, tinham trabalhado e lutado juntos em muitos campos de batalha, e conheciam e respeitavam a qualidade de seu líder. (Como o "bando de irmãos" de Nelson, eles não necessitavam de quaisquer ordens, uma vez que a ação tivesse iniciado, pois se entendiam completamente.)

Não bastasse isso, o exército cartaginês, embora misto, consistia inteiramente de soldados experientes, que gozavam de completa confiança, vantagem que os sucessos prévios lhe proporcionaram, enquanto a maioria dos romanos e seus aliados, por outro lado, era formada de inexperientes grupos. Ainda um último fator de vantagem, de modo algum menos importante, foi terem chegado primeiro ao local; assim tiveram tempo de se refazer e explorar a área inteira ao redor de Canas e do rio Aufido, ao passo que os romanos vinham de uma longa marcha por um lugar estranho, e com comandantes em discordância um com o outro.

Apesar da desproporção numérica, portanto, a verdadeira desigualdade agia em favor do cartaginês e é improvável que Aníbal tenha ficado mais intranquilo do que qualquer general que estivesse prestes a mandar seu exército para a batalha.

Aníbal primeiro acampou às escondidas ao sul da colina de Canas. Ao ouvir sobre a aproximação dos romanos, deslocou suas tropas através do Aufido e montou um novo acampamento na margem oeste. Uma vez que a terra, daquele lado, era ainda mais plana e adequada para a cavalaria, ele esperava poder enfrentá-los onde a superioridade de seus cavaleiros mais facilmente se fizesse sentir.

No dia em que os dois exércitos, pela primeira vez, ficaram à vista um do outro, Lúcio Emílio Paulo estava no comando e, reconhecendo que a terra adiante favorecia claramente uma ação de cavalaria, alertou Caio Terêncio Varrão de que as legiões levariam maior vantagem se elas se deslocassem para um solo mais acidentado. Varrão não concordou e, no dia seguinte, estando no comando, decidiu levar as legiões pelo Aufido e enfrentar Aníbal do outro lado da planície. Embora Políbio atribua o pronunciamento às tropas a Paulo,[18] não pode haver dúvidas de que as palavras, a seguir, refletiam a opinião de Varrão: (...) Seria estranho ou certamente impossível que, após enfrentarem seus inimigos em termos de igualdade em tantas escaramuças diferentes, e na maioria dos casos saindo vitoriosos, agora que vão confrontá-los com suas forças unidas, as quais superam as deles em mais de dois por um, vocês fossem batidos. Varrão estava bastante consciente de que o novo exército tinha sido enviado para conquistar uma grande vitória e livrar Roma do cartaginês de uma vez por todas. Ele não utilizava qualquer tática ao gosto de Quinto Fábio Máximo, o Protelador, e falar sobre deslocamento por solo acidentado só o deixava mais determinado a descer até a planície.

Então, todo o exército romano moveu-se para a margem oeste do Aufido, onde estabeleceram seu acampamento principal, em frente às tropas de Aníbal, cerca de duas milhas distante deles ao norte.

Ao mesmo tempo, parte do exército foi enviada através de um vau para estabelecer um acampamento secundário menor na margem oriental do rio. Quando os romanos estavam em coluna de marcha, foram atacados por alguns dos cavaleiros ligeiros númidas, sofrendo algumas poucas baixas. Esse encontro não foi de grande consequência e os númidas retiraram-se quando se viram frente à cavalaria pesada romana reforçada pelas legiões. Quando muito, os romanos ficaram com a vantagem nesse primeiro choque, o que deve ter gerado certo otimismo, "não tendo os cartagineses alcançado o sucesso que esperavam".

No dia seguinte, Lúcio Emílio Paulo reassumiu o comando e "vendo que os cartagineses em breve teriam que trocar de acampamento de modo a obter suprimentos, permaneceu imóvel, após garantir seus dois acampamentos com forças de cobertura." Nisso ele estava totalmente correto, pois, deslocando-se através do rio, Aníbal estava agora do outro lado de Canas e de seus suprimentos. Ele novamente enviou os númidas, que tinham ordens de acossar os destacamentos romanos de abastecimento de água ocupados em trabalho fora do acampamento menor, no lado leste do rio. Os romanos tiveram seu moral desgastado quando viram aquele acampamento distante assediado por esquadrões volantes de cavaleiros e seus suprimentos de água negados.

Estratégia arquitetada por Aníbal para destruir o exército romano durante a Batalha de Canas, cortesia do Departamento de História da Academia Militar dos Estados Unidos.

Era junho. O quente verão se instalara; a água era importantíssima, e a planície ao redor do rio Aufido começava a rachar com o calor. Durante aquela noite, ou no começo do dia seguinte, o vento mudou para o sul e um siroco (conhecido localmente como Volturno) começou a soprar. Bafejando preguiçosamente ao longo do Adriático, e atingindo os dois exércitos acampados milha após milha através da Itália, do mar Jônio e do distante golfo de Taranto chegava o ar úmido, trazendo a poeira da terra consigo. Vento desgastante, o siroco deixa uma cobertura de poeira e umidade mesmo sobre o viajante sem cargas; as novas legiões, pouco acostumadas a levar armas e armaduras, ao contrário dos veteranos de Aníbal, suavam à medida que subia o sol. Já era o cruel "sol leão" de verão e os homens teriam que se defrontar não apenas com o adversário, mas também com o maior inimigo de todos nas terras sulinas, o calor do meio-dia. Naquele dia, o quarto desde que os exércitos haviam se avistado, era a vez de Caio Terêncio Varrão assumir o comando, "e logo após nascer o sol começou a deslocar-se, com suas forças, de ambos os acampamentos".

Cruzou o rio com a parte principal do exército e reuniu-se ao acampamento menor na margem leste. Suas razões para agir assim não foram investigadas pelos historiadores primitivos e, todavia, esse movimento que determinou o local do campo de batalha é logicamente importante. Em primeiro lugar, o segundo acampamento fora inicialmente estabelecido de modo a prover um local para abastecimento de água de um vau adequado, e a água seria crucial num dia de verão. Em segundo, movendo-se pelo lado em que se elevava a colina de Canas e seus celeiros, Caio Terêncio Varrão ameaçava os suprimentos de alimento de Aníbal. Em terceiro lugar, sendo o primeiro a mover-se e a ter forças dispostas em linha diante do calor do dia que se iniciava, deve ter esperado surpreender Aníbal e, antevendo que as forças deste último naturalmente se deslocariam para enfrentar os romanos, pilhar o exército cartaginês enquanto ainda estivesse em desordem após ter atravessado o rio. Finalmente, a terra na margem leste do Aufido, embora bastante plana, possuía uma quantidade de ondulações e irregularidades que tornariam as coisas difíceis para a cavalaria. Varrão não agiu com estupidez precipitada.

Tão logo viu os romanos a mover-se naquele tórrido dia, Aníbal enviou suas tropas com armas leves — os fundibulários e os lanceiros — através do rio. Ele sabia quem estava no comando do exército romano e que, mesmo antes de o corpo principal das tropas oponentes começar a desfilar em direção do rio, após uma longa demora, ele havia trazido o corpo principal das armas romanas para a batalha. Desde o lago Trasimeno esperava por esse momento, e o ano de espera — sempre frustrado pela inteligente temperança de Quinto Fábio Máximo talvez agora pudesse ser levado à necessária e dinâmica conclusão.

Os romanos posicionaram-se em formação de batalha quando Aníbal e a corporação de seu exército cruzaram o Aufido em dois locais separados e entraram no padrão tátíco que seu general lhes havia designado. Se estivesse lutando na margem oeste do Aufido, teria colocado os cavaleiros ligeiros númidas em seu flanco esquerdo, onde sua mobilidade poderia ser melhor utilizada, e sua cavalaria pesada à sua direita, bem próximo do rio, onde não importaria tanto se seu ataque fosse restrito.

Como estava, posicionando seu exército na terra abaixo da colina de Canas, colocou os númidas no seu flanco direito, onde eles novamente poderiam fazer uso do terreno aberto, e a brigada pesada, consistindo de iberos e gauleses, à sua esquerda, perto do sinuoso rio. Eles estariam de frente para a cavalaria da ala direita romana e ele esperava que sua maior habilidade e a superioridade numérica o capacitassem a enfrentar os romanos na margem do rio. Próximo a eles, estacionou metade de seus veteranos africanos, a infantaria de armas pesadas locupletada de equipamento bélico tomado dos romanos em Trasimeno. No centro, onde ele próprio comandava, posicionou o corpo de suas tropas, os iberos e gauleses, com a outra metade dos africanos à sua direita, e além deles os cavaleiros númidas. Os africanos "estavam armados à moda romana.

O irmão de Aníbal, Magão, estava junto dele no comando do núcleo; Asdrúbal, oficial da equipe de Aníbal, comandava a esquerda cartaginesa; Hanão, à direita, com o grande comandante da cavalaria Maárbal liderando os cavaleiros númidas.

Enquanto isso, o maior exército que Roma jamais enviou a campo estava disposto contra ele do modo convencional, com a cavalaria em cada uma das alas, os cavaleiros aliados à esquerda, de frente para os númidas, e os romanos à direita, próximo do rio, enfrentando a cavalaria pesada de Aníbal. No centro estavam as legiões, fileira após fileira: "os manipules, mais próximos um do outro do que de costume, fazendo com que a profundidade de cada um muitas vezes excedesse sua frente". Era esperado que, como em muitos campos de batalha, o peso blindado dos disciplinados legionários abrisse um buraco através do núcleo de Aníbal. Emílio Paulo, relutante porém apto para essa ação que ele considerava imprudente, comandava a cavalaria romana, enquanto Caio Terêncio Varrão liderava a cavalaria aliada. Gemino Servílio, o cônsul do ano anterior, comandava o núcleo romano composto pelas legiões.

Naquele instante, quando ambos os exércitos se encararam e o abrupto peso e superioridade numérica dos romanos ficaram evidentes aos olhos de todos, deve ter ocorrido um momento de tremor entre os cartagineses, e entre o pequeno grupo de oficiais de comando em volta de Aníbal.

O escudo de Henrique II de França representando a vitória de Aníbal em Canas, uma ilusão do conflito da França com o Sacro Império Romano Germânico durante o século XVI.

O pequeno grupo, então, desatou a rir, a tensão foi quebrada, e as fileiras atrás deles sentiram sua confiança restaurada pelos risos dos líderes ecoando no ar do verão. No momento em que os exércitos colocaram-se em ordem de batalha — as tropas com armas leves, fundibulários, atacantes e lanceiros, avançando para iniciarem os primeiros ataques — o sol estava a pino. Assim que começou a inclinar-se para o sul, os romanos ficaram com o sol nos olhos, e os cartagineses, de costas para ele. O siroco começou a soprar mais fortemente à medida que o dia avançava, "um vento", como Lívio diz, "que sopra nuvens de poeira sobre a seca aridez das planícies".[36] Levantando-se sobre a terra atrás das linhas cartaginesas, soprou rispidamente no rosto dos romanos e de seus aliados. Quando o trote de milhares de homens e cavalos, o alarido de armaduras e espadas, o relincho dos cavalos e os brados de comando de oficiais e centuriões haviam acalmado, os dois exércitos se defrontaram no penoso semi-silêncio que precede uma tempestade. Ao som das trombetas de bronze, as tropas leves avançaram através do ar denso para desferirem seus primeiros golpes exploratórios umas contra as outras, como boxeadores procurando por uma brecha. Assim que os exércitos começaram a mover-se, foi notável que o núcleo cartaginês se lançasse à frente numa curiosa disposição em formato de um crescente, com a cúspide desse crescente projetando-se em direção ao inimigo, "a linha das companhias laterais ficando mais afilada à medida que se prolongava". Aníbal abriu a batalha propriamente dita com os iberos e gauleses, deixando os africanos armados com armas pesadas como reservas em cada ala. Eles formavam, por assim dizer, fortes retângulos flanqueando o saliente crescente. Sombrias e tenebrosas, equipadas com armas romanas, as tropas africanas eram como sombras em cada lado da sanguinária meia-lua guerreira que se projetava além deles.

O verdadeiro combate começou com os cavaleiros iberos e gauleses e a cavalaria pesada romana, ambos constringidos pelo rio. Somente um ataque frontal poderia sobrevir, e os romanos — os cavaleiros de armadura ávidos para provar sua virtude e patriotismo, à frente dos legionários plebeus — tinham a desvantagem de, ao contrário dos seus oponentes, não terem vivido e lutado na sela por vários meses, para não dizer anos. "Ambas as partes investiram direto à frente", escreve Lívio,[36] "e assim que os cavalos pararam, emaranhados na multidão, os cavaleiros se atracaram com seus inimigos e os arrastaram para fora das selas. Combatiam, agora, em sua maioria, sobre seus pés (...)". Os romanos, há apenas cerca de uma semana fora dos quartéis de inverno, muitos deles pacatos homens da cidade, não foram páreo para seus inimigos. "(...) Mesmo tendo sido severa, a batalha logo terminara, e a derrotada cavalaria romana voltou-se e fugiu". A cavalaria pesada atacou através da lacuna deixada pelo colapso da ala direita romana. O cônsul Lúcio Emílio Paulo, que estava no comando, escapou incólume dessa selvagem ação e cavalgou para o núcleo, onde se colocou na vanguarda dos legionários, "encorajando e exortando seus homens". Ele era da velha linhagem romana, conservador, porém preparado para lutar mesmo onde ele próprio não teria travado batalha.

À direita cartaginesa os númidas tinham agora entrado em ação contra os cavaleiros aliados de Roma com os africanos usando o espaço livre do terreno além deles para impedir qualquer ataque frontal, mas dando a volta e atacando seu inimigo em turnos de mergulhos e retiradas, como aves de rapina. Enquanto isso, os corpos principais dos dois exércitos, as esforçadas infantarias, haviam entrado em colisão. Aníbal, "que havia estado nessa parte do campo desde o início da batalha", despreocupado, como sempre, com sua própria segurança, liderava as mesmas tropas que ele enviara ao sacrifício. A linha estreita de iberos e gauleses não suportaria muito mais tempo os golpes duros como de clavas que a densa massa das legiões em avanço desferiam contra ela. Vagarosa, mas constantemente, a cúspide do crescente sucumbia e retrocedia, primeiramente em corte, e depois em forma de U. As legiões, bastante amontoadas desde o início e sem a mobilidade que sua formação aberta de manipulo normalmente lhes proporcionava, começavam agora a afluir para trás, uma após a outra, de modo que pareciam uma torrente de armaduras arrebentando-se sobre um dique em desmoronamento. Mas em ambos os lados do núcleo que recuava as muralhas de ferro dos africanos permaneciam firmes. Ao contrário dos legionários que lideraram o ataque e dos legionários que os seguiam (comprimidos, ombro a ombro, dificilmente capazes de erguerem os braços armados com espadas), os africanos não tinham até agora tomado parte na luta.

Na ala direita cartaginesa, os númidas haviam triunfado da cavalaria aliada romana, não sendo essa última páreo para os mais habilidosos cavaleiros do mundo, que agora perseguiam o inimigo enquanto este dispersava.

Entre os que fugiam estava o cônsul Caio Terêncio Varrão, o homem cuja confiança mal direcionada havia levado a esse sangrento encontro no campo de Canas. Durante todo o tempo, as legiões romanas continuavam a forçar o núcleo de Aníbal. Elas haviam penetrado tão fundo que a infantaria africana nos flancos projetava-se de cada lado como margens cercando um movimentado rio de armaduras.

Asdrúbal, oficial da equipe de Aníbal, à frente da cavalaria pesada cartaginesa, tinha, enquanto isso, destroçado completamente a ala direita romana e, em seguida, guiou seus cavaleiros para trás das legiões romanas, atacando a cavalaria aliada em seu flanco esquerdo. Já em desordem, ou em fuga diante dos númidas, esse trovão da cavalaria pesada em sua retaguarda completava o colapso da ala esquerda romana.

Uma trombeta soou. O momento havia chegado. A tática de Aníbal de duplo envolvimento das legiões romanas estava concluída. As tropas africanas, pesadamente armadas, disciplinadas e robustas, fizeram seu movimento: "os da ala direita volvendo para a esquerda, e os da ala esquerda, volvendo para a direita (…)". Sobre a massa de romanos que se debatia entre os cartagineses, agora apanhados no núcleo das tropas, os africanos se movimentaram como os dois lados de um torno se fechando. Para completar essa terrível armadilha dentro da qual as legiões haviam mergulhado na perseguição ao núcleo de Aníbal em colapso, suas linhas de retaguarda agora viam-se atacadas. A cavalaria pesada, tendo completado a destruição da cavalaria aliada, havia deixado que os númidas os perseguissem enquanto fugiam, para surpreender a retaguarda das legiões romanas.

Cercados, uma vez que os iberos e gauleses que formavam o núcleo de Aníbal ainda lutavam ferozmente, disputando cada pedaço de solo, os romanos foram totalmente atingidos pelo arrocho das duas alas formadas pelos africanos. Por toda aquela tarde quente, a planície abaixo da colina de Canas se transformara num matadouro.

Lívio escreve que quarenta e cinco centenas de soldados de infantaria e dois mil e setecentos cavaleiros foram mortos numa proporção quase igual de cidadãos e aliados.[36] Apiano e Plutarco dão um total de cinquenta mil homens;[37] Quintiliano, sessenta mil homens, e Políbio eleva o grande total de romanos mortos a setenta mil.[18] Os cartagineses perderam aproximadamente quatro mil gauleses, mil e quinhentos iberos e africanos, e duzentos cavaleiros.

Assim como o cônsul Lúcio Emílio Paulo, os dois cônsules dos anos anteriores, Servílio e Atílio, foram ambos mortos, além de Minúcio, o chefe dos cavaleiros de Quinto Fábio Máximo|Fábio. Oitenta senadores, dois questores (tesoureiros do Estado) e vinte e nove tribunos militares — mais da metade do total daqueles descendentes de sangue nobre romano — morreram naquele dia.

Após a batalha

Caio Terêncio Varrão, junto com um pequeno grupo de cavaleiros aliados, cavalgou para Venusia (atual Venosa) trinta milhas adiante. Políbio comenta que "ele desgraçou a si mesmo com tal fuga; o exercício do seu mandato tinha sido o menos proveitoso possível para o seu país".[18] O mais espantoso é que, ao chegar, por fim, a Roma, foi recebido por uma grande multidão que o congratulava por não ter perdido a esperança na república. Seria essa flexibilidade — a pura força e vitalidade — das instituições políticas de Roma que no fim derrotaria Aníbal. Em Cartago, o destino de um general malsucedido e covarde era bem conhecido — ele era crucificado.

Da infantaria sobrevivente um número não especificado conseguiu chegar a Canusio (atual Canosa di Puglia), entre eles um dos tribunos militares, o jovem Cipião. Este era testemunha da genialidade de Aníbal, a qual ele iria estudar e aproveitar. Anos mais tarde, no campo de batalha norte-africano de Zama, ele demonstraria ter absorvido bem as lições. Dez mil homens que haviam sido deixados para guardar o acampamento romano e, se possível, atacar e tomar o acampamento principal dos cartagineses, foram apanhados após a batalha; foram mortos dois mil, e os restantes, aprisionados. A pilhagem do acampamento romano e do campo de Canas foi considerável: armas e armaduras, arreios de cavalos, prata e ouro, cavalos e bagagem. Diz-se que somente os anéis com sinetes de ouro, tirados dos cavaleiros romanos que haviam tombado em batalha, somavam três bushels de peso. Aníbal, como de costume, tentou recuperar os corpos de seus líderes oponentes, mas somente o do cônsul Lúcio Emílio Paulo pôde ser identificado, e a ele foi dado um honroso funeral.

Naquele momento de triunfo, quando parecia que seus inimigos estavam irreversivelmente derrotados, dificilmente haveria surpresa se alguns dentre os cartagineses sentissem ter chegado a hora de marchar sobre Roma. Ainda menos surpreendente seria que esse sentimento tivesse sido externado por Maárbal, um comandante de cavalaria sem igual, que com justiça achava que muito do êxito obtido pelos cartagineses desde a chegada à Itália podia ser atribuído aos seus soberbos cavaleiros. É natural para um cavalariano ter o sangue quente e ser cheio de ela, e Maárbal agora clamava ao seu líder para fazer uso da oportunidade que tão devastadora vitória lhe proporcionara. "No quinto dia a partir de agora", ele teria dito, segundo Lívio, "você irá jantar como um vitorioso na colina do Capitólio. Meus cavaleiros irão à sua frente, e os romanos saberão que você chegou, mesmo antes de imaginarem que viria".[36] Aníbal respondeu que, embora tais palavras fossem boas de se ouvir, ele ainda precisava de tempo para considerar. Ao que veio a famosa e irada resposta de Maárbal, ressoando através dos tempos: "Aníbal, vejo que os deuses dão a um homem muitas dádivas, mas não todas. Você sabe como vencer, mas não sabe o que fazer das suas vitórias!"[n 3] Aníbal não tinha opção. Seu exército não era grande o bastante para investir sobre uma cidade do tamanho de Roma e cerceá-la, e ele não possuía maquinário para um cerco.

As razões pelas quais ele não o fez são conhecidas, mas naquele momento parecia inconcebível para os romanos que ele não seguisse adiante com seu triunfo. As primeiras notícias que chegaram à cidade depois que os mensageiros foram enviados para ver o que tinha acontecido em Canas eram que o exército havia sido destruído e ambos os cônsules mortos. Ainda não se sabia que Caio Terêncio Varrão estava reunindo "algo semelhante a um exército consular" em Canúsio. Não havia sinal do acampamento romano, e o inimigo parecia estar de posse de toda a região. Era como se aquelas orgulhosas legiões novas, que haviam marchado para o sul para destruírem Aníbal de uma vez por todas, terminassem elas próprias varridas da face da Terra.

O tratamento de Aníbal a seus prisioneiros diferiu ligeiramente nessa ocasião, uma vez que ele não permitiu de pronto que os aliados retomassem livres para os seus lares. Ele separou uns dos outros, mas ofereceu tanto aos aliados quanto aos romanos a liberdade em troca do pagamento de um resgate — sendo o pagamento imposto aos romanos cinquenta por cento superior ao exigido pelos aliados. Ele já tinha prisioneiros e escravos mais do que suficientes e, apesar da riqueza armazenada pelo campo de batalha, sentiu provavelmente ser a hora certa para adquirir tanto dinheiro quanto possível, em vista do futuro pagamento de suas tropas. Ele tomou, uma vez mais, o cuidado de enfatizar aos aliados que sua guerra não era contra eles, mas contra Roma, e permitiu que uma delegação de dez romanos partisse para a cidade deles em companhia de um nobre cartaginês, Cartalão. Quaisquer que fossem as expectativas de Aníbal, ele ficaria desapontado: Cartalão não foi recebido em Roma e, sob advertências, precisou deixar os limites da cidade antes do cair da noite. Se Aníbal esperou com tal generosidade ter uma oportunidade de descobrir o estado do moral romano, o Senado estava igualmente convencido de que ele deveria aprender que não houvera qualquer fraqueza. Após muito debate, decidiu-se que os delegados deveriam ser enviados de volta a Aníbal com a mensagem de que Roma não tinha qualquer intenção de pagar resgates por seus soldados capturados.

Nesse momento de desastre, Roma exibia aquela face dura e resistente que faria dela a cabeça de um grande império. Embora pudesse bem ter utilizado esses soldados, sentia-se e proclamava-se que era o dever de um romano morrer a render-se. A cidade abraçara o código espartano. Dificilmente haveria dentro dos muros de Roma uma mãe que não tivesse perdido um marido ou filho nas campanhas de Aníbal: não foi permitido que elas deixassem suas casas de luto. Quinto Fábio Máximo, o Protelador, uma vez mais sustentou o velho código romano, encarregando-se do moral, bem como do trabalho nas defesas. O luto público foi proibido; o rumor e o falatório foram eliminados pela imposição do silêncio em locais públicos; todos os portadores de notícias vindos de fora da cidade eram imediatamente trazidos à presença dos pretores para que revelassem suas informações (mas não lhes era permitido discuti-las depois disso), e sentinelas foram postados nos portões para impedir que qualquer um deixasse a cidade. A necessidade dessas medidas severas foi reforçada quando as últimas notícias terríveis chegaram: um exército consular no norte da Itália, sob o comando do cônsul eleito Lúcio Postúmio, havia caído numa emboscada armada pelos boios e tinha sido massacrado.

Lívio, volvendo o passado nesse momento da história romana, avalia acuradamente a situação:

Aníbal não podia investir e destruir Roma, mas Canas lhe permitiu colher os frutos da vitória em termos políticos. Uma quantidade de cidades na Apúlia abriram os portões para ele, incluindo Arpi e Salápia, enquanto todo o Brútio (atual Calábria) — com a notável exceção das cidades gregas — e quase toda a Lucânia deixaram a confederação romana para se juntarem aos cartagineses. A maior parte do Sâmnio o fez, seguida no devido curso por Cápua, na Campânia — a segunda maior cidade em toda a península Itálica, a mais rica depois da própria Roma e a mais importante da confederação. Cápua era capaz de comportar um exército de cerca de trinta mil soldados de infantaria e quatro mil cavaleiros, e parecia destinada a ser a capital dessa nova coalizão de Estados que, sob o controle de Aníbal, poderia formar um bloco italiano e expandir-se desde o rio Volturno, a oeste, até o monte Gargano na costa adriática.

Contudo, algo significativo — e que dificilmente poderia ter escapado à observação de Aníbal — era que nenhuma das colônias latinas na região tinha aberto seus portões para ele e que as cidades gregas, igualmente, mantinham sua fidelidade a Roma. Esse último fato foi de maior consequência, uma vez que eram os "aliados navais" gregos, como eles eram denominados, que forneciam a espinha dorsal da frota de Roma. Seus portos de Nápoles, Régio da Calábria, Tarento e Túrio não somente eram prósperos por si, mas também essenciais para o controle do mar Tirreno, dos acessos à Sicília e, certamente, de todo o oeste mediterrâneo. Políbio antecipou os fatos quando se referiu a "Tarento se rendendo imediatamente".[18] Isso aconteceu meses antes de esse grande porto marítimo sulino cair nas mãos de Aníbal, e até o momento ele não tinha nenhum real acesso ao mar. Ele, contudo, conseguiu enviar seu irmão caçula Magão de volta a Cartago com as notícias sobre Canas e um relato da situação geral na Itália. Magão marchou pelo "dedo do pé" da Itália, onde as tribos brútias saudavam qualquer um que os tivesse libertado da intrometida dominação de Roma, e embarcou presumivelmente em alguma embarcação cartaginesa que havia se destacado de uma frota que ainda explorava vigorosamente as defesas da Sicília.

Aníbal necessitava muito de reforços, particularmente para a cavalaria e a treinada infantaria norte-africana. A brilhante força escolhida a dedo, com a qual ele havia deixado a península Ibérica dois anos antes, havia sofrido severas perdas — mesmo excluindo os muitos homens perdidos na passagem dos Alpes — e os gauleses e outros aliados não eram substitutos para soldados profissionais. Aníbal também precisava de dinheiro. Os mercenários tinham que ser pagos, e os espólios de Canas e sucessos políticos que se seguiram não vieram sem o lado reverso da moeda: Aníbal precisava, agora, de homens para reforçar guarnições, dinheiro para subornar cidadãos idóneos e, acima de tudo, de um equipamento para sítio. Com seu exército de conquista, ele havia feito uma brilhante demonstração que nunca mais seria repetida na história da guerra. Agora estava frente a algo que nem ele nem seu pai, e certamente ninguém do Senado de Cartago, jamais havia considerado: a exigência de uma consolidação. Não tendo meios para assediar cidades fortificadas e sem tropas disponíveis para guarnecê-las mesmo se elas caíssem, encontrava-se diante de um problema insolúvel: não poderia reter um país inteiro.

O pensamento de Aníbal — pensamento cartaginês — estava ultrapassado. Tendo feito o impossível, cruzando os Alpes para atacar o Estado romano por terra e derrotando-o com sucesso no norte, Roma deveria ter-se rendido. Tendo marchado para o sul e aniquilado um exército consular no lago Trasimeno, Roma deveria ter-se rendido. Tendo marchado ainda mais para o sul e destruído completamente os exércitos da república, Roma deveria ter-se rendido. Aníbal e os cartagineses pensavam nos moldes do passado. Pelos séculos de guerra, primeiro tribal e depois extraterritorial, os romanos tinham aprendido que uma batalha não faz uma conquista. Aníbal era um comando-líder, e ele havia alcançado seus objetivos. Ninguém lhe havia dito — nem ele havia previsto — que teria então de comandar um exército de ocupação.

O irmão de Aníbal, Magão, deve ter esperado que sua recepção em Cartago fosse, no mínimo, calorosa e estimada. Ele viera para relatar aos senhores de Cartago, e aos do seu senado, que seu general Aníbal, o filho de Amílcar, fundador de seu império na península Ibérica, havia vingado as injúrias da primeira guerra contra Roma, e que a nação que os havia humilhado com os termos de um infame tratado de paz estava agora caída de joelhos. Tinha evidências do campo de batalha — os anéis de ouro dos cavaleiros romanos, entre outras coisas —, dando conta da extensão da vitória que acabara de ser conquistada.

Se trouxera esplêndidas notícias, Magão também tinha algumas requisições a fazer. Aníbal precisava muito de reforços na forma de homens de infantaria treinados, de mais cavaleiros númidas e dinheiro. O partido de oposição em Cartago, liderado por Hanão, descendente do Hanão que havia sido obscurecido por Amílcar Barca e representante de uma das mais ricas famílias de Cartago, estava preparado com objeções contra o envio de assistência a Aníbal. Se ele havia alcançado tão grandes vitórias, por que precisava tanto de mais dinheiro e homens? Se ele fazia semelhantes demandas quando a maioria da Itália estava sob seu poder, o que pediria se tivesse sido derrotado? Agora, certamente, depois de uma vitória tão conclusiva, era a hora de fazer a paz, já que parecia duvidoso que sua posição pudesse de alguma forma ser melhorada para se obter bons termos.

Embora frequentemente desacreditado por historiadores subsequentes, o partido da paz tinha marcado sua posição — que os eventos posteriores justificariam. Contudo, não surpreende que ele tenha sido vencido e que se tenha tomado a decisão de enviar a Aníbal substanciais reforços. A maior parte deles, uns vinte mil homens de infantaria, viriam da Espanha, enquanto do território cartaginês foi acertado o envio de quatro mil cavaleiros númidas e quarenta elefantes. Mas a maioria desses reforços jamais alcançou a Itália. A posição na Espanha havia se debilitado seriamente durante os dois anos em que Aníbal se tornara o senhor da arena italiana. Após a derrota de Hanão, em 218 a.C., Públio Cornélio Cipião e seu irmão Cneu haviam partido para combater Asdrúbal, irmão de Aníbal, ao sul do Ebro, e os romanos também ganharam o controle do mar ao longo da costa ibérica. Por todo o ano de 216 a.C., enquanto Aníbal dominava a Itália e concluía a humilhação de Roma em Canas, os romanos tinham consolidado seu domínio no norte da península Ibérica, bem como fomentado a agitação tribal no sul. Asdrúbal, mesmo reforçado por Cartago, tinha dificuldades em manter a suserania cartaginesa ao sul até Guadalquivir, de modo que não poderia dispensar tropas para enviar em assistência a Aníbal na Itália.

Frente a isso, contudo, à medida que o ano 216 a.C. se encaminhava para o fim, parecia aos governantes cartagineses que as perspectivas de uma derradeira vitória eram boas. Houve uma revolta na Sardenha contra os romanos, e isso podia ser encorajado; o norte da Hispânia ainda poderia ser reconquistado; Hierão II, governante de Siracusa, aliado de Roma, estava morrendo, e no devido curso tais eventos poderiam oferecer a oportunidade da reconquista de toda a ilha — ou tanto dela quanto lhes fosse conveniente. Os sucessos de Aníbal deram ânimo a um Senado sempre inclinado a julgar as coisas muito mais pela perspectiva de retorno financeiro imediato. Três forças expedicionárias foram despachadas, uma para a Sardenha, e duas para Aníbal, na Itália. Somente a menor delas o alcançou — os númidas e os elefantes, pois a Hispânia, principal fonte dos recursos de Cartago, estava destinada a receber a maior parte. É significativo que os reforços que Aníbal estava para receber, como resultado da decisão cartaginesa tinham que desembarcar em Lócris Epicefíria, um pequeno porto no afastado sudoeste da Itália, porque nenhum porto maior estava em suas mãos.

Pretendendo capitalizar sua vitória, Aníbal entrou em contato com Filipe V da Macedônia, um governante perspicaz e enérgico que mantinha uma pendência de longa duração com Roma por sua interferência nos assuntos adriáticos, e que viu nos sucessos cartagineses na Itália uma chance de aumentar sua própria posição na Grécia. Para ele, como para tantos outros na Grécia e no leste, Roma era o inimigo, a principal ameaça para a independência de ação, e ele compreendia bem o velho ditado "O inimigo de meu inimigo é meu amigo." No verão de 215 a.C., ele e Aníbal assinariam um tratado (preservado por Políbio) no qual ambas as partes, ainda que de modo algum comprometidas, concordavam com uma aliança contra Roma.

O senado romano não tinha motivo senão para estar bastante alarmado nos últimos meses do que seria chamado "O Ano de Canas". A miséria e as trevas que encobriam a cidade levaram o povo daquela região a regredir, de avançada república, para um estado mais sombrio, que remontava às primitivas raízes de uma velha raça camponesa cujo pragmatismo nunca totalmente perdera de vista a religião e as superstições dos etruscos que haviam dominado há tantos anos. Os sagrados Livros Sibilinos foram consultados e uma comitiva enviada para Delfos para aconselhar-se com um dos mais antigos oráculos do mundo mediterrâneo. Assim como aconteceria cerca de dois mil anos mais tarde, em meio a guerras mais sofisticadassofistiscadas, as pessoas achavam que seus erros e pecados haviam trazido a calamidade sobre elas, e os templos ficavam lotados, todos se esforçando para descobrir o motivo da fúria dos deuses — e apaziguá-la. Duas Virgens Vestais, que em outros tempos não teriam seus pecados da carne descobertos, foram reveladas indignas de seu título de celibato: uma cometeu suicídio e a outra foi enterrada viva. Os romanos, mesmo alguns educados no racionalismo da Grécia, voltaram-se aos mais antigos e sombrios dos deuses (tais como aqueles que os cartagineses ainda adoravam) e reverteram à expiação pelo sacrifício humano: dois gregos e dois gauleses foram enterrados vivos para satisfazer essa arcaica sede de sangue.

"Após se aplacar essa erupção, contudo", escreve B. H. Warmington em Carthage, "aquela feroz determinação que havia marcado os romanos nos piores dias da Primeira Guerra Púnica retornou. Quanto à direção da guerra, os eleitores, de agora em diante, escolheriam regularmente candidatos que tivessem o apoio do senado, uma vez que dois dos cônsules escolhidos contra o desejo dele foram, pelo menos em parte, responsáveis pelas derrotas de Trasimeno e Canas. Formidáveis esforços eram demandados deles e dos aliados; o imposto de guerra foi dobrado em 215 a.C., por volta de 212 a.C. havia vinte e cinco legiões em campo, e durante todo o tempo foi mantida uma frota de duzentos navios com cinquenta mil remadores". Roma, que havia se recusado a pagar resgate por seus soldados capturados em Canas, mostrava agora sua disposição de ferro: prisioneiros foram libertados da cadeia com a condição de que se juntassem às legiões e estivessem dispostos a lutar por seu país, e vários milhares de escravos jovens e saudáveis foram comprados de seus proprietários e ganhavam sua liberdade se então se alistassem.

Templos e casas particulares foram despojados de armas e armaduras guardadas como troféus de batalha de guerras anteriores, e todos os artífices e artesãos foram recrutados para a fabricação de armamentos. A cidade não tinha esquecido seu dever para com os deuses e não esqueceu sua obrigação com a exigência material de uma guerra até a morte. Um outro ditador, Marco Júnio Pêra, foi escolhido com Tibério Semprônio Graco como seu mestre da cavalaria. No Trébia, no Trasimeno e em Canas, os romanos pagaram amargamente por uma política de ação agressiva. Agora demonstravam que foram sábios o bastante para terem aprendido a lição. Quinto Fábio Máximo, o "Protelador", havia-lhes mostrado o correto curso de ação, que passaria doravante a ser seguido.

Aníbal começava a assentar, até onde podia, aquele reino do sul que a vitória em Canas parecia ter colocado em seu poder. Cápua era, logicamente, o principal alvo de suas considerações primárias, pois essa cidade rica, embora politicamente dividida, parecia oferecer uma capital da qual ele poderia conduzir sua guerra contra Roma. A cidade não viera até ele sem uma respeitável divergência entre seus líderes, mas o fato decisivo que os levara a fazê-lo talvez tenha sido um pedido de Roma para que os capuenses os ajudassem com dinheiro, grãos e tropas. Diz-se que os capuenses eram um povo auto-indulgente, que se esquivava do fardo de se ligar a uma má causa — especialmente quando o exército de Aníbal estava em seus portões. Por outro lado, logo deixaram claro ao cartaginês que sua amizade não implicava qualquer colaboração mais ativa. Ele não poderia convocar qualquer elemento de suas forças armadas, embora fosse permitido aos capuenses serem voluntários para o serviço com ele, e em toda a região da Campânia somente oficiais locais poderiam ter qualquer jurisdição. Da mesma forma, as leis e costumes cartagineses só se aplicariam ao exército de Aníbal; elas não teriam nenhuma autoridade sobre os campanianos. No entanto, Aníbal, que havia esperado pelo grande porto de Nápoles e seu quartel-general, mas tinha sido dissuadido por seus portões fechados e fortes muralhas, encontrara uma cidade-capital adequada e basicamente bem-disposta para sua conquista.

Era evidente que todo o conceito da guerra nos limites do qual ele havia aluado era falso. Não era suficiente uma dramática conquista em campo e, então, ditar uma paz que confinaria Roma às suas antigas fronteiras e restauraria ao mundo mediterrâneo o status quo que prevalecia antes da Primeira Guerra Púnica. Recusando-se a se render mesmo depois de suas retumbantes derrotas, os romanos haviam introduzido um novo elemento na guerra e não cumpriam "as regras" que há muito vigoravam entre as antigas civilizações. Aníbal tem sido frequentemente comparado a Napoleão, mas uma das inovações de Napoleão foi desatrelar sobre os reinos da Europa do século XVIII um novo conceito — a guerra total ou "de povos". Eram os romanos quem agora faziam isso a Aníbal, recusando-se a aceitar que a derrota em campo de batalha implicava derrota na guerra.

Ele teve tempo durante o inverno de 216 a.C. para perceber que estava diante de algo totalmente novo: uma guerra de desgaste contra uma república politicamente bem equilibrada. O Alexandre do mundo afro-semita estava diante de um problema que nunca confrontara o grego Alexandre em suas campanhas contra os reinos do leste.

A noroeste de Cápua, dominando aquela fértil planície, ergue-se a mil e oitocentos pés o topo de monte Tifato (monte Virgo) que iria servir como uma das principais bases de Aníbal nos anos que viriam. Existia a grande vantagem de que seu cume era um platô adequado para o pasto de cavalos e outros animais, e que ele dominava não somente a planície a oeste mas também o vale do Volturno, rumando para o leste através dos desfiladeiros pelo Sâmnio e pela Apúlia. Seria bastante bom para as tropas, e mesmo para o próprio Aníbal, passar o inverno em Cápua, mas é duvidoso (e ele tinha bons motivos, a crer em Lívio) que ele confiasse na maior parte dos cidadãos de Cápua. Sugerir, como escritores romanos posteriormente o fizeram, que o exército, e mesmo o próprio Aníbal, tivessem sido "corrompidos" pela vida branda no primeiro inverno em Cápua significa dizer que os generais e exércitos romanos que o enfrentaram durante os anos seguintes tenham sido de uma qualidade muito medíocre.

O ano de 216 a.C. foi o de maior sucesso de Aníbal na península Itálica; contudo, não seria antes do outono de 203 a.C. que ele deixaria finalmente essas praias. Durante todos aqueles anos, apesar de um ou dois contratempos, ele iria manter seu controle sobre toda essa terra com um exército composto de uma quantidade decadente de norte-africanos e ibéricos, e principalmente de gauleses e nativos do Brútio (atual Calábria) e outras províncias do sul, onde a influência de Roma nunca tinha sido profundamente sentida. Apesar dos mais de dois mil anos que se passaram desde que o reino do sul fora conquistado por Aníbal, é possível sentir que sua sombra ainda pairava sobre toda aquela terra. Africa comincia a Napoli ("A África começa em Nápoles"), dizem os modernos romanos quando querem depreciar todo o território ao sul. É provável que a frase tenha se originado durante aqueles tardios séculos quando os piratas mouros, sarracenos, africanos e otomanos devastavam toda essa área. É tentador, contudo, pensar que a lembrança de Aníbal, que corroeu tão profundamente a consciência romana durante o período clássico, nunca tenha sido totalmente apagada.

No início do ano 215 a.C., Aníbal dominava monte Tifato, de onde ele comandava toda a planície campaniana. Os romanos, que apesar de todas as suas perdas possuíam oito legiões em campo, estavam preocupados principalmente em vigiar as rotas ao norte. Assim, Quinto Fábio Máximo, não mais ditador, pois que fora escolhido como um dos cônsules para o ano, estava estacionado com seu exército a cerca de dez milhas ao norte de Cápua, em Cales. O segundo cônsul, Tibério Semprônio Graco, estava próximo da costa ocidental em Sinuessa guardando a Via Ápia para Roma em um ponto estreito onde as colinas a empurravam para a costa. Em Nola, a sudeste de Cápua e guardando as cidades e portos ao redor da baía de Nápoles, estava o procônsul Marcelo com duas legiões. Na Apúlia, protegendo Brundísio (Brindisi) e Tarento — já que se temia, com razão, que Aníbal poderia tentar atacar um ou outro desses valiosos portos marítimos — estava estacionado um quarto exército sob o comando de Marco Valério. Todas as rotas importantes permaneciam guardadas e outros exércitos menores mantinham vigilância na Sicília e Sardenha, ambas as áreas à espera de que os cartagineses fizessem um desembarque. Roma estava totalmente espalhada, e Aníbal, confiante após seu sucesso do ano prévio e em suas negociações com o rei Filipe V da Macedônia, bem como com Siracusa na Sicília, poderia esperar progressos.

Durante aquele ano, Nápoles foi atacada em três ocasiões, mas uma vez mais a situação desprivilegiada de Aníbal — sua falta de equipamento de sítio — ficou evidente para todos. Os romanos não demoraram para notar que qualquer cidade bem murada e bem defendida estaria protegida contra os cartagineses. Sem dúvida, uma igual sensação de alívio foi sentida na própria Roma, muito embora uma parte tão grande da Itália ainda fosse negada a eles. As cidades interioranas de Casilino e Nucéria caíram sob seu domínio — mas através de ataques e não de sítio, enquanto a pequena cidade grega de Petélia, no sudoeste do golfo de Tarento, conseguiu resistir por oito meses antes de render-se. A ela logo se seguiria Cosência e o proveitoso porto de Crotona, outrora a cidade grega que dominava o golfo, a qual, com a derrota e destruição de sua rica rival Síbaris em 510 a.C., havia passado para a história.

Pelo fim de 215 a.C., o exército cartaginês no Brútio (a atual Calábria) invadira toda a região sudoeste da Itália, tendo somente Régio, no estreito de Messina, resistido, em lealdade a Roma. Assim como os outros portos importantes de Nápoles e Cumas, contra os quais Aníbal não tinha tido sucesso, o Régio deveu sua resistência não apenas ao resguardo de suas muralhas que confinavam com a terra, mas ao fato de que poderia ser abastecida por mar, e a frota romana tinha o completo domínio daquele importantíssimo canal estreito que divide o continente da Sicília. Nos últimos anos da guerra, quando a força do exército cartaginês encontrava-se em declínio e as táticas do "Protelador" eram aplicadas em todos os lugares contra ele, a região do Brútio iria mostrar-se o derradeiro reduto de Aníbal na península Itálica. Nessas etapas relativamente precoces, proporcionou um centro de recrutamento para os cartagineses, agora que estavam tão separados de seus aliados gauleses no norte. Hanão, que estava no comando no sul, é mencionado como tendo conseguido um exército de cerca de vinte mil homens da Calábria, principalmente entre os vigorosos nativos das montanhas, que tinham aversão a Roma e que não se ressentiam dos cartagineses como o faziam os gregos das cidades costeiras. Embora despercebido por qualquer um naquela ocasião, o nível de maré alta do sucesso de Aníbal havia sido atingido, e — tão lentamente a ponto de ser impercetível por alguns anos — a inexorável maré da fortuna começava a afastar-se dele. A atmosfera em Roma é bem descrita por Lívio, que, embora escrevendo tanto tempo após os acontecimentos, possuía fontes mais recentes e contemporâneas para abastecer-se:

O ano chegou ao fim com alguma vantagem para o lado dos romanos. Um velho e experiente soldado, Torquato, havia debelado com sucesso um levante de inspiração cartaginesa na Sardenha; Cláudio Marcelo, operando de sua base na colina sobre Suéssula, havia desviado as tentativas de Aníbal em Nola, e a captura dos embaixadores de Filipe V da Macedônia pela frota romana no Adriático havia colocado os romanos em guarda contra qualquer ação imediata vinda da aliança entre Aníbal e Filipe. Por outro lado, a morte de Hierão, governante de Siracusa e fiel aliado de Roma, abria uma nova estrada na guerra, pois o reino fora deixado para seu neto, um jovem de quinze anos, que abriu comunicações com Aníbal e prometeu-lhe a ilha inteira em troca de sua assistência.

Com o encerramento da estação das campanhas, Aníbal uma vez mais deslocou suas tropas pela costa leste da Itália e armou quartéis de inverno em Arpi, na Apúlia. Monte Tifato era um admirável acampamento de verão, mas inadequado para o inverno, e é provável que ele não desejasse impor seu exército aos habitantes de Cápua uma segunda vez. Cápua, cuja secessão de Roma parecera um triunfo, se mostraria uma pedra de moinho em volta do pescoço de Aníbal, pois sem sua ajuda a cidade não poderia se defender; o general púnico seria conclamado constantemente para auxiliá-la nos anos seguintes. Apesar do continuo brilhantismo de suas táticas, a estratégia completa ora adotada por Roma era superior, e aquele ano marcou claramente a data a partir da qual ele fora compelido a seguir um esquema defensivo. Isso dificilmente agradaria a seu génio agressivo, embora ele viesse a demonstrar que, mesmo neste papel incompatível, era um mestre. É significativo que, embora os romanos continuassem a segui-lo onde e quando quer que seu exército se movesse, eles não o atacavam quando estava em marcha. Haviam já visto o suficiente de sua excepcional habilidade em desembaraçar-se de situações aparentemente insustentáveis.

O conflito na bacia mediterrânea e terras circunvizinhas — coração da civilização ocidental — iria em breve abranger toda a região. No espaço de um ano desde o começo da guerra, a península Ibérica tinha se tornado um rinhadeiro disputado entre os dois antagonistas; a invasão da Itália por Aníbal trouxera Cartago e Roma a um conflito direto, pela primeira vez, em solo romano; a Sicília iria agora se tornar um teatro mais importante na guerra; e a aliança de Filipe V da Macedônia com Aníbal finalmente colocaria os Estados e reinos da Grécia dentro da esfera romana de influência. Nessa guerra, a guerra anibálica, os quatro cantos do Mediterrâneo, em maior ou menor grau, estariam todos envolvidos.

O mundo semita e africano ao sul havia desafiado o mundo europeu ao norte — envolvendo o oeste, desde a península Ibérica até o vale do Ródano. Os desfiladeiros dos Alpes haviam sido tomados, e os gauleses da própria Gália e do norte da Itália haviam sido arrastados para dentro do conflito. Em breve, a Primeira Guerra Macedônica iria começar, pois Marco Valério cruzaria o Adriático e destruiria o exército que Filipe preparava para a invasão da Itália, queimando a frota macedônica. Por todo o Mediterrâneo, os estaleiros estariam permanentemente ocupados pelos próximos dez anos, enquanto, da Hispânia até a própria Cartago, Itália e Grécia, as potências visavam estabelecer seu domínio do mar — posição que não poderia ser negligenciada por qualquer adversário, especialmente em um teatro onde tudo dependia das comunicações marítimas e, em última instância, da supremacia naval. Pelo ano de 214 a.C., o Senado decretou que a frota romana deveria somar cento e cinquenta navios de guerra, com a deficiência de material humano na marinha compensada por meio de impostos aos ricos em proporção para a provisão de marinheiros e seu pagamento.

O efeito mais importante desses anos selvagens foi a lenta, porém sistemática, devastação de todo o sul da Itália. À medida que o território mudava de mãos, o novo conquistador — cartaginês ou romano — também o espoliava para alimentar suas tropas ou o devastava para negar sustento ao inimigo. Em 215 a.C., Quinto Fábio Máximo estabeleceu que todas as colheitas de grãos deveriam ser trazidas dos campos para dentro das cidades fortificadas mais próximas no começo de junho. A recusa em fazê-lo acarretaria a penalidade de destruição da fazenda em questão e a venda forçada de todos os escravos do fazendeiro. No ano seguinte, Aníbal, enfurecido pela falta de resposta das cidades napolitanas à sua causa, devastou todas as terras ao redor delas e tomou o gado e os cavalos. No mesmo ano, Quinto Fábio Máximo destruiu as colheitas e fazendas do território dos irpinos e dos samnitas, como advertência àqueles que quisessem demonstrar amizade aos cartagineses. No decorrer do conflito, toda a face sul da Itália seria mudada, o fazendeiro camponês praticamente eliminado, e o caminho aberto para o longo futuro dos latifúndios — vastas propriedades pertencentes a donos de terra ausentes e trabalhadas por escravos.

A força de Roma não residia apenas na estabilidade de suas associações políticas, mas também em seu poderio humano. Ela provou isso colocando em armas, pelo ano de 214 a.C., a melhor parte de seus duzentos e cinquenta mil homens — com a plena contribuição dos aliados. Aníbal, com suas diminutas forças que não deviam somar, numa estimativa deveras otimista, mais de cem mil soldados — a maioria deles gauleses, lucanianos ou brútios — era agora confrontado por não menos do que vinte legiões. É verdade que as tropas romanas achavam-se espalhadas por toda a península Itálica e Sicília, mas era um formidável esforço de guerra da parte de Roma que Cartago nunca conseguiria igualar.

A fúria de Roma pela deserção de Cápua não conheceu limites: estava determinada a ameaçar essa "capital" do cartaginês e levar os capuenses, devidamente castigados, de volta para o curral da aliança no primeiro instante possível. Por um apelo dos capuenses, aterrorizados pela ameaça preparada para ser aplicada contra eles, Aníbal deslocou-se de Arpi, trouxe seu exército até a cidade, expulsou habilmente o cônsul Tibério Semprônio Graco em Lucéria e retornou para o seu quartel-general no platô de monte Tifato. Lívio escreve: "Então, deixando os númidas e espanhóis para defenderem o acampamento e Cápua ao mesmo tempo, desceu com o restante de seu exército para o lago de Averno, sob o pretexto de oferecer sacrifícios, mas tendo na realidade a intenção de atacar Putéolos e a guarnição que estava lá".[36] O estranho sobre essa afirmação de Lívio é que ele faz supor que Aníbal precisasse de algum pretexto para atacar Putéolos. Ele já havia atacado ou ameaçado muitas cidades da Itália — e não necessitava de desculpas para quaisquer de suas ações, que já tinham levado ao massacre de dezenas de milhares de homens. Por que, então, pode-se perguntar, essa visita a Averno?

Averno era um dos mais sagrados locais da Itália. O lago, uma milha e meia ao norte de Baias, ficava próximo das importantes cidades e portos fundados pelos gregos, Nápoles e Cumas. Tinha mais de duzentos pés de profundidade, sendo formado pela cratera de um vulcão extinto. Como os lagos sagrados da América do Sul, onde havia sacrifícios humanos, o Lago Averno era escuro, profundo e, para os comuns, não apenas misterioso, mas impregnado de um muito especial numen. Rodeado por altas margens, cobertas por uma densa, e lúgubre floresta consagrada a Hécate (deusa tríplice associada à lua, mas predominante uma deidade do mundo inferior), Averno era a entrada para aquele misterioso mundo das sombras através do qual tanto Ulisses quanto Eneias teriam passado. Vapores pestilentos subiam das águas, segundo a lenda, nenhum pássaro conseguia voar seguramente sobre o lago, donde vem seu nome, que em grego significava "sem pássaros". A exata entrada do mundo inferior era supostamente a caverna da profetisa de Cumas — a última das quais vendera Livros Sibilinos ao rei Tarquínio, o Soberbo, livros esses que Roma, agora, estava habituada a consultar em momentos da mais grave angústia. É muito provável que Aníbal tenha se encaminhado para tal lugar por razão semelhante; ele tinha muito sangue em suas mãos, e também desejava saber o que o futuro lhe reservava. Homens consultam oráculos quando são presas da dúvida e desejam obter alguma indicação divina acerca de qual direção tomar, ou uma confirmação de que o curso que seguem é o correto. Pela primeira vez desde que emergiu no palco da história, parece possível que Aníbal estivesse inseguro. Educado por um instrutor grego, devia estar familiarizado com Homero desde a infância, e sem dúvida havia algum ritual prescrito em um templo que fosse semelhante àquele adotado por Ulisses:

Pareceu que o sacrifício de Aníbal, nas sombrias regiões do lago escuro, havia dado frutos quando um pequeno grupo de nobres de Tarento veio visitá-lo. Eles lhe disseram que representavam um partido da cidade favorável à causa cartaginesa e que, se ele levasse seu exército para o sul e ficasse à vista das muralhas de Tarento, não haveria demora para a sua rendição. Tarento não era somente o maior rico porto no extremo sul da Itália, mas também apresentava localização ideal para servir de centro de comunicações e base se os cartagineses pudessem trazer uma frota do Norte da África. Mais ainda, na eventualidade de Filipe V da Macedônia deslocar frota e exército através do Adriático para invadir a Itália, Tarento serviria como porto de desembarque e centro de abastecimento. Mas o momento ainda não era oportuno, e embora Aníbal se deslocasse tardiamente no ano — depois de ver o milho colhido e guardado dentro das muralhas de Cápua — os previdentes romanos tinham se antecipado. As muralhas foram equipadas contra ele, e uma vez mais Aníbal retirou-se para o inverno na costa adriática.

O que quer que os sombrios deuses dos portões do Hades possam ter dito a Aníbal, é difícil que tenha sido algo confortador — se é que a verdade foi dita. Não somente deixaria de capturar Tarento naquele ano, mas também suas forças sofreriam o primeiro, e único, golpe desastroso jamais recebido em solo italiano. Aníbal enviara ordens para Hanão, com os reforços cartagineses e o exército recém-recrutado de Brútio (atual Calábria)], para marcharem rumo ao norte e se juntaram a ele na Campânia. Com seu exército aumentado, sem dúvida pretendia novamente mediar forças com Nápoles ou Cumas: a falta de um eficiente porto marítimo atalhava toda a sua campanha. Quinto Fábio Máximo, contudo, ordenara que Tibério Semprônio Graco avançasse de sua posição em Lucéria para Benevento e que seu filho tomasse Lucéria em seu lugar. Hanão, que marchava ao norte de Benevento, foi surpreendido pela chegada de Graco e uma batalha extraordinária foi travada, na qual o general de Aníbal sofreu dura derrota.

Embora as legiões romanas fossem, em grande parte, compostas de escravos (com a promessa de liberdade se lutassem bem), eram superiores aos até então destreinados recrutas brútios de Hanão, um pequeno grupo de homens de infantaria cartagineses e cavaleiros númidas. O próprio Hanão escapou, mas o exército de reforço com o qual Aníbal contava foi destruído. A vitória de Graco iria dar novo ânimo aos romanos e os levaria a sitiar e finalmente retomar Casilino. Subsequentemente, um número de pequenas cidades no Sâmnio e na Lucânia Basilicata foi atacado e capturado por Fábio, Marcelo e Graco: elas pagaram por sua deserção a Roma com muitas vidas e com severo confisco de propriedades. Aníbal poderia comandar o respeito, a confiança e a admiração das heterogéneas tropas que o seguiram através dos anos, mas não lhe seria possível comandar o dedicado apoio da confederação latina a Roma. A austera vontade e disciplina de Roma foram demonstradas pelo fato de que, embora Graco tivesse derrotado decisivamente a Hanão, achou-se que nem todos os legionários haviam lutado tão bem quanto deveriam. Pelo resto daquele ano ordenou-se que eles fizessem suas refeições noturnas em pé.

"Suave Tarento" e "pacífico" era como o poeta Horácio descreveria o porto sulino anos mais tarde nos dias do imperador Augusto. Certamente essa cidade, que em seu apogeu grego havia sido a mais próspera em toda a Magna Grécia, não estava apta a oferecer uma resistência forte contra um ataque determinado. Aqui, na ponta do golfo de Tarento, o indolente mar Jônio e o predominante vento sul não criaram uma raça vigorosa. Em 281, quando os tarentinos haviam resistido ao poder de Roma, eles o tinham feito tão-somente com a ajuda de Pirro, rei do Epiro, cujas atividades em solo italiano haviam dado aos romanos uma remota prelibação do que eles iriam enfrentar nas mãos de Aníbal.

Situada em terra baixa e plana, Tarento era um porto de natureza incomum. A bacia principal era larga e protegida do mar por duas ilhotas, mas havia também uma pequena bacia cercada de terras — o Pequeno Mar — que seguia para dentro da terra com uma entrada estreita. Perto da garganta dessa bacia ficava uma pequena elevação, não mais do que setenta pés acima da cidade vizinha, mas suficientemente forte para ter se transformado na cidadela de Tarento. O Pequeno Mar protegia um lado da cidade, o Mediterrâneo o outro, e o terceiro lado, em direção à terra, era fortemente murado e fortificado. Este não era o tipo de lugar que Aníbal sonharia enfrentar sob circunstâncias normais. Os tarentinos, contudo, ao contrário de seus companheiros gregos de Nápoles e Cumas, eram considerados suspeitos pelos romanos, provavelmente em vista de sua conduta anterior, por serem aliados não confiáveis. Por essa razão, tinham sido forçados a enviar reféns a Roma como garantia de seu bom comportamento. Alguns destes foram tolos o bastante para tentarem escapar para sua cidade e, recapturados pelos romanos, foram mortos com grande crueldade — algo que tornou o partido anti-romano em Tarento ainda mais hostil. Eles chegaram à conclusão de que se dariam melhor com o cartaginês, cuja generosidade com outras cidades e aldeias tais como Cápua era bem conhecida a esta altura.

Com a abertura da temporada de campanha em 213 a.C., Tarento começou a parecer ainda mais desejável para Aníbal, pois tivera o infortúnio de perder o importante centro de comunicações de Arpi para o cônsul Quinto Fábio Máximo e — um raro golpe em seu ânimo — algumas das guarnições espanholas tinham desertado frente aos romanos. Informado de que havia um partido pró-cartaginês dentro de Tarento, Aníbal moveu-se para o sul mas permaneceu bem distante da cidade. Nessa posição, ameaçava potencialmente não apenas Tarento como também Brundísio (Brindisi), os dois mais importantes portos no sul da Itália e os únicos, com exceção do Régio no estreito de Messina, que ainda permaneciam em mãos romanas. Sabendo da chegada do grande cartaginês, treze jovens nobres tarentinos, liderados por um certo Filêmeno, deixaram a cidade fortificada, cujos portões certamente eram fechados à noite, e encaminharam-se para o acampamento de Aníbal sob o pretexto de estarem numa expedição de caça. Capturados pelas sentinelas nas proximidades do acampamento cartaginês, Filêmeno expôs seu parecer, e o início de um conluio para a traição de Tarento foi tramado. Para fazerem sua ausência parecer plausível após o seu retorno, Aníbal permitiu aos jovens levarem com eles algum gado, que diriam terem encontrado extraviados, arrebanhando-os. O mesmo pretexto foi utilizado em várias outras ocasiões. Sendo Filêmeno bem conhecido como exímio caçador, seu retorno com gado ou caça — alguns dos quais ele tinha o cuidado de dar às sentinelas romanas — era aceito como algo perfeitamente normal. Aníbal, que se fingira doente como desculpa para sua atividade incomum e, assim permanecia em sua tenda, aguardou até que todos os preparativos para a tomada de Tarento tivessem sido concluídos. Ele havia prometido a Filêmeno e seus companheiros conspiradores que os cartagineses nem guarneceriam a cidade nem pediriam qualquer tributo de seus habitantes. Seu exército seria proibido de praticar pilhagens, com a acertada exceção daquelas casas que fossem apontadas a Aníbal como pertencentes a cidadãos romanos ou pró-romanos.

Uma vez que a rotina de caça noturna de Filêmeno tornara-se tão constante que as sentinelas romanas não suspeitavam de nada, e prontamente abriam os portões quando ouviam seu assobio de retorno, o momento mostrava-se perfeito para Aníbal agir. Levando dez mil homens de infantaria e alguns cavaleiros com ele, e enviando oitenta cavaleiros númidas para avançarem como escolta, ele deixou o corpo principal de seu exército e moveu-se a uma distância de cerca de quinze milhas de Tarento. Os númidas receberam ordens de matar qualquer pessoa que encontrassem, para que ninguém soubesse do avanço das tropas de Aníbal. Ao mesmo tempo, fariam incursões fortuitas pela zona campestre, para assim confirmarem a crença dos romanos de que não passavam de um grupo de forrageadores, e não anunciariam o avanço de um exército. Lívio reconta os eventos daquela noite:

Ainda assim houve grande tumulto mas ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo. Os tarentinos achavam que os romanos estavam saqueando a cidade, enquanto os romanos acreditavam estar às voltas com algum tipo de levante traiçoeiro iniciado pelo povo da cidade. Seu comandante, despertado logo ao começou do tumulto, fugiu para o ancoradouro, onde foi recolhido por um esquife e navegou rápido para a cidadela. Mais confusão foi causada pelo som de uma trombeta vindo do teatro. Era uma trombeta romana roubada pelos traidores justamente para esse propósito; sendo tocada de modo errado por um grego, ninguém poderia dizer que sinal estava sendo dado, e para quem. Quando rompeu o dia, as armas púnicas e gaulesas foram reconhecidas, o que acabou com a incerteza dos romanos, e ao mesmo tempo os gregos, vendo romanos mortos por toda parte, perceberam que a cidade havia sido capturada por Aníbal. Os romanos que não tinham sido massacrados fugiram para a cidadela e, à medida que a ordem era gradualmente restaurada, Aníbal ordenou a todos os cidadãos, exceto àqueles que haviam seguido os romanos em sua fuga para a cidadela, que se reunissem sem armas. Então, falou-lhes com palavras amistosas, relembrando como libertara os seus concidadãos capturados em Trasimeno ou Canas. Ele invetivou contra o arrogante jugo dos romanos, depois ordenou que cada cidadão fosse para sua casa e escrevesse na porta a palavra "tarentino". Após essa assembleia ter sido desfeita e todas as portas marcadas, Aníbal permitiu que suas tropas saqueassem as casas dos romanos, e o espólio foi considerável.

As táticas de comando de Aníbal, auxiliado por sua quinta coluna de dentro dos muros, asseguraram a ele um grande porto e uma próspera cidade, embora sua vitória tivesse sido, de certo modo, anulada pelo fato de que a guarnição romana e seus simpatizantes ainda detinham a cidadela, e não seriam desalojados dali. Um ataque a ela falhou, e Aníbal foi forçado a tentar efetuá-lo com um trabalho por terra. Isso se mostrou sem efeito, pois a posição da cidadela num promontório dominando a entrada para o porto interno significava que a guarnição e seus demais convivas poderiam ser reforçados e alimentados por mar aberto, onde a frota romana possuía superioridade naval. Ainda mais, todos os navios tarentinos estavam, agora, retidos no porto interno, no Pequeno Mar, e à primeira vista pareciam permanentemente presos. Aníbal resolveu o problema trazendo os navios para terra firme, transportando-os então pelas ruas de Tarento sobre rodas, para depois lançá-los novamente ao mar pelo porto externo.

A traição e a captura da cidade, e mesmo o engenhoso método de livrar os navios, tudo tinha a marca de Aníbal. O fato de que Tarento caíra por traição seria um dos argumentos mais tarde utilizados pelos romanos para acusarem Aníbal de "fé púnica" ou conduta desonesta. Resta dizer que, ao longo de toda a história da guerra, a traição de uma cidade feita no seu interior por um partido favorável aos sitiantes foi sempre prática comum. A história primitiva da Grécia e abundante em relatos de tais estratagemas. Não há nada de modo algum peculiarmente "púnico" a esse respeito.

Deixando que os próprios cidadãos tratassem do problema da guarnição na cidadela, Aníbal retirou suas tropas (como ele havia prometido aos tarentinos) e pouco depois levou-as de volta aos quartéis de inverno. O Metaponto, no golfo de Tarento e ligeiramente a oeste, em breve caiu sob seu poder enquanto Túrio, outro porto grego, do outro lado do golfo, caiu frente a um exército comandado por Hanão e Magão, com o povo da cidade abrindo seus portões aos cartagineses. Apesar da perda de Arpi, o ano finalmente se mostrava favorável a Aníbal, e os únicos grandes portos no sul da Itália, abaixo da baía de Nápoles, que ainda permaneciam nas mãos dos romanos eram Brundísio, na costa adriática, e o Régio, no estreito de Messina.

O comentário de Políbio, "de tudo que sobreveio aos romanos e aos cartagineses, a causa foi um homem e uma mente — Aníbal",[18] estava claramente justificado. Quase todo o mundo mediterrâneo, com a exceção da Grécia, onde Filipe V da Macedônia hesitava, estava agora envolto em chamas. O principal evento na Sicília tinha sido a ascensão ao reinado de Siracusa do jovem Jerônimo, que de pronto, declarara-se favorável aos cartagineses — somente para ser quase imediatamente assassinado pelo partido pró-romano. Isso, por sua vez, fez com que os siracusanos que favoreciam Cartago matassem ou expulsassem os ricos mercadores e outros que favoreciam Roma. É significativo que ali, e em toda a Itália, era o partido popular — hostil àqueles que enriqueceram graças às suas conexões romanas — que favorecia Aníbal. Os pobres e sem posses viam nele um líder que os libertaria da pesada mão de Roma, mas que, depois disso, não se preocuparia muito, se o fizesse, com o modo como governariam suas cidades. E, talvez, curioso ver o autocrático senhor da guerra ser bem-vindo pelos plebeus, mas vemos isso acontecer vez por outra ao longo da história.

Na Hispânia a guerra estava indo bem para as armas romanas, de tal modo que um dos principais aliados de Cartago, o rei númida Sífax, agora voltava sua fidelidade em prol de Roma. Uma vez que os cartagineses dependiam tão grandemente da habilidade e superioridade dos cavaleiros númidas, este era um amargo golpe, mas que seria compensado por mais variações de apoios políticos. A guerra, agora, espalhava-se pelo Norte da África, e um outro rei númida, Gaia, da Argélia oriental, encorajou-se a marchar contra seus companheiros e impedir os romanos de garantirem uma base no continente. O filho de Gaia, o jovem príncipe Masinissa, teria grande participação na história posterior às campanhas de Aníbal. Em combinação com o irmão de Aníbal, Asdrúbal, que havia sido compelido a levar suas tropas para a África a fim de acabar com a ameaça em sua retaguarda, destruiu o rebelde Sífax, permitindo assim a Asdrúbal retornar à Espanha para enfrentar a ameaça romana naquelas paragens.

A guerra explodia agora na Sicília. Não pode haver dúvidas de que Aníbal, embora constantemente engajado na Itália contra a sempre crescente maré de armas romanas, nunca deixava de perceber o quanto seria importante para sua causa um triunfo cartaginês naquela rica e poderosa região do sul. A Sicília tinha sido, por séculos, o pomo da discórdia entre gregos e cartagineses, e a perda da Sicília para os romanos — não por culpa de seu pai Amílcar — havia levado à humilhante paz que concluíra a Primeira Guerra Púnica. Dois emissários de Aníbal, Hipócrates e Epícides, encontraram-se, então, com o governo da grande cidade e porto de Siracusa após a expulsão do partido pró-romano. Era essencial para sua estratégia global que os cartagineses não apenas detivessem o poder sobre Siracusa, mas também ganhassem o controle sobre a maior parte da ilha. Com os portos e embarcadouros que uma vez tinham sido seus — particularmente no oeste — tinham uma chance de quebrar o domínio romano sobre o mar entre a Sicília e a própria Cartago. A real dificuldade era que, tendo os romanos conquistado a supremacia sobre a área que já fora sinónimo do nome Cartago, eles não iriam nunca cedê-la. Como sua cidade, a Rainha do Mar, nunca fosse capaz de mandar-lhe reforços convenientes, nem de desafiar os romanos com sucesso, todos os anos que Aníbal passaria na Itália resultariam inúteis ao fim. A influência do poderio marítimo sobre a história nunca havia sido mais claramente demonstrada do que nesta grande guerra entre Cartago e Roma.

Siracusa havia sido, uma dia, a mais próspera e importante cidade do Mediterrâneo central. No século V a.C., à época das guerras greco-persas — que determinaram o destino do oeste — Siracusa seria capaz de colocar em campo mais homens de infantaria armados com armas pesadas e mais navios do que toda a Grécia. Agora, embora ainda importante, tornara-se uma espécie de força represada, porém enriquecida pelo dinheiro e pelos tesouros artísticos da mais grandiosa era de seus antepassados gregos.

Os romanos que visitavam a cidade deslumbravam-se com a beleza da arquitetura, a visível riqueza, o grande teatro e a soberba posição do local. A aliança com o governante anterior, Hierão, dera aos romanos não apenas uma promessa de estabilidade em uma ilha sempre atormentada, mas também uma relação com os ricos tesouros da Grécia colonial. O grande porto, com aproximadamente cinco milhas de circunferência, havia testemunhado a destruição do poderio ateniense em 413. O pequeno porto, que ficava entre a ilha de Ortígia e a capital, era capaz de abrigar uma frota. Sua importância para os romanos como base naval na guerra contra Cartago era bastante óbvia; porém sua perda, caso ela fosse ocupada por uma frota cartaginesa, seria um duro golpe para Roma, e um triunfo da maior valia para Aníbal. Se os cartagineses pudessem garantir e reter Siracusa, teriam uma linha aberta até sua capital e uma importantíssima base de suprimentos para o exército de Aníbal.

Por essas razões, o cônsul Cláudio Marcelo foi enviado à Sicília. Na confusão que se seguiu à morte de Hierão, um número de cidades voltou-se para a causa cartaginesa, notavelmente Leonte, um pouco ao norte de Siracusa, que dominava a mais rica e fértil área da ilha. Marcelo era um soldado notável e vigoroso, a quem Aníbal aprendera a respeitar como o homem que por várias vezes o havia bloqueado na Campânia, sempre que ele se movia de Monte Tifato. Absolutamente destemido, Marcelo, em seu primeiro consulado, em 222 a.C., pessoalmente se batera com um chefe tribal gaulês, matando-o com suas próprias mãos. Dedicou, então, seus espólios, os spolia opima, no templo de Júpiter Ferétrio — a terceira e última vez na história romana em que tão proeminente oferenda foi feita. Impiedoso para com os derrotados e na imposição da lei militar, Marcelo era amado por suas tropas devido à sua preocupação com o bem-estar delas. Após retomar Leonte, onde ele mandou degolar cerca de dois mil homens da tropa oponente por sua rebeldia contra Roma, deslocou-se para o sul a fim de sitiar Siracusa por terra e mar. Os romanos eram mestres em guerras de sítio e Marcelo tinha todas as razões para estar confiante. As defesas de Siracusa eram muito extensas, particularmente ao norte da ilha-fortaleza de Ortígia, onde uma ampla área triangular pouco habitada era cercada por maciças muralhas que necessitariam de muito mais homens para sua defesa do que ora possuía.

Aníbal, inteiramente ciente da importância do combate que acontecia ao sul dele, mantinha correspondência com Cartago a respeito da necessidade de se desembarcar um exército na Sicília para auxiliar na insurreição. Com a Sicília em mãos cartaginesas, a dominação romana do estreito de Messina estaria ameaçada — revertendo, assim, o processo da Primeira Guerra Púnica e fornecendo a base garantida a partir da qual poderia tomar as cidades da baía de Nápoles. Enquanto a Sicília fosse basicamente pró-romana, sua posição no sul da Itália estaria constantemente ameaçada. Alguns historiadores pósteros têm-se referido ao mau uso de navios e homens cartagineses na campanha siciliana, argumentando que eles teriam sido melhor empregados como reforços para Aníbal. É muito duvidoso que ele próprio visse o problema dessa forma. Aníbal não somente era um mestre da tática, mas também um respeitado estrategista: a Sicília constituía a chave para seu derradeiro sucesso na Itália, uma vez que o auxílio que esperava de seu irmão Asdrúbal não parecia prestes a chegar. Com Tarento assegurado e com os romanos relutando em desafiá-lo em qualquer campo de batalha, aparentemente poderia manter sua posição na Itália por anos, se necessário (o que ele de fato iria fazer). Demandava agora um sucesso no sul: conquistar a Sicília, terra rica como um celeiro e com excelentes portos para o uso da frota cartaginesa. Com tal base firme a respaldá-lo, seria capaz de se deslocar para o norte na ocasião oportuna, após assegurar Nápoles e Cumas, e eliminar a ameaça naval romana em sua retaguarda, confrontando, finalmente, o coração do adversário — Roma e a confederação latina que, estava claro, jamais seria destruída em um único campo de batalhas.

Por esses motivos, a frota cartaginesa, ao chegar, não se dirigiu ao grande porto de Tarento, mas, em vez disso, rumou para as longas praias do sul da Sicília, onde, por muitas milhas de território quase inabitado, a frota romana não poderia manter permanente vigília e proteção. O porto de Heracleia Minoa, na foz de um pequeno rio, foi escolhido como ponto de desembarque, e ali o almirante Himilcão trouxe à terra vinte e cinco mil homens de infantaria, três mil de cavalaria, e doze elefantes — força grande o suficiente, em aparência, para assegurar todo o sul da ilha antes do deslocamento para render Siracusa. Tudo parecia ir bem a princípio e a mais importante cidade do sul, Agrigento, caiu sob os invasores. Mas generais da envergadura de Amílcar e seus filhos sempre foram raros entre os cartagineses, e esse exército iria, na devida ocasião, confrontar Marcelo.

O sítio de Siracusa, empreendido com tanta confiança, iria se prolongar: em grande parte devido a um só homem. Entre os habitantes da cidade, encontrava-se o grande matemático e cientista grego Arquimedes. Educado na escola matemática alexandriana, na época em que Euclides lá ensinava, Arquimedes (amigo, se não parente, de Hierão) enriquecera a cidade com suas dádivas intelectuais, e construíra para os governantes numerosos e incomuns engenhos de guerra. Como Leonardo da Vinci, séculos mais tarde, ele pagava pelo ócio e pela liberdade de especular com o trabalho prático que poderia garantir a segurança de seu protetor. Marcelo tinha decidido atacar a cidade pelo lado do mar de Acradina, subúrbio da velha cidade no lado norte. A própria Ortígia parecia quase inexpugnável.

Arquimedes havia equipado as muralhas com uma artilharia tão poderosa que esmagava os romanos antes mesmo que se aproximassem o suficiente para que seus projéteis fossem eficazes; e quando eles chegavam mais perto, descobriram que toda a parte inferior da muralha estava equipada com seteiras: seus homens eram derrubados, com fatal pontaria, por um inimigo que não podiam ver, e que atirava suas setas em perfeita segurança. Se eles ainda perseveravam, tentando colocar escadas nas muralhas do lado do mar, subitamente viam longos postes saindo do topo da muralha como os braços de um gigante, de onde eram atiradas sobre eles pedras enormes e grandes massas de chumbo que faziam suas escadas em pedaços e quase afundavam os seus navios. Em outras ocasiões, máquinas como guindastes projetadas da muralha, com um arpão de ferro afixado na ponta de uma alavanca, eram baixadas sobre os navios romanos. A descrição de Lívio inspirou inúmeros artistas em séculos posteriores:

Este foi um dos primeiros exemplos, na história da guerra, de um inimigo superior em quantidade e determinação, sendo frustrado e vencido por tecnologia superior. "Assim, o génio de um homem, Arquimedes, derrotou os esforços de inumeráveis mãos".

A tenaz perseverança, com a qual Roma iria construir o seu império, finalmente triunfou sobre a engenhosidade científica grega e suas defesas muradas, que tornavam os siracusanos confiantes de estar numa "cidade inconquistável". Rechaçado no seu ataque marítimo, Marcelo voltou sua atenção para a terra e — numa noite em que se sabia que os siracusanos estariam celebrando uma grande festa de Ártemis — invadiu as débeis fortificações do norte, atacando a cidade. Esta pagou caro por ter descuidado do confronto com os romanos, como países desde a Pérsia até a Bretanha iriam aprender nos séculos seguintes. O combate que se seguiu foi longo e complicado. Uma frota cartaginesa estacionada no porto retirou-se de modo irresoluto quando parecia que iria ser encurralada ali pelos navios romanos vindos do mar. Parte do exército cartaginês que desembarcara no sul, incapaz de reforçar as defesas da cidade, foi compelida a aquartelar-se no pantanoso delta do rio Anapo, que chegava até o grande porto. Como havia acontecido anteriormente na longa história de Siracusa, o delta impregnado da febre do Anapo, cobrou seu preço do exército acampado ali, matando milhares de soldados e dois generais cartagineses. Um emissário de Aníbal, Epícides, que vinha conduzindo a defesa da cidade, percebeu que tudo estava perdido e fugiu para Agrigento, ao sul.

Em 212 a.C., a cidade de ouro e mármore caiu frente a Marcelo e seus romanos — homens que haviam absorvido a coragem de Esparta, sem a destreza dos atenienses, mas que possuíam uma disciplina organizada que faltava à maioria dos gregos. Allcroft e Masom resumiram assim a conclusão do sítio a Siracusa — conclusão, pode-se dizer, de séculos de colonização grega da Sicília, a grande ilha que pareceu aos primeiros navegantes gregos a "terra recém-descoberta", perfeita e rica além de suas expectativas:

O padrão da ilha, pode-se dizer, estava se configurando para toda a sua história futura, e a natureza do temperamento siciliano se estabelecia irrevogavelmente num molde de ressentimento e de determinação a esquivar-se das leis de qualquer conquistador por quaisquer meios possíveis.

Marcelo havia dado ordens para que Arquimedes fosse poupado a qualquer custo, mas, segundo a lenda, o grande matemático estava tão absorvido em resolver algum problema em um tabuleiro de areia que, quando os soldados invadiram seu quarto e ele ignorou suas ordens para que declarasse sua identidade, foi transpassado por uma lança. Ele não foi a única grande perda de Siracusa, pois incontáveis tesouros de arte eram agora despachados para Roma. Diz-se que esta primeira grande introdução da arte grega foi, de algum modo, responsável pelo crescimento da subsequente admiração romana e emulação da cultura helénica. De um modo muito semelhante, séculos mais tarde, os despojos de Constantinopla iriam adornar Veneza e fertilizar a imaginação dos artistas e artesãos daquela cidade.

As consequências da queda de Siracusa foram estrategicamente muito prejudiciais para Aníbal. Com os romanos de posse do grande porto, e com seu domínio sobre o estreito de Messina fortalecendo seu controle das vias marítimas para a Sicília e Itália, Aníbal e seu exército ficaram ainda mais isolados de sua cidade-mãe, Cartago. A menos que reforços chegassem até ele da Hispânia por meio dos Alpes, ele estaria mais ou menos abandonado na Itália. Somente o seu gênio militar e o temor que suas vitórias anteriores haviam infundido nos romanos poderiam salvá-lo da derrota.

Na primavera do ano seguinte, Aníbal preocupava-se muito com o destino de Cápua, onde quatro exércitos romanos posicionaram-se com a intenção de subjugar a cidade por sítio e não através de ataque. O usual pedido de ajuda dos capuenses já havia chegado até ele. Uma vez que ele próprio ainda se encontrava na região de Tarento, enviara Hanão do Brútio (Calábria) para Benevento para tentar livrar a cidade. Hanão, tendo evitado brilhantemente o exército de Graco na Lucânia (Basilicata), assim como o de Nero em seu flanco, havia conseguido escapulir e estabelecer um acampamento fortificado que transformou em depósito de grãos. Foi pedido aos capuenses que enviassem cada carroça e animal disponível para transportar o cereal que ele havia coletado. Fatalmente sujeitos à inércia e à incapacidade, os capuenses somente conseguiram obter quatrocentas carroças, ao que Hanão exclamou: "Nem mesmo a fome, que estimula animais estúpidos a se esforçarem, pode instigar os capuenses a alguma atividade".

Os capuenses foram enviados de volta com ordens de conseguir mais transporte; mas, no momento em que retornavam com duas mil carroças, os romanos, que haviam tomado conhecimento da atividade, esperavam preparados. Enquanto Hanão estava fora com um grupo de forrageadores, eles atacaram o acampamento e, apesar de uma empenhada resistência dos cartagineses remanescentes, a posição foi tomada e os grãos, as carroças e outros depósitos capturados. Hanão e seu grupo conseguiram escapar, retirando-se frustrados para o Brútio. Cápua, não por culpa de seus aliados cartagineses, foi ainda deixada sem suprimentos.

Ao ouvir as notícias, Aníbal despachou dois mil númidas para irem em socorro a Cápua, ordem que esses admiráveis cavaleiros do deserto executaram, esquivando-se do cerco à cidade, conseguindo adentrar Cápua de noite. Animados por essa evidência de apoio, os capuenses saíram a cavalo quando os confiantes romanos juntavam o milho fora da cidade. À frente deles cavalgavam os númidas. Quinze centenas de romanos foram mortos nessa investida e os restantes, desmoralizados pela inesperada chegada da grande arma de cavalaria de Aníbal, buscaram refúgio detrás de suas fortificações. Ao mesmo tempo, sofreram um choque adicional. Graco, a ponto de deixar sua província para vir reforçar o bloqueio de Cápua, foi colhido numa emboscada e morto. Aníbal, tradicionalmente atento às cortesias de guerra, deu ao cadáver do líder romano um honroso funeral.

Ele enviara seus númidas adiante apenas para que atuassem como força de avanço, e isso não ocorreu muito antes de o cônsul, Fúlvio Flaco, ser informado de novidades muito desagradáveis. monte Tifato estava lotado de homens, e seu topo plano fora uma vez mais ocupado. Aníbal, movendo-se do sul da Itália com extraordinária velocidade (mais rápido do que a cavalaria romana que havia sido convocada da Lucânia, local relativamente próximo), surgira em cena mais uma vez. Adentrou Cápua em triunfo, pois os dois exércitos consulares se retiraram antes dele — evidência do temor ainda sentido pelos romanos diante de sua presença, bem como de algum acordo velado entre eles para aderirem a Quinto Fábio Máximo, ainda que este último não mais ocupasse um alto cargo. Aníbal, todavia, não podia aquartelar seu exército na cidade por causa da falta de suprimentos e quando os exércitos romanos se retiraram, seguiu a tropa que estava sob o comando de Apio Cláudio que rumava para a Lucânia, de modo a ameaçar o sul da Itália. Tão logo o exército cartaginês se retirou, Flaco retornou para investir contra Cápua; não muito depois, Cláudio despistou Aníbal e também retornou para a cidade. Ao fim do ano, seis legiões romanas encontravam-se em Cápua para iniciarem a prática romana de circunvalação; cercando o local sitiado com terraplenagens e trincheiras, impediam os habitantes de saírem e as forças de auxílio de entrarem.

Aníbal voltou a Tarento, onde a guarnição romana na cidadela ainda resistia; ele, sem dúvida, esperava que, terminados os meses de inverno, pudesse conseguir desalojá-la, já que os tarentinos haviam falhado. Talvez o grande cartaginês tenha se desesperado com a qualidade dos aliados tarentinos e capuenses em tempos de guerra. Era evidente que somente os pouco corajosos e os que nutriam rancor contra Roma vieram até ele. Nenhum membro da confederação latina desertou de sua velha aliança e, se os gauleses e os brútios lutaram bem ao seu lado, eram porém povos indisciplinados e semi-selvagens que não poderiam ser utilizados contra Roma até que tivessem sido treinados por seus oficiais e homens cartagineses — e assim mesmo de modo tosco, para servirem como "bucha de canhão", enquanto as reais infantaria e cavalaria fizessem o serviço profissional.

Aníbal encerrou um ano que, se não havia sido muito satisfatório para ele, tinha certamente sido infeliz para Roma. Em sua rota de volta a Tarento cruzou com um exército romano que barrava seu caminho. Superior em cavalaria — e largamente superior devido às qualidades de seus númidas — ele os dispôs cuidadosamente nos flancos. Os romanos, avançando à sua velha (e a essa altura já ultrapassada) maneira, confiantes na força de suas legiões blindadas, foram feitos em pedaços, e o general, Marco Sentênio Pênula, morto. Como se não fosse suficiente para um invasor estrangeiro em sua marcha de volta para os quartéis de inverno, após a conclusão de uma temporada de campanha bem-sucedida, Aníbal soube que Herdônia, na costa leste da Apúlia, estava sendo sitiada pelo irmão do cônsul, Fúlvio Flaco, e voltou seu exército para o nordeste da Itália. Chegou para pegar os desavisados romanos pela retaguarda e, tendo colocado uma típica armadilha anibálica no flanco em direção do qual ele deduziu que os romanos deveriam se voltar, aniquilou o inimigo. Dois mil — ou menos — desse exército escaparam, e Aníbal assegurou sua posição territorial, novamente voltando para o sul para garantir às suas tropas suprimentos adequados e bons abrigos para o inverno. Dois exércitos romanos foram destruídos e dois generais mortos — tudo em uma campanha feita às pressas. Algum país, ou mesmo o Senado de Cartago, poderia demandar mais de um homem — sem nenhum auxílio e longe de casa? O ano seguinte, 211 a.C., provaria ser um dos mais singulares e alarmantes da história romana. Aníbal dividia-se entre o desejo de capturar a cidadela em Tarento, a qual ainda impedia os cartagineses de utilizar o porto como base de frota e suprimento para a campanha italiana, e a necessidade de assegurar Cápua. Como escreve Lívio:

Na batalha que se seguiu, a franqueza da posição de Aníbal ficou patente: eles não poderiam transpor uma posição defendida. Embora seus rígidos homens de infantaria iberos tivessem rompido as linhas romanas, eles foram incapazes de forçar caminho até Cápua, sendo detidos e mortos. A cavalaria cartaginesa permaneceu, como sempre, suprema em combate, mas isso não era suficiente quando em ataque contra legionários romanos em suas trincheiras. Aníbal fez tudo o que pôde para provocar a saída dos romanos para uma batalha aberta, mas eles não cederam. Haviam aprendido a lição nos primeiros dois anos de campanhas na Itália. Políbio, ele próprio um comandante de cavalaria, reconhece que mesmo essa poderosa arma era inútil quando se tratava de desalojar um tenaz e entrincheirado inimigo.[18] Além do mais, a operação coordenada com os capuenses mostrou uma lúgubre falha, sendo seus aliados facilmente rechaçados pelos romanos, determinados a fazer a cidade de renegados pagar o preço por sua deserção da aliança latina. Aníbal atirou todas as forças à sua disposição no ataque às linhas romanas, menos seus númidas e iberos, que "irromperam dentro do acampamento romano inesperadamente". Os elefantes foram à carga com eles e "em seu caminho pelo acampamento iam devastando as tendas com um barulho terrível, e fazendo os animais de carga romperem seus cabrestos e fugirem". Lívio concluiu: "(…) os elefantes foram tirados de suas posições mediante o uso de fogo. Seja lá como tenha começado ou acabado, esta foi a última batalha antes da rendição de Cápua".[36] Os romanos descobriram que os elefantes possuíam suas fraquezas; o fogo era uma, e a outra era deixá-los ir em desatino através das linhas e então atacá-los por trás.

Com o benefício da visão posterior aos eventos, parece-nos hoje que Aníbal havia cometido um erro estratégico em sua tentativa de livrar Cápua. Trouxera contra as posições romanas um peso de forças que teriam se desempenhado melhor contra a guarnição de Tarento, libertando, assim, aquele grande porto para a frota cartaginesa. Por outro lado, elefantes e superioridade numérica significavam pouco contra uma cidadela fortificada, com um suprimento interno de água e um grande depósito de grãos. É por isso que as cidadelas, guarnições e castelos sobreviveram por milhares de anos na história da guerra. Somente projéteis explosivos e métodos científicos de colocação de minas ameaçariam o "ponto forte". Suficientemente rápido para perceber seu erro após essa fracassada operação combinada para livrar Cápua, Aníbal recuou. Só lhe restara um lance estratégico, que tem sido usado por muitos grandes capitães, inclusive Napoleão (o qual aprendeu muito com Aníbal). Este era levar suas forças embora e ameaçar a peça principal do tabuleiro de xadrez — Roma. Ele devia saber, em vista de seu fracasso contra cidades menos fortificadas, que só constituiria uma ameaça, nada mais, mas estariam as legiões romanas ao redor de Cápua totalmente confiantes de que a capital sobreviveria ao ataque do grande cartaginês?

A marcha de Aníbal sobre Roma, um acontecimento tão aterrorizante que continuava a ser lembrado por poetas e historiadores mesmo séculos mais tarde, levanta a interessante questão da rota que ele teria tomado. Lívio é pouco claro, afirmando que ele se utilizou da grande Via Latina nas últimas etapas de sua marcha, enquanto Fúlvio Flaco tomou a Via Ápia mais para o oeste, chegando a Roma antes dele.[36] Políbio — muito mais confiável no que se refere a assuntos militares — mostra Aníbal levando seu exército diretamente através do Sâmnio para leste e descendo sobre Roma, vindo do nordeste.[18] Conhecendo, por suas outras manobras, a inclinação de Aníbal pelo inesperado, essa rota parece a mais provável. Sir Gavin de Beer acrescenta um ponto: "Marchando através do Sâmnio para Sulmona, e então através de regiões hostis a Roma, Aníbal passou por Alba, onde sua passagem foi marcada por dois elefantes de pedra toscamente esculpidos, inequivocamente africanos, dado o grande tamanho de suas orelhas". Queimando e pilhando, com os númidas devastando o campo adiante de seu exército, Aníbal suscitou um pânico tal que a cidade nunca antes conhecera. Finalmente, ele acampou na margem direita do rio Ânio, e a apenas três milhas de Roma — os cavaleiros do deserto, a infantaria pesada cartaginesa, os selvagens gauleses e brútios, todos visíveis aos observadores nas muralhas.

Após uma inconsequente escaramuça de cavalaria, na qual Flaco parece ter se saído melhor, os dois exércitos confrontaram-se, tendo a cidade como o prêmio da aposta. Mas, como Lívio conta, "depois que os exércitos se posicionaram (…) um grande aguaceiro, misturado a uma chuva de pedras, confundiu de tal modo as linhas de batalha que, agarrando-se às suas armas com dificuldade, eles retornaram ao acampamento".[36] Aconteceu de a terra na qual acampara o cartaginês estar à venda e, mesmo enquanto o exército de Aníbal a ocupava, diz-se que a negociação prosseguiu — e sem qualquer redução no preço. Tais histórias não devem ser verdadeiras — elas exaltam os romanos das gerações posteriores, exibindo confiança igual à de seus ancestrais, mas permanece o fato de que, em nenhum momento a defesa romana acreditou que a cidade estivesse em grande perigo. Era sempre a mesma história — sem equipamento de sítio, Aníbal não pôde tomar Cumas ou Nápoles, logo era impossível para ele capturar a que era talvez a mais rigidamente fortificada e bem defendida capital do mundo mediterrâneo. Depois de mais um dia em que a violência do clima novamente fez com que ambos os exércitos se retirassem para seus acampamentos, Aníbal recuou para uma posição seis milhas atrás. Ele tinha visto Roma; é bem possível, como diz a lenda, que tenha atirado uma azagaia na Porta Colina para zombar da impotência de seus defensores. Mas nunca adentrou a cidade de seus inimigos, e nunca mais a veria novamente. Um entusiasta sem igual de Aníbal foi Sigmund Freud, o qual idolatrava o cartaginês tão fervorosamente que por muitos anos foi incapaz de entrar em Roma — porque Aníbal nunca havia colocado os pés ali.

A tentativa de Aníbal de livrar Cápua ameaçando Roma havia falhado. Nenhum exército romano tinha se deslocado de Cápua para verificar sua ameaça; os dois cônsules permaneciam em Roma e, com eles, duas, possivelmente mais, legiões por detrás das resistentes fortificações. Ele aproveitou sua marcha ao máximo, contudo, saqueando todo o campo ao redor, violando o antigo relicário de Ferônia, onde oferendas de ouro e prata datados de tempos imemoriais iriam pagar o serviço de seus mercenários. Deve-se lembrar sempre que o magnífico exército poliglota de Aníbal tinha de ser pago, pois ele não consistia numa corporação de cidadãos, como o de Roma, e não tinha qualquer fidelidade a não ser para com um único homem. Cápua, evidentemente, estava perdida, e Aníbal sabia disso quando voltou de Roma. Inevitavelmente, ele foi seguido em sua marcha, e alguns na sua "cauda", carregados com bagagem e saques, foram mortos. Fracassando em Roma, manteve-se intacto porém seu usual espírito indomável; voltando-se de novo contra os romanos em ataque noturno, castigou-os tão severamente que eles nunca mais o acossaram em sua marcha. Em muitos aspectos, assemelhava-se a um grande e nobre animal saído da África, sempre forte o suficiente para, volvendo-se, atacar selvagemente os predadores em seu encalço.

Aníbal moveu-se para o leste em direção ao Adriático e, então, fez uma falsa investida contra Tarento, onde a indómita guarnição romana ainda resistia, antes de deslocar-se rapidamente para sudeste, através do Brútio, chegando inesperadamente ao Régio. É provável que fossem se unir a novas tropas que haviam invernado em Brútio (atual Calábria); de qualquer modo, sua marcha é considerada uma das mais rápidas e memoráveis da história da guerra. No entanto, ainda que tenha chegado subitamente à cidade, de modo a capturar muitos dos habitantes ainda trabalhando fora nos campos, tratando-os com cortesia, na esperança de causar uma impressão favorável, o Régio fechou seus portões e permaneceu fiel a Roma. Apesar de sua impressionante sequência de marchas, apesar de seu castigo aos romanos no ataque noturno e da rapidez de seus movimentos, que sempre os deixava confusos quanto às intenções dele, a campanha da primavera de 211 a.C. não rendeu coisa alguma. Cápua estava condenada a cair, junto com o sonho de Aníbal de uma federação italiana independente de Roma. Politicamente, ele havia falhado, e as esperanças cartaginesas de isolar Roma para então destruí-la quase com tranquilidade, se despedaçaram.

Assim que os capuenses souberam que Aníbal havia se retirado de Roma e se deslocado para o sul, deram conta de seu destino. Um decreto do senado romano de que as vidas de todos os capuenses que se rendessem a Roma seriam poupadas caiu em descrédito, pois os que agiram na conspiração perceberam que nada além da morte os aguardava. Cercados pelas legiões, à beira da fome, não lhes restava nada a fazer a não ser abrirem os portões. Vinte e oito dos senadores que haviam votado contra a resolução cometeram suicídio por veneno e pela espada. Estavam certos em crer que Roma desejava vingar-se: setenta dos que haviam se comprometido na decisão de receber Aníbal foram executados, junto com muitos outros cidadãos líderes. A secessão de Roma foi encarada como o que de fato era: conspiração com o inimigo. Embora Cápua não tivesse sido saqueada, todos o seus edifícios e terras públicas foram declarados propriedade do povo romano. Cápua deixou de existir como entidade independente, e os senhores romanos da Campânia iriam, dali em diante, ver aquelas terras ricas e férteis trabalhadas para o benefício de seus senhores romanos. Toda a Itália, salvo o extremo sul e Brútio (atual Calábria), estremeceu; e as cidades e fazendas que haviam recebido as forças cartaginesas, em algumas das quais Aníbal havia posicionado pequenas guarnições, tornaram-se pró-romanas outra vez e voltaram a hostilizar o invasor. De um só golpe, Aníbal ficou desprovido de suas conexões com o Sâmnio e a Apúlia e mais ou menos confinado ao Brútio e ao litoral sul. Assim, com seu fracasso no Régio e sua incapacidade de subjugar a guarnição em Tarento, ele foi deixado com pouco campo para manobras. Sem um porto adequado e com os romanos controlando o mar, restavam-lhe poucas esperanças de receber reforços.

A queda de Cápua e a captura de Siracusa pareciam indicar um desastroso ano para os cartagineses. A única boa notícia, talvez, a alcançar Aníbal na região que se tornaria sua derradeira fortaleza na Itália foi o triunfo de seu irmão Asdrúbal na Espanha — um triunfo tão grande que quase eclipsou essas outras perdas. O dois Cipiões haviam avançado pelo coração da Espanha, ao sul do Ebro, conseguindo, a princípio, considerável sucesso. Públio Cornélio Cipião em particular foi hábil em conquistar a lealdade de muitos espanhóis e incorporá-los em uma aliança com Roma. Mas o retorno de Asdrúbal, após debelar a revolta marroquina, e sua união com Asdrúbal Gisgão e Magão foram fatais para a sorte dos irmãos Cipião. A influência de Asdrúbal sobre os celtiberos em breve se mostraria valorosa e os Cipiões viram-se privados de linhas de comunicação, e mais ou menos abandonados por seus aliados espanhóis. Aparentemente incapazes de unir suas forças, os dois generais romanos envolveram-se em ações separadas. Seus exércitos foram feitos em pedaços, sendo ambos os Cipiões mortos. O desastre com as armas romanas e a morte desses dois destacados generais contribuíram muito para reverter o equilíbrio da grande guerra anibálica contra Roma. Enquanto isso, o próprio Aníbal, embora sem apoio, permaneceu sem derrotas, na terra italiana. Uma constante ameaça a Roma e contínua preocupação para seus generais, ele ainda permaneceria ali por mais sete anos.

O ritmo da guerra só poderia diminuir. As perdas sofridas por ambos os lados foram suficientes para enfraquecê-los tanto pelo sangue derramado quanto pela falta de determinação. O exército que Aníbal trouxera para a Itália pelas montanhas há muito havia mudado seu temperamento e constituição; nove anos não poderiam deixar de exigir um alto preço daqueles veteranos da Espanha, França e Alpes, que tinham um dia contemplado de cima das montanhas, com muita expectativa, o rico prémio: a Itália.

Não existem registros, e apenas pode-se presumir que, após tantos embates, a força original dos cartagineses encouraçados tenha-se exaurido bastante — embora vitoriosos em todas as suas principais batalhas. Fica claro que a cavalaria númida fora reforçada por transporte da África. Esta brigada ligeira de cavalaria permanece em evidência até o fim da longa guerra mas, muito curiosamente, não há mais referências à brigada pesada de cavaleiros — embora seja possível que Políbio e Lívio simplesmente suponham que eles estiveram sempre presentes. O corpo principal da infantaria havia certamente se transformado sem medida, sendo os espanhóis substituídos por gauleses e estes, por sua vez, pelos brútios. Também é possível que houvesse muitos fugitivos do acampamento romano — desertores (não o melhor dos soldados), etruscos que há muito odiavam a cidade que arruinara seu próprio Estado e, desde a queda de Cápua, campanianos que não mais ousavam retornar à sua própria terra. Era uma força heterogénea a ser lançada contra aquele formidável composto de Estados que Roma reunira. Aníbal, com a queda de Cápua, também havia perdido seus aliados e existia pouca ou nenhuma probabilidade de que fossem substituídos. Roma demonstrara o quão cruel era seu julgamento contra os desertores, e somente outra vitória da amplitude de Canas poderia convencer os Estados da Itália de que Aníbal seria o potencial governante de toda a península.

Roma também se ressentia do esforço de sustentar uma guerra por tanto tempo. A fadiga da guerra, evidente do lado romano, assim como a carga dos pesados impostos, para o que parecia não haver fim, contribuíram para uma atmosfera geral de derrotismo.

Doze colônias romanas, das trinta que compunham o Estado romano, revoltaram-se em 209 a.C., informando aos cônsules de que não tinham meios de fornecer mais soldados ou dinheiro. A fim de pagar os exércitos, até mesmo o tesouro sagrado de Roma, recurso que só deveria ser usado na mais grave das emergências, teve de ser desprovido de seu ouro. Os senadores foram solicitados — e atenderam — a trazer ouro, prata e jóias particulares de suas famílias de modo a reabastecer os cofres do Estado. Nunca em sua história Roma se reduzira a tal penúria, e parecia que a ameaça representada por Aníbal e seu exército de modo algum retrocederia.

Embora as cidades que haviam se voltado aos cartagineses fossem reintegradas à aliança romana — Salápia, na Apúlia, primeiro, e Meles e Maroneia, no Sâmnio — a temível sombra do invasor ainda assombrava grandes áreas da Itália. Quando os romanos eram imprudentes o bastante para enfrentá-lo, como acontecera em Herdônia, aprendiam a costumeiramente sangrenta lição. Ali o procônsul Fúlvio Centumalo havia acampado contra a cidade, enquanto negociava com um partido pró-romano dentro das muralhas. Quando Aníbal soube da ameaça, deslocou-se do Brútio por marchas forçadas e enfrentou as duas legiões de Centumalo; sua cavalaria atacou a retaguarda das legiões, enquanto sua infantaria pesada os segurava pela frente. O resultado foi outra daquelas mortíferas derrotas romanas que, até o fim da guerra na Itália, fizeram cada general romano ver estremecida sua reputação quando confrontados pelo cartaginês. Marcelo, que havia retornado de sua vitória sobre Siracusa na Sicília, era um dos cônsules para o ano de 210 a.C. e um dos generais romanos por quem Aníbal demonstrava verdadeiro respeito, dizendo sobre ele: "Marcelo é o único general que, quando vitorioso, não dá descanso ao seu inimigo, e, quando derrotado, não dá descanso a si mesmo". O modo sarcástico e impessoal de Aníbal expressar-se é revelado numa comparação, a ele atribuída, entre Quinto Fábio Máximo, o Protelador, e Marcelo: "Fábio era um professor a quem eu respeitava, mas Marcelo era um virtuoso inimigo: o primeiro não me deixou causar qualquer dano, mas o outro me fez sofrê-lo".

Marcelo iria participar de parte da campanha de 209 a.C., na qual Aníbal perderia sua última possessão importante na Itália, a cidade portuária de Tarento. O outro cônsul para o ano era o velho Quinto Fábio Máximo, que pela primeira vez ganharia algum predomínio sobre o homem que o havia desafiado com sucesso em ocasiões prévias. Enquanto Quinto Fábio Máximo trazia suas forças o norte e prosseguia em marcha para Tarento, Marcelo acossava Aníbal e perseguia suas pegadas, marchando no verdadeiro estilo "fabiano". Além desses dois exércitos, Roma colocou em campo, naquele ano, mais um, sob o comando de Fúlvio Flaco, para subjugar as cidades na Lucânia e no Sâmnio que se mostrassem favoráveis aos cartagineses.

A campanha de abertura de Aníbal, que esteve tão próxima do sucesso, fora projetada para quebrar o espírito de Roma por uma série de vitórias maciças em campo. Ele havia conseguido as vitórias, mas Roma teimosamente ainda recusava-se a se render. Sua segunda campanha, com fins políticos, tinha sido projetada para quebrar o espírito dos aliados de Roma e, ao fazê-lo, destruir a confederação latina com a qual Roma necessariamente teria que contar para obter dinheiro e poderio humano. Todavia, após mais de nove anos de guerra, dezoito dos trinta aliados continuavam fiéis a Roma e os doze que a haviam renegado só o fizeram porque seu poderio humano se exaurira e seus tesouros encontravam-se vazios. Dois fatores principais sempre afligiram Aníbal desde que percebera que deveria lutar uma guerra de desgaste em solo inimigo. O primeiro era a falta de um equipamento de sítio e o segundo a falta de infantaria pesada treinada, que somente poderia vir da própria Cartago ou da Espanha. O comando romano do mar, estabelecido na Primeira Guerra Púnica, havia demonstrado claramente que um Estado como o cartaginês, tão dependente de negócios ultramarinos, deve comandar o mar ou perecer. Esta foi uma lição que os estadistas e comandantes britânicos, educados nos clássicos, haviam absorvido bem na época de suas guerras contra a França no século XVIII.

Era aterrador que Aníbal, com seu pequeno corpo de oficiais cartagineses e seus definhados grupos de soldados profissionais, tivesse sido capaz de utilizar a força humana de rudes gauleses e primitivos brútios para tal. Ao mesmo tempo, enquanto seu próprio exército, mesmo com Hanão e outros recrutando substitutos, declinava em força, os romanos recrutavam homens em quantidade na extensa e relativamente próspera terra da Itália. Somente um grande reforço de vigorosos e treinados soldados poderia devolver a Aníbal a iniciativa que ele havia tido quando adentrara a Itália, e que havia subsequentemente confirmado em Canas. Os reforços deveriam vir ou pelos Alpes, da Hispânia, ou pelo mar, de Cartago, para o sul da Itália. Os romanos da república haviam aprendido muito com seus erros anteriores em campo contra um génio da guerra e tinham agora adotado permanentemente as táticas de desgaste contra ele. Eles também tinham aprendido muito da estratégia necessária para lidar com uma guerra englobando uma grande área — neste caso toda a bacia mediterrânea. Enquanto enfrentavam o inimigo na Espanha, calcularam que a primeira coisa a ser feita na península italiana era impedir que Aníbal recebesse qualquer reforço da Grécia ou de Cartago. A chave para isso era Tarento, onde a guarnição romana na cidadela havia impedido a plena utilização do porto pelo cartaginês.

Enquanto Marcelo seguia o exército de Aníbal e tentava atraí-lo para o norte rumo à Apúlia, distraindo-o o suficiente para fazê-lo virar de lado em pelo menos duas ocasiões, Quinto Fábio Máximo deslocava-se velozmente para o antigo porto marítimo grego. No final das contas, Aníbal voltou-se e atacou Marcelo, obrigando seu exército a se retirar para seu quartel em Venúsia. Marcelo conseguira seu objetivo e, enquanto Aníbal o enfrentava, o exército do cônsul Quinto Fábio Máximo chegava diante das muralhas de Tarento. Como os cidadãos de Cápua, os tarentinos não haviam se empenhado muito pela causa cartaginesa (ambos estavam simplesmente à espera de uma vida fácil e de menos impostos) e fracassaram visivelmente contra a, cidadela sob domínio romano. É evidente que Aníbal, naquele ano, esperava reforços da África do Norte, pois ele agora se desviara do problema de Tarento por um sítio do porto de Caulônia, na extremidade sudeste do Brútio, executado por tropas que se desencumbiram da ação na Sicília. Após castigar Marcelo tão duramente que ele foi obrigado a se retirar, Aníbal marchou diretamente através do centro do Brútio e acabou com o sítio de Caulônia.

Teria agido melhor se antes olhasse para Tarento, mas pode-se presumir que ele havia designado Caulônia como o ponto de desembarque para as tropas cartaginesas, uma vez que aquele era um obscuro e insignificante porto no extremo sul, bem no meio de território amigo. Havia espiões por todos os lados naqueles dias e, assim como os cartagineses possuíam seus próprios agentes dentro das muralhas de Roma, em cada porto onde mercadores iam e vinham havia provavelmente olhos atentos que forneciam informação para um lado ou outro nessa luta pelo mundo mediterrâneo. Com a posse do estreito de Messina e sua ocupação de Siracusa, os romanos estavam numa boa posição para saber quando e onde uma frota cartaginesa deveria ser esperada. Aníbal não recebeu nenhum reforço naquele ano, por mar ou terra. Estava para perder seu último e único grande porto, Tarento.

Deixando Caulônia restituída às mãos dos cartagineses e seus simpatizantes, Aníbal marchou de volta ao longo do "pé", do sul da Itália, e ao redor do grande Golfo de Tarento — para alcançar a cidade logo após a sua queda. Apesar de seu contratempo contra Marcelo no norte e do desvio adicional para livrar Caulônia no sudeste, ele estava há apenas cinco milhas da cidade quando Tarento foi traída por elementos do próprio local. As tropas de Quinto Fábio Máximo, que nunca haviam sido capazes de enfrentar Aníbal com alguma firmeza de ânimo em campo, agora, das muralhas, contemplavam e zombavam do seu inimigo. Cartalão, o comandante cartaginês, havia sido morto na luta que se seguiu à invasão dos romanos, assim como os dois tarentinos principais responsáveis pela traição anterior da cidade. Assim que ele ficou visível das muralhas, diz-se que Aníbal teria sido avisado por um batedor sobre os acontecimentos e feito o frio comentário: "Então, os romanos também possuem um Aníbal. Eles tomaram Tarento, como nós".

Tarento permaneceria como mais um monumento à determinação romana; todos deveriam saber que acolher o cartaginês era inútil.

Aníbal e seus homens cruzando os Alpes, de Joseph Mallord William Turner, na galeria Tate Britain, Londres.

É notável que Lívio, descrevendo a história e grandeza de sua cidade e sua ascensão ao poder, não omita tais detalhes da crueldade ferrenha que finalmente asseguraria o império romano. Quando Aníbal capturou a cidade, tivera o cuidado de assegurar que houvesse o mínimo de derramento de sangue e que somente as casas dos tarentinos pró-romanos fossem saqueadas. Ele, então, seguiu em retirada na direção do Metaponto, através da baía de Tarento, onde ordenou a um grupo de cidadãos destacados que fossem até Quinto Fábio Máximo e oferecessem a traição de sua cidade se os romanos se movessem contra ela. Aníbal escondera seu exército de cada lado da estrada para o Metaponto e resta pouca dúvida de que, se Quinto Fábio Máximose deslocasse, teria caído numa típica armadilha anibálica — da qual nem ele nem seu exército teriam escapado. Nessa ocasião, contudo, os romanos foram salvos por suas observâncias religiosas, pois Quinto Fábio Máximo, um homem da velha escola, nunca marcharia sem verificar os presságios, e o sacerdote, na ocasião, após analisar o sacrifício, achou-os desfavoráveis e avisou Quinto Fábio Máximo] de que ele deveria estar em guarda "contra o ardil de um inimigo". Conhecendo a relutância de uinto Fábio Máximo em fazer qualquer movimento que pudesse expor seus homens a perigos desconhecidos, é mais do que provável que ele próprio tenha tomado parte na interpretação dos sacrifícios. Suas suspeitas foram confirmadas quando, tendo os cidadãos do Metaponto retornado numa segunda ocasião para inquirirem por que os romanos demoravam em avançar contra a cidade deles, foram presos e ameaçados com torturas, confessando o plano.

A perda de Cápua e agora a perda de Tarento foram acuradamente interpretadas por Aníbal como desastrosas. Dele é dito ter observado aos seus oficiais: "A menos que possamos adquirir nova força, nós perdemos a guerra na Itália".

Ele havia esperado que Tarento servisse como porto de desembarque para reforços de Cartago, assim como para o uso de seu aliado macedônio. Com sua perda, restava-lhe ainda menos esperança de incitar Filipe a deslocar tropas através do Adriático para apoiar a invasão da Itália. Ele permanecia sem derrotas no campo, mas isso, em si, pouco significava. Só poderia olhar em direção da Espanha e de seu irmão Asdrúbal — mas as notícias vindas da Hispânia eram más.

Cipião, o mais jovem

O homem que então despontava como um dos maiores soldados da Roma republicana vinha de uma ilustre família patrícia à qual Roma devia mais gratidão do que qualquer outra pelo império mundial. Como a tumba dessa família nos revela, os Cipiões haviam sido homens da maior distinção na história romana desde o remoto século IV a. C., uma sequência de cônsules com uma longa série de méritos em campos de batalha e em assuntos civis.

Públio Cornélio Cipião era filho do Públio que recentemente havia sido morto junto com seu irmão Cneu Servílio, durante a luta na Hispânia. Ainda jovem, aos dezessete anos, salvara a vida de seu pai quando este fora ferido na batalha de Ticino, a primeira grande vitória de Aníbal na Itália. Dois anos mais tarde, após o desastre de Canas, tinha sido um dos poucos sobreviventes que não arrefeceu, ajudou a reagrupar os demais e persuadiu alguns dos jovens nobres a não fugirem do país em desespero, como se preparavam para fazer. Sua experiência era em alguns aspectos semelhante à de Aníbal — aristocrata e rico, vigoroso e inteligente — e ele havia tido a oportunidade, a partir do momento em que Aníbal irrompeu sobre a Itália, de estudar as táticas e estratégias de seu grande oponente. Outro curioso ponto de semelhança que iria manifestar-se era o fato de que, se a família Barca, desde a chegada de Amílcar Barca na península Ibérica, parece ter considerado aquela terra quase como uma província particular de sua propriedade, os Cipiões também adquiriram uma associação de algum modo semelhante com aquela terra quente e estranha — provavelmente selada pelo sangue dos dois irmãos que recentemente ali tombaram. Cipião, o mais jovem, havia sido eleito edil (um dos magistrados de Roma) três anos depois de Canas, embora fosse extremamente jovem para a posição e tivesse a ferrenha oposição de muitos dos tribunos, aparentemente por causa de sua pouca idade, mas na verdade porque eles defendiam os interesses de outras famílias patrícias. Em 210 a.C., Cipião, embora com pouco mais de vinte anos, foi escolhido para assumir o comando na Hispânia.

Houve aqueles que quase imediatamente acharam imprudência designar um homem tão jovem para tão importante posto (ele tinha aproximadamente a mesma idade de Aníbal quando este último reuniu seu exército para a invasão da Itália), ainda que essa decisão em breve mostrasse ter sido uma das mais sábias que Roma jamais tomara.

Chegando à península Ibérica no final de 210 a.C. com 11 000 reforços, Cipião Africano imediatamente se deslocou para Tarraco (Tarragona). Durante todo aquele inverno, encontrou-se com tantos representantes das tribos ibéricas quanto possível, homens confusos com a constante variação de sorte na guerra entre Cartago e Roma, mas que parecem ter ficado seguros com o ar confiante e as invariáveis boas maneiras de Cipião Africano. Como o próprio Aníbal, ele parece ter possuído uma habilidade inata para tratar com o povo nativo de outros países: nenhum desses dois aristocratas mostrava a arrogância dos generais comuns ou a jactância dos políticos plebeus. Assim, o brilhantismo de Cipião Africano, como em breve se mostraria, não repousava apenas no campo da guerra, mas também em um tratamento de estadista para s com os habitantes locais. As tribos ibéricas, passionais, orgulhosas e sensíveis a desprezos, já portavam a inequívoca marca da nação que havia se desenvolvido na península através dos séculos. Durante aquele primeiro inverno, Cipião Africano aprendeu a compreender sua natureza, a fazer amigos entre seus chefes e a colocar a pedra fundamental naquela poderosa e próspera província que viria a ser no final a Hispânia romana. Na primavera de 209 a.C., ele cruzou o Ebro com trinta mil homens e marchou ao sul para Cartagena, com seu exército sendo acompanhado ao longo da costa por uma frota romana. Era uma bem planejada operação anfíbia e Cipião Africano não se movera sem boas perspectivas de sucesso. Ele soube por seus informantes que as forças cartaginesas estavam divididas em três e posicionadas bem distantes umas das outras: uma sob o comando de Asdrúbal, perto de Sagunto; outra comandada por Magão, no interior; e a terceira de Asdrúbal Gisgão, a sudoeste, em Gades. Essa separação de comando deveu-se não somente a ambições rivais entre os líderes, mas também à própria natureza do país. Não havia, naquela época, uma única região onde grande concentração de homens pudesse fixar base e se sustentar da terra. "A Espanha", como Henrique IV da França observaria séculos mais tarde, "é um país onde grandes exércitos morrem de fome e pequenos exércitos são batidos". Cipião Africano deslocou-se com a segurança que Wellington iria um dia demonstrar quando confrontado por marechais franceses igualmente vorazes e em desavença uns com os outros. A guarnição de Cartagena, pequena mas confiante por causa da suposta inexpugnabilidade da cidade, lançou uma brava investida contra o exército romano, mas foi repelida. A frota cartaginesa bloqueou-os pelo mar, e Cipião Africano, fazendo uso do conhecimento do local, descobrira que uma lagoa que protegia a capital cartaginesa a oeste poderia ser escoada através de certos baixios com o vento do norte, diminuindo seu nível em um pé ou mais. Totalmente confiantes na proteção proporcionada por essa lagoa, os cartagineses haviam deixado as muralhas daquele lado bem menos fortificadas do que as da ponta de terra peninsular, onde Cartagena então se situava (a garganta dessa península há muito foi encoberta e não é mais discernível). Tendo testado a força das muralhas principais e descoberto que eram altas demais e muito bem definidas para um assalto bem-sucedido, Cipião Africano] esperou até que um forte vento soprasse do norte e, então, enquanto a guarnição mantinha-se ocupada do lado da terra, fez com que parte do exército atacasse Cartagena através da lagoa. A manobra foi bem-sucedida, os romanos irromperam dentro da cidade e logo abriram os portões para o corpo principal de seu exército.

O comandante cartaginês retirou-se para a cidadela, enquanto a cidade era entregue à usual rapina e ao massacre. Então, vendo que a situação estava perdida tanto em terra quanto no mar — a frota atacante havia logrado destruir e capturar os navios no porto — ele se rendeu. Nova Cartago, a capital da rica província da Hispânia que consolidara tão amplamente os esforços de guerra de Aníbal, estava perdida. Naquele momento, o controle de Cipião Africano sobre as tropas, tão diferente do de Marcelo em Siracusa, foi acionado de imediato : as tropas obedeceram totalmente e daí em diante Cipião Africano exibiu sua cortesia junto aos conquistados, especialmente os iberos, que se tornaria o símbolo de seu sucesso. "(…) Da população masculina livre, cerca de dez mil foram capturados. Desses, Cipião Africano libertou os cidadãos de Nova Cartago e restituiu-lhes sua cidade, bem como todas as propriedades que a guerra lhes havia tirado."[36] Lívio prossegue relatando como vários milhares de artesãos treinados foram declarados escravos do povo romano, mas foram encorajados a continuar trabalhando com a perspectiva de liberdade no futuro próximo se eles se empenhassem na fabricação de armamentos. Eram também muito necessários na manutenção das docas e na construção naval.

Cartagena era um grande prêmio em todos os sentidos. Além da pilhagem, dividida entre os soldados romanos, havia uma imensa quantidade de ouro e prata que reabasteceu além do suficiente os cofres vazios do tesouro romano. Havia, também, um vasto estoque de cevada e trigo, quantidades de bronze e ferro, e todas as reservas necessárias para sustentar uma frota — bem como a frota em si. Dezoito navios de guerra cartagineses foram capturados e Cipião Africano arrolou muitos dos escravos para servirem como remadores. Sessenta e três navios mercantes com toda sua carga intacta também estavam no porto. Os romanos, indubitavelmente, estenderam seu controle das rotas marítimas do Mediterrâneo, e agora dominavam as regiões central e ocidental, bem como o Adriático e o Jônio. Entre a extensa quantidade de material de guerra que caiu em mãos romanas achavam-se cerca de cem catapultas de tipo grande, bem como instrumentos de arremesso de rochas e arpões, além de todo o equipamento para um grande comboio de sítio — aquilo que havia faltado para Aníbal em todos os seus anos na Itália e que os cartagineses nunca foram capazes de transportar através do mar dominado pelos romanos.

Cipião Africano tirou bom proveito político dos reféns espanhóis tomados em Cartagena como garantia para um bom comportamento de suas tribos. "Aprendendo os nomes de seus Estados, ele fez uma lista dos cativos, mostrando quantos pertenciam a quais povos, e enviou mensageiros aos seus lares, propondo que cada homem viesse e recuperasse seus próprios filhos. Se acontecesse de embaixadores de quaisquer Estados se encontrarem lá, os reféns seriam devolvidos diretamente a eles". Quando a cunhada de Indíbilis, príncipe da importante Ilergetes, caiu em prantos a seus pés suplicando que garantisse a segurança de suas lindas e jovens filhas, Cipião Africano "confiou-as a um homem de comprovada integridade" e ordenou que ele as protegesse como a si mesmo. "Então", prossegue Lívio, "foi trazida a ele uma donzela de tal beleza que, onde quer que ela fosse, atraía os olhares de todos".[36] Os companheiros oficiais de Cipião Africano sabiam muito bem o quanto ele era afeiçoado às mulheres e pensaram que lhe estavam dando um presente mais do que adequado. Cipião Africano, contudo, não se esquecera de que era não somente o conquistador de Cartagena, mas também o homem de quem dependia a futura política dos novos interesses de Roma na Hispânia. Tendo inquirido sobre o parentesco da jovem e descoberto que ela estava prometida a um jovem celtibero de certa importância, ele o convocou à sua presença e confiou a ele sua futura noiva, esclarecendo que não queria qualquer agradecimento, mas que o jovem deveria ser um amigo do povo romano. Os pais dela, entretanto, pensando resgatá-la, trouxeram para Cipião Africanouma grande quantidade de ouro: ele, por sua vez, deu o ouro ao jovem nobre como presente de casamento. Esta, e outras ações semelhantes, contribuíram em grande parte para assegurar a transferência aos romanos da lealdade das tribos que, até então, tinham fornecido tantos dos homens do exército cartaginês. Grandes levas de tribos que serviam no exército de Asdrúbal Barca desertaram dos cartagineses ao longo dos meses que se seguiram.

Tendo mostrado sua habilidade como general e estadista, Cipião Africano voltou-se para os aspectos práticos imediatos da guerra. Observara na Itália e na Hispânia as vantagens da espada ibérica, que poderia ser usada tanto para cortar como para perfurar, sobre os gládios romanos, adequados principalmente para perfurar. Durante aquele inverno, enquanto as armarias de Cartagena ressoavam com batidas de martelos, Cipião Africano exercitava as legiões em táticas mais flexíveis do que o velho ataque frontal romano, que contava em demasia com o peso abrupto das legiões. Ele presenciara o fracasso em Canas. Ao mesmo tempo, não negligenciou a frota, e os remadores e marinheiros eram exercitados regularmente em batalhas simuladas sempre que o clima permitia.

A morte dos cônsules

Dez anos se passaram desde que Aníbal assolara a Itália para desmantelar os exércitos romanos e fazer com que as primeiras dúvidas surgissem entre seus aliados sobre Roma ser a senhora e futura governante do Mediterrâneo. Por volta de 208 a.C., contudo, com o ímpeto de seu assalto há muito passado e as rachaduras na confederação latina consertadas, Aníbal vislumbrava um cenário muito diferente.

Cápua estava perdida, e Tarento também. As cidades no Sâmnio e na Campânia que haviam abjurado da aliança romana voltando-se para o que parecia ser a estrela nascente de Cartago estavam agora renegando-a, e muitas outras começavam a pensar em seguir seu exemplo, porque observavam a maneira como Roma punia qualquer desertor. Aníbal não tinha portos dignos do nome para manter ligações marítimas com Cartago, e a importantíssima Ilha da Sicília estava irreversivelmente perdida. A Sardenha nunca conseguira se libertar de Roma e todas as proximidades da Itália estavam vigiadas e guardadas por vitoriosas frotas romanas. Filipe V da Macedônia, quase convencido, após Canas, de que valeria a pena desembarcar assistência aos conquistadores cartagineses, logo se lembrou do controle romano do Adriático. (Ele estava agora engajado na Grécia contra os etolianos que, com o apoio de Roma, iriam mante-lo ocupado em casa até que a ameaça de Aníbal estivesse acabada.) Aníbal certamente não obteria qualquer conforto das notícias vindas da Espanha, onde seu irmão Asdrúbal seria batido em Bécula naquele ano pelo jovem Cipião Africano. Ele tinha pouco para sustentá-lo e às suas tropas, além do reconhecimento de que ainda estava na Itália após tantos anos — e ainda não fora derrotado. Ainda assim, o ano de 208 a.C., que deve ter parecido sinistro para os cartagineses, iria se encerrar com uma extraordinária inversão na sorte romana.

Os cônsules para o ano de 208 a.C. eram o duro e velho soldado Marcelo, agora no seu quinto mandato, e Tito Quíncio Crispino, que tinha sido o braço direito de Marcelo na captura de Siracusa. Cada um estava no comando de duas legiões. Crispino iniciou as campanhas daquele ano com ataque a Lócris Epicefíria, um dos poucos portos ainda nas mãos de Aníbal, no sul, onde ele ainda poderia esperar reforços pelo mar, vindos de Cartago. Forçado a desistir do sítio por Aníbal, recuou para o norte até a cidade de Venúsia, onde ele e Marcelo acamparam com os seus exércitos separados apenas por poucas milhas. Disposto a trazê-los para a batalha se, como ele tinha motivos para suspeitar, os romanos tivessem recobrado suficientemente sua coragem para enfrentá-lo em campo aberto, Aníbal dirigiu-se a norte deles. Em seu caminho, soube que uma legião de Tarento tinha sido enviada para marchar até Lócris e recomeçar o sítio, com a esperança de capturar a cidade-porto em sua ausência. Ele armou uma típica armadilha anibálica abaixo da colina de mil pés de altura de Petélia, ocultando seus cavaleiros e infantaria de cada lado da estrada — o tipo de laço no qual ele antes havia esperado pegar as tropas de Quinto Fábio Máximo. Os romanos, presumindo que Aníbal estava distante ao norte, avançaram descuidadamente e sem quaisquer batedores à frente, e aprenderam a lição que já deveria há muito ter sido absorvida por todos os comandantes inteligentes: "Nunca subestimar o cartaginês". A armadilha foi acionada; dois mil romanos foram mortos, mil e quinhentos aprisionados; o restante fugiu de volta para Tarento, felizes ao ver os portões da cidade abertos para deixá-los entrar.

Quando Aníbal finalmente chegou a uma posição não muito distante de Venúsia e dos exércitos romanos, armou acampamento e preparou-se para o que prometia ser um duro combate. Como narra Lívio, "ambos os cônsules estavam com um espírito feroz e saíam diariamente pela linha de batalha com a esperança certa de que, se o inimigo viesse a arriscar uma batalha, com dois exércitos consulares unidos, seria possível finalizar a guerra".[36] Entre os dois exércitos ficava uma pequena colina coberta de vegetação que os romanos, posicionados muito antes da chegada de Aníbal, certamente deviam ter tomado. O mestre da guerra não perdeu tempo; durante a noite, enviou um número de esquadrões da cavalaria númida para verem se a colina estava ocupada e, se não, se esconderem lá e permanecerem sem qualquer movimentação durante as horas de luz do dia. Decidira que, por seu formato e tamanho, a colina era mais adequada para alguma forma de emboscada do que para um acampamento do exército.

Como de costume, seu modo de pensar deixou-o um passo à frente do oponente. "No acampamento romano", escreve Lívio, "havia um clamor geral de que a colina devia ser ocupada e defendida por um forte, de modo que eles não tivessem o inimigo sobre seus pescoços, o que aconteceria se a colina fosse ocupada por Aníbal".[36] Não sabendo o que já havia acontecido à legião saída de Tarento, nem que as tropas de Aníbal estavam cheias de disposição e confiança, e nem lembrando, pelos fatos passados, que somente os ignorantes e tolos tratariam a presença de Aníbal sem o devido cuidado, Marcelo e seu companheiro cônsul Crispino decidiram sair a cavalo e dar pessoalmente uma olhada na colina. Talvez as notícias da Espanha e a situação geral do Mediterrâneo tenham insuflado neles uma descuidada confiança. Levando não mais do que duzentos e vinte cavaleiros com eles, junto com uns poucos homens de infantaria e alguns oficiais da equipe, inclusive Marco Marcelo, filho do cônsul, eles cavalgaram para fora do campo. Quando deixaram o acampamento, Marcelo deu ordens para que os soldados ficassem preparados e, se a colina fosse considerada adequada para o estabelecimento de um acampamento ou posto de observação, deveriam deslocar-se para lá imediatamente. O sinal para que fizessem isso jamais viria.

Os númidas, esperando poder capturar uns poucos homens que saíssem em busca de forragem ou lenha, ficaram atónitos ao verem os mantos militares vermelhos e as brilhantes armaduras de oficiais graduados movendo-se através da pequena planície na sua direção e adentrando as rudes escarpas. Imaculadamente disciplinados, esperaram até que todo o grupo estivesse ao seu alcance e, então, como sombras à retaguarda dos romanos e nos seus flancos, os cavaleiros da África do Norte fizeram seu movimento. "Aqueles que, de frente para o inimigo, teriam de irromper da encosta não se mostraram antes que os que isolariam a estrada em sua retaguarda voltassem para os flancos do inimigo. Então, surgiram ao mesmo tempo, de todos os lados e, com um grande brado, fizeram seu ataque". Marcelo foi quase de imediato atingido por uma lança e caiu morto de seu cavalo; Crispino, ferido por duas azagaias, conseguiu escapar, enquanto o jovem filho de Marcelo, também ferido, juntou-se a ele na fuga dos sobreviventes — uns poucos oficiais da equipe e um punhado de cavaleiros etruscos que parecem ter tido pouca coragem para o confronto.

O súbito alarido vindo da colina colocou ambos os exércitos em alerta, sendo os romanos os primeiros a saber de seus ensanguentados sobreviventes o que acontecera naquele dia ensolarado de verão. Aníbal, tão logo soube das notícias por um dos númidas, moveu seu exército adiante e ocupou a colina. Ele próprio cavalgou pelos arbustos até encontrar o corpo de Marcelo; cremou-o com as devidas honras e enviou as cinzas para o filho do falecido em uma urna de prata. Ele havia respeitado Marcelo como oponente enquanto estava vivo e prestou-lhe, depois de morto, como sempre foi de seu costume para com oponentes abatidos, os sinais de respeito devidos a um homem digno de honra.

Enquanto Crispino, seriamente ferido, encarregava-se dos exércitos consulares e deslocava-se pelas montanhas "para um lugar alto que fosse seguro de todos os lados", Aníbal cogitava seu próximo movimento. Ele tinha agora, em seu poder, o anel do cônsul morto: seu selo e autoridade para qualquer mensagem enviada. Aníbal imediatamente pensou em Salápia na costa adriática da Apúlia; Salápia, que havia rompido sua aliança cartaginesa e se bandeado para Roma. Ele precisava de uma guarnição segura na costa leste, já que aparentemente soube que Asdrúbal, seu irmão na Hispânia, pretendia a qualquer momento cruzar os Alpes e juntar-se a ele para uma investida final contra Roma. Os acontecimentos daquele ano iriam confirmar o pessimismo de Asdrúbal quanto à posição cartaginesa na Espanha e ele via claramente que somente uma combinação de Aníbal com ele próprio, e seus dois exércitos, um cheio de sangue novo e ávido por conquistas, outro talhado pela experiência, poderiam salvar Cartago por meio de um ataque direto ao coração de Roma.

Para Salápia, então, Aníbal enviou um mensageiro com a autenticação do selo de Marcelo dizendo que este chegaria na noite seguinte e que os portões da cidade deveriam ser abertos para recebê-lo. Era um artifício engenhoso e poderia ter funcionado, não fosse o fato de Crispino, mesmo estando à morte, ter-se antecipado a ele e enviado mensageiros para todas as cidades próximas dizendo que Marcelo estava morto, e que não se confiasse em qualquer mensagem que ostentasse o seu selo. Os homens de Salápia enviaram de volta o mensageiro de Aníbal, um desertor romano, dizendo que tudo estaria preparado para Marcelo quando ele chegasse. Quando Aníbal aproximou-se de Salápia à noite, enviou adiante um grupo avançado de desertores romanos, todos falando latim e portando armas romanas, marchando como os legionários que haviam sido um dia, de modo a convencer o povo de Salápia de que o cônsul estava chegando. As sentinelas dos portões, ouvindo seu chamado, fingiram estar preparadas para darem as boas-vindas e levantaram a porta de grade levadiça. Mas quando várias centenas dos desertores haviam adentrado a cidade, a porta de grade fechou-se atrás deles e o grupo avançado foi massacrado.

Derrotado pela primeira vez por uma inteligência tão aguçada quanto a sua própria, Aníbal abandonou a tentativa de tomar a cidade para a esperada chegada de seu irmão e retirou-se para o sul. Tinha descoberto que Lócris estava novamente sitiada e era muito importante para ele manter aquela linha de comunicação com Cartago aberta. A sempre versátil cavalaria númida chegou à frente das colunas de Aníbal em marcha, surpreendeu o exército romano que fazia o sítio pela retaguarda, e Lócris foi salva.

Tito Quíncio Crispino morreu pouco tempo depois devido aos ferimentos recebidos naquela emboscada fatal na colina. "Assim, dois cônsules — e isso nunca acontecera numa guerra anterior — perdendo a vida sem ser numa batalha notável, haviam deixado o Estado, por assim dizer, despojado". Em Trasimeno e em Canas, Aníbal matara um dos cônsules então no cargo, e já havia matado muitos generais romanos, cavaleiros, inúmeros oficiais de Estado-Maior e outros valorosos cidadãos de Roma. Mas agora, no ano que parecia ter iniciado com a mais tenebrosa das perspectivas, ainda cavalgava pela paisagem da Itália — uma figura implacável, vingadora, que os romanos nunca haviam derrotado.

Cipião e Asdrúbal na Hispânia

Do outro lado do Mediterrâneo, na península Ibérica, seu irmão Asdrúbal, ávido para reunir-se a Aníbal na Itália há vários anos, teve sua escolha resolvida por ele. Se vacilara, no passado, dividido entre a necessidade de preservar o império cartaginês e auxiliar no ataque de Aníbal, agora receberia o golpe que traria a decisão. Em Bécula, guardando as importantíssimas minas de prata de Cástulo, Asdrúbal foi colocado em apuros por Cipião. A guerra anibálica, como todas as outras, girava em torno de metais e dinheiro — metais para os materiais de guerra e dinheiro para manter as tropas em campo e pagar pelo apoio dos aliados. Amílcar havia fundado seu império ibérico para reabastecer os cofres de Cartago depois da desastrosa paz que se seguiu à Primeira Guerra Púnica, e foi a riqueza mineral da península Ibérica o que encorajara Cartago a apoiar a assombrosa aventura de Aníbal contra o Estado romano. A última batalha de Asdrúbal na Hispânia foi significativa pelo fato de que ele foi derrotado pela utilização, por Cipião Africano, de uma tática de aproximação na qual nenhum outro comandante romano no passado teria pensado, e possivelmente nem mesmo o próprio Cipião Africano, se ele não tivesse estado presente em Canas.

Asdrúbal se posicionara abaixo da cidade de Bécula, numa cordilheira que tinha um pequeno rio abaixo dela. Para chegar até o inimigo, Cipião Africano teria que vencer o rio e então fazer um ataque frontal subindo por uma escarpa: duas desvantagens que comandantes romanos anteriores teriam enfrentado, contando com o peso das legiões para abrir caminho através das defesas do inimigo. Contudo, Cipião Africano tinha observado que, em qualquer dos lados do platô, havia valas secas descendo desde o topo. Depois de suas tropas cruzarem o rio, subitamente deslocou o peso principal de seu ataque, enviando uma grande corporação de tropas leves escarpa acima para enfrentar o inimigo de frente, enquanto ele e seu segundo-no-comando levavam as legiões pesadamente armadas pelas valas de ambos os lados. Ao fazer isso, imitou Aníbal em Canas, com suas tropas ligeiras e aliados espanhóis retendo o choque no centro, enquanto seus veteranos armados com armas pesadas cerravam fileiras nos flancos para a matança. "E não mais", escreve Lívio,[36] "restou espaço aberto, nem mesmo para fuga (...) a entrada do acampamento foi obstruída pela fuga do general e oficiais-chefes e, mais ainda, pelo pânico dos elefantes, aos quais, quando apavorados, eles temiam muito mais do que ao inimigo. Cerca de oito mil homens foram mortos". Restou o fato de que Asdrúbal, colocado à prova em muitos campos de batalha, conseguiu evadir-se com o núcleo principal de seu exército — todas as suas tropas pesadas, assim como a cavalaria e também trinta e dois elefantes. Como o próprio Aníbal, e como Cipião Africano, ele era impiedoso no sacrifício de suas tropas locais quando chegava à ação principal. E para Asdrúbal, tendo decidido que a Espanha deveria ser finalmente abandonada, mesmo que apenas a curto prazo —o mais importante ato seria deslocar suas forças para a Itália.

Asdrúbal parte para a Itália

No outono de 208 a.C., Asdrúbal levou suas tropas pela Gália, tendo escapado dos romanos na Hispânia oriental seguindo os vales altos do Tejo e do Ebro. A fama subsequente de Cipião Africano parece ter obscurecido o fato de que ele deixara Aníbal escapar e, em consequência, permitiu que seu país ficasse mais exposto ao perigo do que em qualquer outra ocasião desde que Aníbal cruzara os Alpes.

É uma infelicidade que nossos estudiosos antigos não tenham comentado mais aprofundadamente essa marcha feita por Asdrúbal, a segunda maior realizada pela "ninhada do leão", os filhos de Amílcar, que por tanto tempo ameaçaram e aterrorizaram Roma. Foi uma jornada épica digna de seu irmão. Escapando de Cipião Africano, deixou os romanos vigiando em vão os desfiladeiros dos Pirenéus enquanto ele, a sua infantaria cartaginesa, os iberos, a cavalaria númida e os laboriosos elefantes africanos moviam-se a oeste, passando pela baía de Biscaia e o grande oceano acinzentado que poucos homens mediterrâneos jamais haviam visto. Antes de partir para a Gália reuniu-se com Magão, e este seu irmão mais jovem foi para as Baleares a fim de levantar uma força daqueles formidáveis "fundibulários" que mais tarde cruzariam o mar rumo à Itália. Os três filhos de Amílcar Barca, assim foi planejado, iriam então encontrar-se pela primeira vez em muitos anos e executar a vingança sobre Roma que os votos feitos ao seu pai e aos enfumaçados altares de Cartago há muito demandavam.

Aníbal e Asdrúbal sabiam que, com sua situação em declínio na Hispânia, o ano de 207 a.C. deveria ser decisivo na guerra contra Roma. Somente pela união de seus exércitos e a total derrota dos romanos — algo mais devastador até mesmo do que em Canas — poderia ser atingido o objetivo da longa guerra. Desde o início, o grande empreendimento iria mostrar-se arriscado e, numa posterior reflexão, quase impossível. Comandando o centro da Itália, os romanos tinham o benefício de linhas internas de comunicação e eram capazes de posicionar suas forças de modo que uma parte mantivesse os olhos sobre Aníbal ao sul enquanto a outra vigiasse o norte e a esperada chegada de Asdrúbal. Naqueles dias de comunicações primitivas, o grande obstáculo entre os dois irmãos era a extensão territorial da Itália.

Asdrúbal invernou na Gália, bem ao oeste, onde não havia qualquer amigo de Roma ou de Massala, e então provavelmente cruzou o rio Ródano comodamente acima, perto de Lyon. Embora não fosse segredo que Asdrúbal pretendia reunir-se ao seu irmão na Itália, nenhuma tentativa, em qualquer caso, poderia ser feita para detê-lo, uma vez que ele tivesse cruzado os Pirenéus e penetrado na Gália. Massala era distante e os chefes gauleses estavam como nunca hostis a Roma. Segundo Lívio, apesar de Asdrúbal ter escapado de Bécula com não mais do que quinze mil homens é provável que ele tenha chegado aos Alpes com quase o dobro desse número.[36] Aníbal, bem distante ao sul, devia ser capaz de reunir um exército de quarenta a cinquenta mil homens, a maioria, porém, de tropas de qualidade bem baixa.

Na primavera de 207 a.C., assim que a neve derreteu, Asdrúbal partiu: ele não demorou nem um pouco, como seu irmão havia feito, e nem aparentemente foi incomodado por tribos hostis. Cruzando o território do Arverno seguiu provavelmente o curso do rio Isère e quase certamente não tomou a difícil rota seguida por Aníbal. Tanto Lívio quanto Apiano afirmam que ele o fez,[36] mas parece muito improvável, uma vez que a bacia do Isère segue pelo desfiladeiro do monte Cenis e o historiador romano Caio Terêncio Varrão parece, sem dúvida, descrever o desfiladeiro de Asdrúbal como sendo distinto do de Aníbal, e ao norte dele. O Passo do Monte Cenis corresponde perfeitamente à descrição, e a ideia de que Asdrúbal tenha seguido as pegadas do irmão não é mais do que metáfora. Em todo caso, como Lívio aponta, as tribos alpinas que antes pensaram ter Aníbal intenções quanto ao seu pobre território já haviam tomado conhecimento da "Guerra Púnica, devido à qual a Itália estivera em chamas por onze anos, e perceberam que os Alpes não eram mais do que uma rota entre duas poderosíssimas cidades em guerra uma com a outra (…)".[36] Logo, não havia motivos para atacarem os cartagineses em marcha, nem enganá-los com informações que poderiam levá-los a altos e traiçoeiros desfiladeiros. Asdrúbal rumou para a Itália no tempo exato de um ano, com uma segurança que se traduz pelo fato de nenhum contratempo ter sido atribuído à sua expedição.

Os romanos estavam bem cientes de que aquele ano era crucial. A República Romana fortaleceu-se e, sem dúvida, revestiu-se de tão nobre disposição que, mesmo após gerações, isso foi rememorado como inspiração. Embora a notícia de que Asdrúbal estava em marcha tenha produzido cenas em Roma remanescentes do pânico inspirado por Aníbal nos primeiros estágios da guerra, o Senado nunca hesitou em tomar medidas sábias e sensíveis para defender o Estado. Os homens já estavam então acostumados com a guerra, enrijecidos e treinados a ponto de enfrentarem todas as vicissitudes. Em alguns aspectos, também poderiam confortar-se com a situação geral: Cipião Africano, indubitavelmente, obtivera a vantagem na Espanha; não havia ameaça na Sardenha, e a guerra na Sicília havia finalizado satisfatoriamente. O aliado inativo de Aníbal, Filipe V da Macedônia, permanecia na defensiva na Grécia e preparava-se para negociar a paz; por todo o mar Mediterrâneo, a marinha romana navegava triunfante. Os aliados romanos farejaram a mudança dos ventos, e aqueles que antes haviam se mostrado covardes ou traiçoeiros agora tinham aprendido a lição. Logo, era com alguma confiança que, a despeito da dupla ameaça de Aníbal e Asdrúbal, os romanos encaravam aquele ano. Prova disso, e de seu poderio humano disponível, é dada pelo fato de que não menos de vinte e três legiões tinham sido recrutadas. Dessas, somente oito foram requisitadas para serviço fora do país: duas na Sicília, duas na Sardenha e quatro na Hispânia. As quinze restantes ficaram todas na Itália, representando setenta e cinco mil cidadãos romanos aos quais se somava uma igual quantidade de aliados. Não é surpresa, contudo, Lívio observar que o número de jovens aptos para o serviço estivesse começando a decair.[36]

Mais difícil do que reunir tropas era encontrar homens para comandá-las. Quinto Fábio Máximo estava agora muito velho e Marcelo, a "Espada de Roma", morto. As perdas sofridas através dos anos, e particularmente em Canas, eram por demais perceptíveis nas fileiras dos líderes de Roma. Após muito debate, Cláudio Nero e Marco Lívio foram finalmente eleitos cônsules, o primeiro assumindo o comando do exército do sul frente a Aníbal em Venúsia, e o outro o comando do exército do norte em Sena Gálica, na costa adriática. Fúlvio Flaco, vitorioso em Cápua, apoiou Nero com um exército no Brútio, e um outro exército estava em Tarento. No norte, Lúcio Pórcio Licino comandava um exército na Gália Cisalpina, enquanto Caio Terêncio Varrão (ainda popular junto ao povo, apesar de tudo) detinha a instável região da Etrúria. No começo daquela primavera, Asdrúbal rumou para o sul, quase certamente antes do esperado. Se o exército que ele trouxe consigo da Hispânia não estava exausto como o de Aníbal, nem necessitando do mesmo tempo para descanso, também não era da mesma qualidade nem tão forte naquela arma que havia causado tanto estrago aos romanos, a soberba cavalaria da África do Norte. Mesmo assim, reforçado por vários milhares de lígures que haviam se juntado a ele, e agitando uma vez mais o espírito rebelde dos gauleses cisalpinos, Asdrúbal movia-se como uma tenebrosa nuvem de tempestade pela terra da Itália. Cruzando o rio Pó e transpondo o desfiladeiro de Estradela, ele marchou contra Placência. Ali hesitou e perdeu tempo, demorando para sitiar a colónia fiel aos romanos que fechara os portões diante dele, tendo notado que, como Aníbal, ele não possuía equipamentos para executar um sítio. Asdrúbal tem sido criticado, por alguns historiadores, por se demorar em Placência, ao invés de contorná-la e marchar adiante para se encontrar com seu irmão antes que os romanos pudessem concentrar todas as suas forças. Contudo, ele estava diante do fato de que Placência parecia ser uma guarnição forte demais para deixar em sua retaguarda e de que — talvez ainda mais importante — as tribos gaulesas locais demoraram para vir em seu favor. Ele precisava esperar até que número suficiente de lígures tivesse se juntado a ele e tantos gauleses quantos possíveis tivessem sido recrutados. Finalmente, desviando de Placência, ele marchou pelo caminho de Arímino rumo à costa oriental. Pórcio, que não tinha tropas suficientes para resistir a ele, retirou-se. Tais foram os lances iniciais daquela primavera no norte.

Aníbal, que tinha passado o inverno na Apúlia como de costume, foi primeiro para a Lucânia levantar mais tropas e então voltou para a sua fortificação no Brútio, sem dúvida para obter a maior quantidade possível de reservas dessa região há tanto tempo fiel à sua causa. De acordo com Lívio, as tropas romanas de Tarento caíram sobre as suas levas enquanto eles estavam em marcha, e no combate que se seguiu ele perdeu cerca de quatro mil homens, com os sobrecarregados cartagineses sendo mortos pelos legionários livres de carga.[36] Enquanto isso, o cônsul Cláudio Nero, com um exército de quarenta e dois mil e quinhentos homens, deslocava-se de Venúsia para barrar a marcha de Aníbal do Brútio para a Lucânia. "Aníbal esperava", diz Lívio, "recuperar as cidades que haviam sucumbido pelo medo aos romanos",[36] mas também tinha que marchar para o norte de modo a encontrar-se com o irmão. A confusão dos movimentos cartagineses se devia às comunicações primitivas da época: Aníbal nada mais sabia além de que Asdrúbal deveria, naquela altura, ter cruzado os Alpes, e Asdrúbal, que já se encontrava na Itália, não sabia nada além de que Aníbal estava em algum lugar ao sul. Os romanos, por outro lado, trabalhando com suas linhas interiores de comunicações e sistemas de suprimentos, achavam-se numa posição admirável para manter os dois inimigos separados e atacá-los um por vez com suas forças superiores.

Em Grumento, na Lucânia, os exércitos de Nero e Aníbal se enfrentaram pela primeira vez, algo notável pelo fato de que o cônsul romano, "imitando as artimanhas de seu inimigo", escondeu parte de suas tropas atrás de uma colina de modo a cair sobre a retaguarda cartaginesa no momento adequado do confronto. Era nessas horas que Aníbal sentia a necessidade de suas treinadas tropas púnicas e iberas e cavaleiros númidas, que nunca chegaram a ele de Cartago. Seu agrupamento, forças semitreinadas — superadas numericamente pelos romanos — não foram páreo para as disciplinadas legiões de Nero. Ainda mais, foi a utilização pelo cônsul do estilo tático próprio de Aníbal, embora desdenhado como "não romano" por Lívio,[36] que lhe assegurou a vitória. Aníbal perdeu, como nos é dito, nove mil homens, nove estandartes e seis elefantes. Ainda assim, não parece ter sido um combate decisivo, pois, ao invés de retroceder, Aníbal continuou sua marcha para o norte em direção a Canúsio, na Apúlia, e é significativo que Nero, enquanto o perseguia, era incapaz de impedir que ele se movimentasse quando e como lhe conviesse.

Batalha de Metauro

Ver artigo principal: Batalha de Metauro

A Batalha do Metauro, travada em 207 a.C., próximo ao rio Metauro, na região italiana das Marcas, foi uma batalha da Segunda Guerra Púnica, na qual o comandante cartaginês Asdrúbal, irmão de Aníbal, foi derrotado e morto pelos exércitos romanos combinados dos cônsules Marco Lívio (que posteriormente receberia o cognome de Salinator) e Caio Cláudio Nero.

Após Metauro

Com a morte de seu irmão, Aníbal perdera a última esperança de derrotar Roma. A cabeça decepada significava o fim do bravo empenho para colocar o maior poderio militar do Mediterrâneo de joelhos por meio de um ataque ao coração da terra romana. Pela primeira vez em doze anos, Aníbal tinha perdido a iniciativa na guerra. Retrocedeu para o Brútio (atual Calábria), região selvagem e montanhosa da qual havia retirado a maioria de seus recrutas nos últimos anos e onde ainda detinha os dois pequenos portos de Crotona e Lócris Epicefíria. A tentação de retornar a Cartago deve ter sido quase irresistível, pois Aníbal podia ver que a perda de Asdrúbal e seu exército significava que a guerra na Itália estava chegando ao fim. Sabia, também, que a península Ibérica provavelmente sairia do controle cartaginês, e que o golpe seguinte dos romanos após aquele seria a invasão da terra natal cartaginesa. Ao mesmo tempo, evidentemente concluiu que a sua presença na Itália, mesmo que enfraquecido e com seu exército praticamente ineficaz, restringiria muitas legiões e evitaria que os romanos concen-' trassem seu poder e sua frota em um ataque à própria Cartago. Deveria permanecer onde estava, representando uma permanente ameaça a Roma. A notícia da batalha do rio Metauro foi recebida com uma alegria que a cidade não havia conhecido em todos aqueles longos anos. Era, como observa o poeta Horácio, o primeiro dia, desde que Aníbal irrompera dos Alpes, em que a vitória sorria para o povo romano. Ambos os cônsules foram recebidos em triunfo, com maior aclamação merecidamente dada a Cláudio Nero do que a seu companheiro, pois estava claro que sua iniciativa e brilhante decisão — em desobediência a todas as regras e regulamentos — havia lhes proporcionado uma vitória de imensas consequências. A ameaça a Roma estava eliminada e já se tinha evidenciado que Aníbal, por si só, embora general inigualável, não possuía homens ou equipamento para colocar a cidade em perigo. Quatro legiões foram desmobilizadas e nenhuma outra ação realizada naquele ano, a não ser manter vigilância e guarda sobre o cartaginês em sua toca na Calábria. Filipe V da Macedônia, sentindo que a cortina descia sobre o grande empreendimento anibálico, acertou a paz com os etolianos, encerrando, assim, sua curta e trabalhosa aliança com o cartaginês.

O ano de 206 a.C. não viu maiores operações na Itália, e os dois cônsules, Quinto Metelo e Lúcio Filo, contentaram-se em manter Aníbal encurralado na Calábria. O centro principal da guerra encontrava-se agora na Hispânia, onde Cipião Africano continuava a demonstrar seu costumeiro brilhantismo, derrotando decisivamente o irmão mais novo de Aníbal, Magão, e Asdrúbal Gisgão em Bécula. Na guerra anterior, outros exércitos sob o comando de Hanão e Magão haviam sido vencidos e estava claro que a Hispânia inteira, todo aquele império cartaginês fundado por Amílcar, fugia do seu domínio. Isso ficou bastante evidente para os próprios iberos e celtiberos, que rapidamente se aliaram quase todos à causa romana. Para os que resistiram, assim como o poderoso chefe tribal Indíbilis, a reação romana foi rápida e sangrenta. Cidades fortificadas, como Áspata e Ilirúrgia, foram destruídas, tribos que haviam conspirado contra o pai e o tio de Cipião foram dizimadas, e Cástulo, a fortaleza onde se diz que Aníbal, muitos anos antes, encontrara uma esposa, rendeu-se às máquinas de sítio e espadas romanas.

As ações de Cipião Africano na Hispânia anteciparam a posterior história do Império Romano (que ele tanto ajudou a fundar) como "sendo misericordioso para com os derrotados, porém massacrando os revoltosos". Sua disciplina não foi aplicada somente às tribos selvagens da Hispânia, pois quando irrompeu um motim em uma de suas legiões, este foi esmagado com igual rigor, e seus líderes prontamente aniquilados. Em breve ficaria claro que, com a partida de Asdrúbal para a Itália a fim de se juntar ao seu irmão, a mão unificadora cartaginesa na Hispânia havia sido retirada. A perda do controle cartaginês sobre o país aconteceu ainda mais rapidamente do que sua imposição. Somente Gades (atual Cádis) permanecia como um último posto avançado do poder cartaginês e, antes do fim de 206 a.C., mesmo esse antigo posto de trocas dos povos púnicos preparava-se para dar as boas-vindas aos romanos. Embora isso tenha ocorrido muitos anos antes que todas as tribos da selvagem e montanhosa península Ibérica fossem pacificadas (um eufemismo para a espada), toda a Hispânia, com efeito, estava em mãos romanas. Após cerca de trinta anos, o domínio estabelecido pela família Barca chegara ao fim.

Ainda que Aníbal permanecesse na Itália por mais três anos e nunca fosse derrotado em solo italiano, agora se encontrava privado da base de onde havia partido para sua longa marcha. Além disso ele e seu país perderam a prata e a riqueza mineral da península Ibérica, e mesmo o material humano que abastecera sua gigantesca aventura. Descobriria que a estratégia usada contra os romanos quando ele havia decidido invadir o país seria voltada contra os cartagineses. Todo o tempo Cipião Africano percebera que privar o inimigo de sua fonte de poder era a melhor maneira de derrotá-lo, e tinha atingido seu primeiro objetivo com o sucesso na Hispânia. Ele agora se preparava para seu segundo objetivo — a África.

Lívio escreve que Cipião Africano "considerou a conquista da Hispânia algo insignificante comparado com tudo o que imaginava em suas magnânimas esperanças. Seus olhos já estavam sobre a África e a grande Cartago, e para a glória de tamanha guerra (…)".[36] Sua política não ficou sem oposição no Senado e está claro que havia dois partidos principais no debate: um pressionando pela paz primeiro na Itália e pela remoção de Aníbal; e o outro para que se levasse a guerra mar afora. Os fabianos, liderados pelo filho do velho ditador, eram a favor de uma política italiana — colocando sua própria casa em ordem antes de estender a guerra — enquanto Cipião Africano era pela expansão. Seu pai e seu tio haviam morrido na Espanha, e ele finalmente conseguira conquistá-la, mas olhando mais adiante considerava a conquista da África mediterrânea. A maioria do Senado foi contra ele. Naquele décimo terceiro ano da guerra, o país inteiro achava-se exausto, suas terras devastadas, seu poderio humano definhando, e cada cidadão e aliado cambaleava sob uma intolerável carga de impostos. A razão pela qual Cipião Africano conseguiu êxito em seu ambicioso plano foi que seu triunfante retorno a Roma, precedido por centenas de libras de prata e muitos nobres cativos como evidência de seu sucesso, obscureceu os argumentos de seus oponentes. Numa onda de entusiasmo popular ele foi eleito para um mandato consular para o ano de 205 a.C. Em todo caso, ele já havia começado a fazer sondagens na África, antecipando, assim, a reação dos oponentes.

Cipião propõe invadir a África

Alguns meses antes de seu retorno a Roma, confiante de que tudo estava terminado na Hispânia, Cipião Africano cruzara rumo à África para encontrar Sífax, o rei númida, com a intenção de trazê-lo a uma aliança com Roma contra Cartago. No porto de Cirta (Constantina), vizinho ao território cartaginês, Cipião Africano encontrou navios de guerra inimigos e ninguém menos que Asdrúbal Gisgão, o qual, junto com filho de Amílcar, Magão, havia recentemente travado combate com ele. Foi um estranho encontro (possivelmente engendrado pelo ardiloso rei númida), mas, uma vez que aconteceu em território neutro, não havia a possibilidade de qualquer demonstração de hostilidade entre os visitantes romanos e cartagineses.

Lívio escreve[36] que "para Sífax pareceu esplêndido — como certamente o era — que os generais dos dois povos mais ricos daquela época tivessem vindo no mesmo dia para pedirem sua paz e amizade". Ele convidou a ambos para jantar com ele, e "(...) na mesmíssima poltrona, assim disposto pelo rei, Cipião Africano e Asdrúbal se sentaram. Além disso, tais eram as galantes maneiras de Cipião Africano, sua esperteza inata em enfrentar cada situação, que com seu modo eloquente de se portar conquistou não apenas a Sífax, o bárbaro ignorante das maneiras romanas, mas também o seu mais amargo inimigo. Asdrúbal mostrou claramente que, ao encontrá-lo face a face, Cipião Africano] pareceu-lhe ainda mais admirável do que em suas atividades na guerra, e que ele não duvidava de que Sífax e seu reino deveriam em breve estar em poder dos romanos; tal era a habilidade daquele homem em converter indivíduos à sua causa". Logicamente, o fato é que o inteligente númida perceberia a direção em que o vento soprava no Mediterrâneo. "Então, Cipião Africano, após fazer um tratado com Sífax, navegou para fora da África (…)"

Durante aquele inverno, enquanto Cipião Africano era aclamado em Roma, o irmão de Aníbal, Magão, encontrava-se nas ilhas Baleares. Após realizar uma ousada, porém ineficaz, tentativa de capturar Nova Cartago, ele se desesperara com a situação na Hispânia. Deixara Gades e levara a frota cartaginesa, antes de mais nada, para Pitiússa (Ibiza), uma velha colónia cartaginesa, pretendendo recrutar soldados de infantaria e os famosos fundibulários baleárides entre os ilhéus. Mesmo nessa tardia etapa da guerra, fica claro que Cartago não havia perdido a esperança de vencê-la na Itália. Magão havia recebido ordens de "contratar o maior número possível de jovens gauleses e lígures para se juntarem a Aníbal e não permitir que uma guerra, que havia começado com o maior vigor e ainda maior boa sorte, declinasse agora". O Senado em Cartago havia lhe enviado uma grande soma de dinheiro para esse propósito. A frota de Magão também foi abastecida com ouro e prata de Gades, onde saqueara os templos e o tesouro antes de partir. Havia pilhado até mesmo o famoso e imensamente rico templo de Melcarte, durante séculos, o último onde os marinheiros fenícios faziam as suas oferendas antes de suas jornadas pelo grande oceano. Um cartaginês, descendente dos fenícios fundadores daquele relicário sagrado há cerca de novecentos anos, profanando-o agora, evidenciava o desespero que Magão e seus homens devem ter sentido com a perda da Espanha. Durante aquele inverno, embora repelido em Mallorca, Magão conseguiu recrutar cerca de doze mil soldados e dois mil cavaleiros em Minorca. Com essas tropas faria um ataque na costa lígure na primavera de 205 a.C., no decorrer do qual capturou as importantes cidades de Savo (Savona) e Genoa (Génova).

Naquele estágio de complexidade da guerra anibálica, que envolvia todo o Mediterrâneo central e ocidental e todas as terras adjacentes, é relativamente fácil ver o objetivo de Cipião Africano|Cipião. Seu colega para o ano era Públio Lícino Crasso, a quem foi confiada a guarda sobre o Brútio e Aníbal, enquanto Cipião Africano ficou na província da Sicília com a previsão de que dali poderia cruzar para a África "se ele julgasse vantajoso para o Estado". Este, a despeito da objeção do partido fabiano a mais envolvimentos além-mar, era um claro convite para que levasse a guerra até as portas de Cartago, pois toda a Sicília estava agora tranquila e subserviente a Roma. Ao mesmo tempo, seus oponentes no Senado fizeram tudo o que podiam para evitar que ele agisse — negando-lhe o direito de levar para além-mar quaisquer legiões da própria Itália por causa da ameaça do Brútio ("Onde está Aníbal, ali está o centro da guerra"). Foi deixado para o próprio arbítrio de Cipião Africano se ele levaria a guerra à África do Norte. Se fracassasse, seria considerado culpado de exceder-se em suas instruções.

Enquanto é possível discenir os objetivos romanos naquela altura do longo conflito, é extremamente difícil entender os dos cartagineses. Não existem registros, e Lívio não poderia conhecê-los; Políbio — que bem pode tê-lo feito e é mais confiável como historiador — não pode ajudar, pois essa seção de sua história está perdida. As instruções para Magão avançar até a costa lígure após alistar um pequeno núcleo de um exército nas ilhas Baleares, e então seguir até a Gália Cisalpina alistando mais gauleses, como o fizera Asdrúbal, sugerem que algum tipo de operação duplicada estaria planejada — um voo do norte para juntar-se a Aníbal surgindo do sul. Por outro lado, embora pobres como eram as comunicações naqueles dias, seria surpreendente se o Senado cartaginês não tivesse evidências suficientes de como essa estratégia havia fracassado com Asdrúbal. Eles certamente também devem ter sabido (já que havia espiões cartagineses em toda parte) que a Etrúria estava descontente e potencialmente pronta para uma rebelião contra seus antigos inimigos, os romanos. Se o irmão de Aníbal, Magão, pudesse levantar tropas suficientes entre os lígures e os gauleses cisalpinos para aumentar essa revolta etrusca — e então consolidá-la reunindo-se com os etruscos — Roma, com certeza, estaria ameaçada como nunca desde que Aníbal havia cruzado os Alpes. Em tal momento, Aníbal, deslocando-se do Brútio, revelaria o poder de sua estratégia contra os exércitos que o vigiavam no sul.

Cartago e seus governantes (e eles, como Roma, sempre possuíam dois partidos conflitantes, um demandando a paz negociada e o outro a guerra) não falharam a Aníbal ou a Magão mesmo nessa hora tardia. No decorrer daquele ano de 205 a.C., dois grandes comboios foram despachados da África do Norte para a Itália, um destinado a Magão e outro a Aníbal. Era uma evidência da capacidade de construção naval de Cartago que, mesmo depois da sua humilhação desde a Primeira Guerra Púnica, ainda podia enviar frotas para os mares. O comboio designado para reforçar Aníbal no sul jamais chegaria até ele: oitenta navios cartagineses foram capturados naquele verão quando navegavam através dos tranquilos mares da Sardenha. Uma vez mais os romanos mostravam sua superioridade naval e demonstravam o quanto eles compreendiam bem a importância do poderio naval. O comboio para Magão, contudo, alcançou-o e trouxe o reforço de vinte e cinco navios de guerra, seis mil homens de infantaria, oitocentos de cavalaria e sete elefantes. Ele também recebeu uma soma adicional de dinheiro para comprar os serviços de tropas mercenárias.

Enquanto seu irmão reunia tropas no norte, Aníbal continuava retido e inativo no Brútio e pouco tomou parte nessa frente, exceto por esparsas pilhagens em território romano. A qualidade dos homens de Aníbal agora era tal que é duvidoso que pudesse ter apresentado um exército capaz de um combate maior. Prova disso pode ser vista nas circunstâncias sob as quais ele perdera Lócris Epicefíria, um de seus dois únicos portos (e de longe o melhor), para um ataque marítimo lançado por Cipião Africano de sua base na Sicília. Embora Lócris estivesse tecnicamente fora de sua esfera de comando, Cipião Africano percebeu que seu companheiro cônsul ao norte não poderia nunca abrir caminho através do Brútio para capturar a cidade, e então sabiamente agiu por seu próprio julgamento. Três mil homens foram despachados do Régio sob o comando de um dos oficiais de Cipião Africano, Quinto Plemínio, para atacarem Lócris por terra, ao mesmo tempo que — da maneira usual — um grupo de dissidentes dentro da cidade se preparava para traí-la. O pequeno porto de Lócris ficava protegido entre duas elevações, ambas defendidas por cidadelas. Os romanos conseguiram tomar uma delas, enquanto os cartagineses recuavam para dentro da outra. Ao ouvir as notícias, Aníbal imediatamente marchou do norte, mandando antes dizer aos cartagineses que saíssem com ferocidade assim que vissem seu exército se aproximando. Cipião Africano, prevendo que Aníbal se deslocaria para o resgate da cidade, veio por mar de Messina na Sicília e desembarcou tropas, que esperaram na cidade até que o exército cartaginês fosse avistado. Ao invés de ser recebido pela guarnição cartaginesa, Aníbal encontrou uma frota romana no porto, tropas revigoradas e prontas para a batalha. Sua confiança em Lócris foi frustrada, e suas tropas inexperientes foram batidas em um primeiro confronto. Nada mais lhe restava a não ser retroceder.

Havia perdido Lócris Epicefíria, e agora o único porto que lhe restava era Crotona. Nos dois anos restantes de Aníbal na Itália, essa antiga cidade grega tornou-se sua principal base. Outrora lar do filósofo Pitágoras e do famoso atleta Milo (seis vezes vencedor da luta romana nos jogos olímpicos), Crotona era agora pouco mais do que uma cidade provincial sem importância, com uma pequeno ancoradouro. Sua mais famosa atração era o grande templo da deusa Hera, conhecido como Hera Lacínia por causa do promontório onde se localizava. Por séculos aquele havia sido um dos principais pontos de referência para marinheiros quando se aproximavam da Itália vindos da Grécia, ou quando partiam do sul do golfo de Taranto rumo às ilhas Jónicas. Ali, no meio dos ex-votos de marinheiros, Aníbal mais tarde erigiria a grande placa de bronze (mencionada por Políbio) na qual deixara gravado, em púnico e em grego, a força de seu exército ao cruzar os Alpes e suas ações durante os quinze anos que passou na Itália.

Foi em Lócris que Aníbal e Cipião Africano encontraram-se pela primeira vez como comandantes. Muitos curiosamente, era com os contingentes de sobreviventes ao desastre romano em Canas (Cipião era um deles) que Cipião Africano agora começava a preparar seu ataque à África. Na Sicília, que ele pretendia utilizar como sua base de invasão, o excelente porto de Lilibeu (Marsala) no oeste era o mais próximo ponto de partida para a região de Cartago. As duas legiões na província tinham sido formadas a partir daqueles desacreditados soldados de Canas, mandados para ali em desgraça após sua derrota, e como a facção antiCipião do Senado que se opunha a Cipião Africano sem dúvida pensou, iriam mostrar-se inadequados para qualquer projeto ambicioso que Cipião Africano arquitetasse. Contudo, aqueles legionários, reforçados pelos veteranos de Marcelo vitoriosos em Siracusa, ainda se condoíam por sua humilhação e não queriam outra coisa senão esquecer o passado e levar a guerra ao campo inimigo. Cipião Africano, que sofrera com eles, compreendia seus sentimentos e era o homem certo para liderá-los. Mais do que isso, apelando ao desejo de vingança de seus antigos inimigos, Cipião Africano excitou a ajuda voluntária de várias comunidades da Itália, muitas das quais, tais como os etruscos, sem dúvida ávidas para provarem a Roma sua lealdade, agora que parecia claro que a causa cartaginesa estava arruinada.

Lívio relaciona os lugares e detalhes onde o auxílio espontâneo foi prestado ao jovem e ambicioso cônsul quando se preparava para levar a guerra ao território inimigo: "Primeiro, as comunidades etruscas disseram que ajudariam o cônsul, cada qual segundo os seus recursos. Os homens de Cere prometeram alimento para as tropas e suprimentos de todo tipo; os homens de Populônia, ferro; os Tarquínios, linho para as velas; Volaterras, o equipamento do interior dos navios e também grãos (…)".[36] Arécio forneceu três mil escudos e um igual número de elmos; cinquenta mil azagaias, arpões curtos e lanças; também machados, pás, foices, cestos e moinhos manuais suficientes para equipar quarenta navios de guerra; cento e vinte mil sacas de trigo, e pagamento suplementar para suboficiais e remadores. Uma grande quantidade de grãos veio de Perúgia, Clúsio e Ruselas, assim como madeira de pinho para a construção naval. A Úmbria e o distrito Sabino forneceram soldados, enquanto os marsos, pelígnos e marrucinos ofereceram-se voluntariamente em grande número para a frota. A cidade de Caméria enviou uma coorte de seiscentos homens totalmente armados. Vinte quinquerremes e dez quadrirremes, prontos e equipados, foram lançados ao mar "no quadragésimo quinto dia após a madeira ter sido trazida das florestas".

Na primavera de 204 a.C., Cipião Africano embarcou em Lilibeu com trinta mil homens em quatrocentos transportes escoltados por quarenta navios de guerra. Não mais cônsul, mas procônsul com comando sobre a Sicília, Cipião Africano levava a vingança da República Romana para dentro da África.

A invasão de Cipião e a estadia de Aníbal na Itália

Durante seu último ano no continente europeu, Aníbal fora capaz de fazer pouco mais do que assegurar que as legiões romanas permanecessem na Itália. Nada além do medo ao próprio Aníbal retinha tantos milhares de homens, pois seu exército, naquele momento, era tão paliativo que, em quaisquer outras mãos, não representaria qualquer ameaça a Roma. O foco de interesse da guerra fora dirigido, primeiramente, para a Espanha e, então, depois que a brilhante estratégia de Cipião Africano desbaratou os cartagineses, voltara-se para a África. Quando se tornou patente que a própria Cartago em breve seria objeüvo de ataques e que o poder cartaginês enfraquecia por toda parte, as várias tribos habitantes da linha costeira do Mediterrâneo no continente africano começaram a se preparar para romper com sua fidelidade aos seus antigos senhores.

Quando Cipião Africano deixou a África, após seu encontro com o rei númida Sífax, pôde ter o gosto de saber que atingira o seu objetivo e que Sífax era agora um aliado de Roma. Cipião Africano sabia, através da guerra na Hispânia e Itália, que uma temível e eficiente parte dos exércitos cartagineses era representada pelos cavaleiros númidas. Esperava poder contar com essa aliança para dar ao seu próprio exército invasor a cavalaria na qual os romanos eram sempre deficientes. Mesmo antes de deixar a Sicília, entretanto, ouviu de Sífax que não poderia contar com qualquer apoio dele e, com certeza, Sífax cautelosamente o advertiu para que não invadisse ou ele encontraria o desastre. O que aconteceu foi que, durante a ausência de Cipião Africano em Roma e na Sicília, Asdrúbal Gisgão havia reconquistado a fidelidade de Sífax a Cartago, oferecendo-lhe em casamento sua bela filha Sofonisba. O rei númida, "enquanto sob a influência do primeiro êxtase do amor", abandonou sua aliança romana e tornou-se um fiel servo de Cartago. Masinissa, outro poderoso rei númida e inimigo mortal de Sífax, após longa luta pelo trono do reino númida, foi derrotado por Sífax e forçado a fugir. Somente uma coisa era certa quando Cipião Africano partiu com sua força de invasão para o norte da África: havia perdido o apoio de Sífax, com o qual contava, mas tão grande era o ódio entre o rei e Masinissa, que este último bem poderia vir a ajudar os romanos, se isso significasse vingança sobre o homem que o havia humilhado.

Na primavera de 204 a.C., as tropas de Cipião Africano desembarcaram no cabo Farina (o promontório de Apoio), cabo que formava o braço ocidental da grande baía na qual se situava Cartago. Bem perto, ficava a cidade de Útica, que Cipião Africano esperava utilizar como sua principal base e porto para a campanha africana. A chegada da frota e do exécito romano tão perto de sua cidade causou tal pânico entre os cartagineses que pode ter excedido até mesmo o estado ao qual Roma foi lançada pelas primeiras façanhas de Aníbal. Ao contrário dos romanos, eles não tinham um grande exército fixo, sempre dependendo demasiadamente de mercenários; não possuíam aliados confiáveis, e nenhum grande general para conduzi-los, com Aníbal tão longe, do outro lado do mar, no Brútio. Suspeita-se que mesmo neste início da guerra africana devem ter havido vozes pedindo para chamar de voltar o filho de Amílcar. Os cartagineses só conheciam a reputação dos feitos de Aníbal na Europa, mas devem ter se lembrado de como seu pai os havia salvo antes. Nesse meio tempo, Asdrúbal Gisgão começou a levantar um exército (de qualidade medíocre), enquanto Sífax, ainda enamorado de sua noiva e consequentemente de Cartago, preparava-se para auxiliar com sua cavalaria. Como era de se esperar, seu arquiinimigo, Masinissa, surgiu no acampamento de Cipião Africano, prometendo a ajuda de seus próprios cavaleiros númidas. Diz-se que o ódio entre os dois reis norte-africanos havia aumentado ainda mais porque Masinissa também tinha sido pretendente da filha de Asdrúbal Gisgão, Sofonisba, e, citando Lívio, "os númidas ultrapassam todos os outros povos bárbaros na violência de seu apetite".[36] Parece que o sexo, assim como o política, desempenhou seu papel na guerra.

Tendo atingido seu objetivo, a invasão do território cartaginês com exército e frota adequados, era de se esperar que Cipião Africano agisse com o mesmo ímpeto e determinação que lhe havia rendido Nova Cartago e depois toda a península Ibérica. Em vez disso, parece ter hesitado, quase como se tivesse sido intimidado pela terra estranha e pela vastidão da África do Norte. Ao contrário de Aníbal em sua travessia dos Alpes, Cipião Africano conseguira transportar equipamentos de sítio em seus navios desde a Sicília, e tinha muitos engenheiros treinados para sitiar entre os homens que auxiliaram na captura de Siracusa. Mas Cartago, em sua cintilante baía, era indubitavelmente muito mais assombrosa, e talvez ele não soubesse do miserável estado moral no interior da cidade e desconhecesse suas inadequadas forças. Parece nunca ter considerado a hipótese de atacá-la, mas, em lugar disso, iniciou o sítio a Útica. Também é possível que Cipião Africano estivesse tomado pela lembrança do famoso Régulo que, após um sucesso inicial na mesma região durante a Primeira Guerra Púnica, tinha sido decisivamente derrotado e morrido sob tortura nas mãos dos cartagineses. Fora advertido sobre o destino de Régulo pelos fabianos no Senado e ele sabia quantos dos seus inimigos em Roma ficariam felizes em ver os seus planos desmoronarem.

De qualquer modo, Cipião Africano decidiu assegurar sua base em Útica antes de considerar um ataque à capital. Mesmo nesse objetivo, entretanto, não foi bem-sucedido: por aproximadamente quarenta dias, as torres e muralhas de Útica foram atacadas por terra e mar, e ainda assim os defensores resistiram. Então, as forças de resgate, comandadas por Asdrúbal Gisgão e Sífax, chegaram — um exército maior do que o de Cipião Africano e com uma formidável quantia de cavaleiros.[18] Obrigado a levantar o sítio, Cipião Africano retrocedeu suas forças para um acampamento no cabo, onde montou seu quartel-general de inverno. A campanha do primeiro ano em terra inimiga não fora um sucesso e ele ainda estava retido na cabeça-de-praia onde desembarcara tão confiante naquele ano.

Enquanto Cipião Africano continuava engajado na África, os dois cônsules para o ano estavam na Itália; um, Cornélio Cetego, vigiando a Etrúria e o norte, no caso de Magão fazer algum movimento, e o outro, Semprônio Tuditamo, guardando o Brútio e Aníbal. Semprônio, ambicioso e ávido para tentar uma definição com o cartaginês, marchou para ameaçar a última fortificação de Aníbal, a cidade de Crotona. No primeiro e confuso embate, enquanto ambos os exércitos pareciam estar em marcha, os romanos foram surrados, perdendo cerca de mil e duzentos homens. Não desejando correr mais nenhum risco, Semprônio convocou o procônsul Públio Lícino com suas duas legiões. Havia, então, quatro legiões romanas e quatro aliadas movendo-se sobre Crotona, e Aníbal, cujas forças naquele momento deveriam consistir em apenas metade dessa quantia, preparou-se para responder à batalha, pela simples razão de que não poderia, naquela altura, abandonar a cidade e o porto. Com uma cavalaria númida insuficiente e praticamente nenhum soldado de infantaria treinado da Hispânia ou de Cartago, seu inábil exército foi forçado a retroceder para dentro dos muros da cidade, perdendo cerca de quatro mil homens.[36] Talvez o cônsul pudesse alegar que fora ele o primeiro a ter expulsado Aníbal do campo de batalha durante todos os seus anos na Itália, mas seu objetivo, Crotona, permanecia nas mãos de Aníbal, que continuava atrás dos portões fechados. Ele só poderia esperar.

Tivesse Aníbal sido capaz de se retirar naquele ano com quaisquer exércitos e navios que pudesse angariar e sua aparição na costa da África teria mudado o curso da guerra. O Senado e o povo de Cartago teriam seu ânimo revigorado; apenas seu nome teria reanimado os homens das tribos e cavaleiros em seus milhares; o moral romano teria desmoronado. Cipião Africano havia sido malsucedido em Útica e feito pouco mais do que assolar o campo ao redor; a chegada de Aníbal pelo mar por detrás dele teria colocado os romanos em tal desvantagem que eles poderiam ter sido forçados a se evadir. Porém, nenhuma palavra chegou convocando Aníbal de volta à cidade.

O papel de Magão, naquela fase da guerra, não está bem documentado, mas, nas informações disponíveis, consta que Magão não pretendia fazer uma conjunção com Aníbal, e, sim, desviar a atenção romana para o norte, evitando o deslocamento de uma força de invasão romana para a África do Norte. Foi bem-sucedido no recrutamento de líderes para a sua causa, principalmente depois de mostrar como poderia dominar todo o golfo de Génova pela ocupação dos dois maiores portos e como estava a atividade de sua frota naquela região. Os gauleses cisalpinos, contudo, um tanto relutantes em se unirem a Asdrúbal quando ele descera pelos Alpes, estavam ainda menos desejosos de se juntar a uma causa que já viam como em declínio. Seus pais haviam brandido armas após Aníbal, esperando ver Roma destruída, mas apesar dos sucessos de Aníbal, haviam tombado por toda a Itália, e os poucos que permaneceram com ele continuavam encurralados, centenas de milhas distante, no selvagem Brútio. Os gauleses testemunharam o fracasso de Asdrúbal no rio Metauro, e aquele irmão caçula da família, Magão, dificilmente poderia persuadi-los a enfrentar a fúria de Roma. Eles também tinham visto os benefícios das áreas de agricultura possibilitados pelos romanos, e a guerra homérica de seus pais tornara-se menos atrativa.

No verão de 203 a.C., Magão parece ter cruzado a região do , assim concentrando a atenção das legiões romanas ao norte. Esperava evidentemente por um levante na Etrúria contra os romanos. Qualquer que losse a sua intenção, Magão engajara-se numa grande batalha cornos romanos em solo italiano em 203 a.C. Parece ter sido uma luta feroz, com perdas consideráveis de ambos os lados, mas com as forças cartaginesas levando a pior. Durante essa ação, o próprio Magão foi seriamente ferido e retirou-se com os outros sobreviventes para a Ligúria. Este seria o último grande combate na Itália entre cartagineses e romanos no decorrer da guerra. Em sua chegada à Ligúria, aguardavam por Magão instruções para que retornasse com seus navios e homens a Cartago. A cidade-mãe, ameaçada por Cipião Africano, estava agora na defensiva. A aventura italiana, para todos os efeitos, seria abandonada. Magão morreu, devido aos ferimentos, quando sua frota passava pela Sardenha — a ilha repleta de madeira e minerais, agora sob controle romano, mas, outrora, uma das maiores das muitas ilhas-colônia cartaginesas que haviam ameaçado Roma.

Durante o inverno de 204−203 a.C., enquanto Aníbal permanecia em Crotona e seu irmão Magão preparava-se para a ofensiva de primavera que o levaria à morte, Cipião estava ocupado na África do Norte. Fracassara na captura de Útica, e a abertura de sua campanha não obtivera o sucesso que ele devia ter esperado após sua experiência com os cartagineses na Hispânia, mas nunca deixou de trabalhar em sua estratégia geral — a derrota de Cartago com a incorporação, como derradeiro objetivo, do império norte-africano da cidade ao império de Roma. Nenhum homem pode reclamar para si maior crédito — ou culpa — pela fomentação do império romano do que Cipião Africano, aclamado no século XX pelo historiador militar britânico B. H. Lidell Hart como "maior do que Napoleão".

Percebendo que o númida Sífax possivelmente era mais importante do que Masinissa, comandando mais forças — forças das quais Cartago dependia bastante — Cipião decidiu tentar demovê-lo de sua aliança. Durante todo o inverno, enviados se deslocaram para lá e para cá entre o romano e o númida, com Cipião Africano fingindo ter uma autoridade que nunca possuíra — a de fazer um tratado de paz sem qualquer consulta a Roma, e Sífax sugerindo um fim para a guerra por meio de um acordo entre Cipião Africano e Aníbal em que um deveria deixar a África e outro a Itália. As negociações foram prolongadas, pois Cipião Africano podia facilmente pressentir que Sífax queria apenas os romanos fora do caminho para que pudesse finalmente destruir seu odiado rival Masinissa e tomar todo o seu reino. Quando os enviados romanos iam visitar os acampamentos de seus inimigos, eram frequentemente acompanhados por centuriões experientes, disfarçados como lacaios e servos, que aproveitavam a oportunidade, enquanto seus "senhores" se reuniam em conferências, para fazerem um cuidadoso estudo dos acampamentos e da disposição dos inimigos. Ao retornarem, relataram que a disciplina estava relaxada, o moral baixo e que os cartagineses estavam abrigados em cabanas de madeira, enquanto os númidas estavam em tendas de junco, muitas das quais nem mesmo ficavam no interior da paliçada do acampamento.

No início da primavera de 203 a.C., Cipião Africano estava preparado para sua ofensiva. Enviou uma mensagem para Sífax de que estava prestes a concluir um tratado, embora ainda sofresse alguma oposição — que esperava vencer — por parte de seus oficiais graduados. Isso significava que, no momento, deveria interromper as negociações. Sífax e Asdrúbal Gisgão entenderam isso como se, no devido tempo, Cipião Africano pudesse convencer seus companheiros do bom senso de um tratado, e enviaram uma resposta pela qual, da parte deles, desejavam muito aceitar os termos discutidos. Cipião Africano agora conhecia não apenas a disposição do inimigo, mas também sabia que seu moral estava baixo e que eles ansiavam pela paz. Todo o seu procedimento estava longe de ser conforme a velha tradição romana de boa-fé, que seus historiadores gostavam de contrapor, injustamente, à assim chamada "fé púnica". Com certeza, parecia que os cartagineses com frequência se comportavam mais escrupulosamente do que os romanos. A concepção de Aníbal sobre as honras no campo de batalha, por exemplo, sempre assegurou a prestação das honras devidas ao inimigo morto, enquanto Cláudio Nero, após sua vitória no rio Metauro, havia descido ao ponto de cortar a cabeça do irmão de Aníbal, e guardá-la, para então jogá-la nas linhas de Aníbal na calada da noite.

Cipião Africano, tendo induzido um sentimento de relaxamento da guarda entre seus inimigos, começou a se movimentar. Reiniciou o sítio de Útica por terra e mar, enviando sua frota — recém-lançada, após o inverno — para o bloqueio, enquanto as máquinas de guerra principais foram trazidas de seu acampamento para o ataque terrestre. Isso tudo apenas para desviar os cartagineses de sua verdadeira intenção, e possivelmente convencer Sífax e Asdrúbal Gisgão de que ele continuava a atuar numa guerra que não os ameaçava, enquanto esperava que a sua oposição romana fosse convencida de que um tratado de paz deveria ser conseguido. Sua esperta distração funcionou, e os cartagineses e númidas sentiram-se seguros de que ele não mais do que repetia suas táticas do ano anterior. Então Cipião Africano atacou.

Numa noite, os oficiais romanos começaram a deslocar seus homens do acampamento assim que o toque de clarim anunciando o cair da noite soou. Havia umas sete milhas entre eles e os acampamentos do inimigo, aonde chegaram por volta da meia-noite. O homem que era o braço direito de Cipião Africano, Lélio, foi designado junto com Massinissa e seus cavaleiros, para atacar o acampamento númida enquanto Cipião Africano atacava os cartagineses. Com as atenções dos líderes cartagineses e númidas concentradas sobre Utica, e relaxando em seus deveres esperando pelas demoradas negociações de paz, como demonstrava o seu despreparo, os acampamentos eram alvos vulneráveis. Os númidas de Massinissa não tiveram dificuldade para invadir o acampamento de Sífax e atear fogo às tendas de junco — eles próprios estavam acostumados a viver nelas e sabiam com que facilidade queimavam. O vento soprava, possivelmente um meridional, naquela época do ano, e logo todo o acampamento ficou em chamas. Quando os sonolentos ocupantes das tendas saíram correndo para fora, pensando tratar-se de não mais que um acidente, eram abatidos pelos cavaleiros de Masinissa. Alertados pelas sentinelas sobre o holocausto no acampamento vizinho, os cartagineses começaram a sair de suas cabanas de madeira — apenas como espectadores desarmados. Assim que o fizeram, os romanos de Cipião Africano (muitos ainda com a lembrança de Canas) caíram sobre eles. O acampamento cartaginês também foi totalmente incendiado, e os cartagineses foram mortos aos milhares.

Com este duplo golpe, tão brilhante, ainda que traiçoeiramente executado, Cipião Africano destruíra as forças combinadas do exército cartaginês. Asdrúbal Gisgão e Sífax conseguiram escapar levando apenas uns poucos milhares de homens com eles. Asdrúbal, como comandante geral, tinha sido culpado de grave negligência ao se deixar enganar por um sentimento de segurança. Suas experiências em combates contra Cipião Africano na Hispânia deveriam tê-lo alertado para o fato de que o romano não somente era um grande estrategista, mas também um astuto e duro comandante em campo. Ele, então, prosseguiu com seu ataque noturno, perseguindo Asdrúbal Gisgão e os remanescentes de'seu exército, expulsando-o da cidade em que haviam se refugiado e devastando vários povoados locais. Houve medo e confusão em Cartago mas, apesar dos clamores do partido da paz, tomaram a resolução de que a guerra prosseguisse. Imensa riqueza de Cartago foi empregada no envio a Asdrúbal e Sífax do dinheiro necessário para a formação de outro exército. A chegada de quatro mil celtiberos, recrutados na Hispânia, proporcionou um núcleo de combate para a nova força, e em um curto espaço de tempo, Asdrúbal e Sífax haviam levantado um exército de cerca de trinta mil homens que eles reuniram em uma região conhecida como Grandes Planícies no rio Bagradas. Cipião Africano não perdeu tempo e, deixando uma força de sítio ao redor de Útica, marchou rapidamente ao encontro do inimigo. Quando se bateu contra eles, destruiu esse segundo exército em uma magnífica batalha. Mais uma vez, Asdrúbal e Sífax escaparam na confusão geral, o primeiro para Cartago e o outro para Cirta.

Cipião Africano, mais do que Aníbal, nunca relaxava após um sucesso, mas procurava consolidar sua vantagem. Avançou sobre um número de cidades da África do Norte, algumas das quais sucumbiram por temor e outras por antigas pendências com Cartago. Depois, Cipião começou o sítio a Útica — dessa vez para valer — com metade de seu exército, enviando a outra metade comandada por Lélio e Massinissa, ao longo da costa norte-africana até a Numídia. Masinissa estava ansiso para acertar as contas novamente com seu inimigo Sífax, tanto para capturar para si Sofonisba quanto para retomar Cirta que, embora fosse agora a capital de Sífax, já havia pertencido ao pai de Masinissa. Numa batalha duramente disputada, ele e sua cavalaria, mais os vigorosos legionários romanos, não apenas destroçaram o exército de Sífax como ainda o capturaram vivo. O triunfo de Masinissa foi completo, pois ele não só reconquistou Cirta mas também, demonstrando um senso de vingança verdadeiramente norte-africano, tomou a esposa de seu inimigo, Sofonisba, para si. Cipião Africano, mais tarde, repreendeu-o por isso, uma vez que Sífax e sua esposa eram prisioneiros de Roma, e para Roma deveriam ir. Sofonisba, para não cair prisioneira e abrilhantar um triunfo romano, envenenou-se. A história dessa jovem da nobreza cartaginesa, enredada pelas guerras e políticas, é curiosa e movimentada. Guardando algumas semelhanças com as histórias de Dido e Cleópatra, essa é outra das tragédias norte-africanas.

Os sucessivos desastres na primavera e começo do verão de 203 a.C. haviam alarmado muito toda Cartago. O mesmo Hanão que havia comandado a cavalaria pesada de Aníbal em Canas foi totalmente encarregado da defesa, e emissários cartagineses foram enviados a Roma para tentarem negociar os termos da paz. Como derradeiro golpe na sorte cartaginesa, uma tentativa de livrar Útica falhou. Todos esses desastres sucessivos geraram um clamor em todos os níveis, desde o conselho de Birsa até os lares, oficinas e armazéns da cidade — "Chamem Aníbal de volta!". Infelizmente, como os eventos demonstrariam, eles o haviam feito tarde demais.

A despeito da superioridade naval de Roma, três frotas cartaginesas conseguiram cruzar o Mediterrâneo entre a Itália e a África do Norte durante aquele ano. Uma conduzia o moribundo Magão de volta da costa lígure com sua força mista de tropas baleárides, lígures e gaulesas; a segunda foi despachada de Cartago para evacuar Aníbal; e a terceira foi essa mesma frota, aumentada pelos navios que Aníbal possuía em Crotona, trazendo-o de volta para defender Cartago em seu momento de necessidade. O mar é vasto, e nos dias de comunicações primitivas era bastante difícil para os romanos vigiar todas as rotas de navegação. Séculos mais tarde, até mesmo Nelson, que procurava avidamente pela frota de Napoleão, fracassou em avistá-lo enquanto ele navegava triunfantemente em direção ao Egito.

A frota de Aníbal, inadequada para suas necessidades, e o exército que finalmente trouxe consigo de volta para a África provavelmente somava não mais do que quinze mil homens (as estimativas se situam entre doze mil e vinte e quatro mil). O exército da Itália era um estranho composto. Deviam existir poucos dos veteranos que cruzaram os Alpes com ele cerca de quinze anos atrás. Os brútios, gauleses e desertores romanos que então compunham a maior parte de suas tropas claramente não eram da mesma qualidade, mas ainda seguiam de bom grado o mesmo homem, seu general cartaginês de um só olho. É evidente que não possuía muitos meios de transporte, pelo fato de que não pôde levar de volta os cavalos que o ajudaram em tantas de suas vitórias e de que ele tanto necessitaria no ano seguinte. Todos tiveram de ser sacrificados para que não ficassem para os romanos.

No outono de 203 a.C., Aníbal viu pela última vez o pequeno porto de Crotona e, além da velha cidade, as escarpadas elevações da cordilheira de Sila, cobertas de árvores, uma paisagem de lobo selvagem. Durante os poucos anos antes de partir, teve que fazer daquela região seu lar, mas antes já havia percorrido toda a Itália; do vale do Pó, no extremo norte, à sorridente Etrúria, até a costa oeste e a baía de Nápoles, onde as cidades gregas estavam incrustadas, e daí muitas vezes até as mais selvagens praias do Adriático. Ele conhecia a terra e seus povos como poucos italianos jamais conheceriam: cidades e povoados, as carrancudas muralhas de Roma — as quais nunca havia penetrado — planícies quentes, como Canas, vales domesticados, a indolente Cápua, camponeses e carvoeiros, rudes montanheses e disciplinados romanos — todo um mundo que ele quase havia feito seu. Agora, ele estava indo embora, para uma cidade da qual ele mal podia lembrar-se. Ainda assim, era por Cartago que havia lutado por tanto tempo e sofrido tanto — por Cartago e por um juramento feito por um menino diante de um altar enevoado.

Conclusão da Segunda Guerra Púnica (203–201 a.C.)

O retorno de Aníbal

No outono de 203 a.C., antes de Aníbal deixar a Itália, os termos de um tratado proposto por Cipião aos cartagineses já haviam sido aceitos por eles e enviados a Roma para discussão. Em vista da longa amargura da guerra, e da desolação que causaram a grandes regiões da Itália, foram moderados. Primeiramente, todas as forças cartaginesas deveriam deixar a Itália, e a Hispânia deveria ser abandonada. Todos os desertores, escravos fugitivos e prisioneiros de guerra deveriam ser enviados de volta a Roma. Todos os navios de guerra cartagineses, exceto vinte, deveriam ser entregues. Uma quantidade muito grande de trigo e cevada seria fornecida para alimentar as tropas romanas e, finalmente, uma pesada indenização seria paga. Não é surpresa que Cartago aceitasse tais termos, que eram favoráveis se comparados aos da Primeira Guerra Púnica, e um armistício fosse concluído, restando uma ratificação do tratado por parte de Roma.

Cipião também enviou Massinissa para Roma em companhia de Lélio, o primeiro para obter o reconhecimento de seu reinado númida e o outro, que conhecia as ideias de Cipião Africano, para aumentar os termos propostos e agir como porta-voz dos interesses de Cipião no tratado. É significativo que Masinissa fosse a Roma para a confirmação de seu reinado. No passado, Cartago havia sido o centro natural de autoridade para todos os reis locais e suas tribos. A ação de Cipião Africano já havia garantido o domínio de Roma sobre a África do Norte. Mais ainda, ele presenteava seus inimigos fabianos com um fait accompli, e tornava Roma responsável pelos assuntos norte-africanos.

No mesmo ano em que Aníbal deixou a Itália, seu velho e honorável oponente Quinto Fábio Máximo faleceu, o homem que havia feito mais do que qualquer outro para ensinar aos romanos que o único modo de desgastar — e finalmente derrotar — tamanho génio militar era à maneira do "Protelador". Os romanos, exceto em umas poucas desastrosas ocasiões, haviam seguido os seus preceitos até manter Aníbal confinado na selvagem terra do sul, e, por fim, em uma estreita área ao redor de Crotona. A notícia de que Aníbal havia finalmente deixado sua terra naturalmente trouxe regozijo a Roma e uma efusão de esperança, mas ainda persistia uma grande ansiedade, como relata Lívio:

Esse relato, ao mesmo tempo que revela o grande pavor que Aníbal ainda infligia aos romanos, engana-se na descrição de seu exército. Lívio, ou suas fontes, fala do exército que marchou pelos Alpes, e que há muito tinha desaparecido.[36] Aníbal agora tinha sob seu comando a esfarrapada e mista força que ocupara Crotona durante os poucos anos passa dos. Todavia, sua chegada à África, trazendo qualquer exército que fosse, teve tanto efeito sobre o moral cartaginês que o partido bárcida começou quase imediatamente a buscar um recomeço da guerra.

Aníbal desembarcou em Léptis, perto de Adrumeto, onde montou acampamento para o inverno e começou a reorganizar suas forças e recrutar mais soldados e cavaleiros. Ali foi reforçado pelos remanescentes do exército de Magão e soube que seu irmão caçula estava morto. Deve haver pouca dúvida de que Aníbal tivesse aceitado os termos de paz de Cipião como a melhor coisa para Cartago, muito embora pouco soubesse das facções políticas e intrigas da cidade. Porém, era astuto demais para não ver que a situação geral cartaginesa era sem esperança, em vista da perda da Hispânia, do crescente poder de Roma por mar e terra e do poderio humano nativo que abastecia suas legiões. Havia derrotado os romanos muitas vezes em batalha, é verdade, mas sabia que os romanos eram vigorosos e bravos soldados e que eles já estavam — perigosamente — começando a aprender suas táticas, adotando métodos mais flexíveis no campo de batalha. Em seus primeiros anos na Itália, tirara proveito dos desatualizados sistemas por meio dos quais os cônsules eram automaticamente encarregados das legiões e, uma vez que eles eram mudados a cada ano, nunca tinham tempo para aprender a perícia profissional ou adaptar suas táticas. Ele também tinha sido capaz de fazer uso de conhecidas divisões e diferenças de temperamento entre dois cônsules. Mas viu claramente no surgimento de Cipião a sombra do futuro, onde outros generais;, à sua própria maneira surgiriam — homens totalmente dedicados à guerra, aprendendo pela experiência em campo de batalha e familiarizando-se não somente com a natureza do terreno de batalha, mas com a qualidade e caráter racial de seus adversários. Seja lá o que Aníbal possa ter pensado sobre aceitar as condições de paz, a facção de guerra de Cartago, fazendo uso de seu nome e fama, havia agora assumido o controle.

Recomeça a guerra

No inverno de 203 a.C., um comboio de provisões da Sicília destinado às forças de Cipião Africano foi colhido numa tempestade e encalhou na região de Cartago, e navios de guerra cartagineses foram enviados para capturá-lo e trazer as provisões para a cidade. Isso era totalmente contrário à trégua, e Cipião Africano despachou enviados por mar para registrar um protesto. Em sua viagem de volta, os navios transportando os enviados foram traiçoeiramente atacados por trirremes cartagineses, mandados para esperá-los e por pouco escaparam com vida. Cipião Africano acertadamente viu isso como uma declaração de que a trégua estava acabada e a guerra reiniciada. Aqui, certamente, se evidenciava a fé púnica, embora seja muito duvidoso que Aníbal, setenta milhas distante em Adrumeto, tivesse qualquer conhecimento disso. Foi uma ação tola, algo a que ele não era propenso.

Cipião Africano recomeçou a guerra e atacou todos os povoados da região ainda sob jurisdição de Cartago. Por todo o verão de 202 a.C., enquanto Aníbal, percebendo que uma batalha maior era agora inevitável, continuava a reunir e treinar mais recrutas para o seu exército, Cipião sitiava as cidades cartaginesas, não demonstrando qualquer piedade quando elas sucumbiam, e escravizando os habitantes. Estava determinado a mostrar aos cartagineses que aqueles que quebravam tratados colocavam-se fora das considerações normais da guerra. Também estava ciente de que o teste final ainda estava por vir, e que Cartago não poderia ser forçada a se render até que ele e Aníbal se enfrentassem no campo de batalha, estabelecendo conclusivamente o resultado da guerra. Masinissa, tendo retornado de Roma com a confirmação de seu reinado, estava longe, na Numídia, consolidando seu poder sobre o país; recebeu uma convocação urgente de Cipião Africano para arregimentar todos os homens que pudesse e reunir-se aos romanos.

Aníbal, então, recebeu ordens de Cartago para marchar e desafiar Cipião antes que fosse tarde demais. O conselho e a cidade estavam profundamente preocupados com a devastação de sua terra, que ocorria desenfreadamente, e com a perda de cidades e povoados pagadores de tributos: testemunhavam a destruição de terras férteis que por séculos haviam sustentado a grande cidade mercantil. Aníbal recusou-se a se apressar e respondeu que lutaria quando estivesse preparado. Tinha um bom motivo para tal resposta, uma vez que ainda aguardava reforços de sua cavalaria, ainda muito deficiente, e ele sabia suficientemente bem que grande parte de suas ações bem-sucedidas se devia aos númidas. Ele tentava suprir aquela deficiência com o treinamento de elefantes e, à época da batalha final, possuía cerca de oitenta deles em seu exército. Eram, contudo, animais novos, que nunca haviam estado em ação e, como os fatos mostraram, constituíam mais um risco do que um recurso. A verdade é que, muito embora os próprios romanos viessem a utilizar elefantes séculos mais tarde, essa já era uma arma de guerra obsoleta. Os elefantes haviam obtido sucesso no passado através do pavor que causavam quando soltos em grandes bandos sobre povos primitivos e fileiras indisciplinadas de infantaria. Mas os romanos na Itália já haviam tomado suas providências e descoberto que, quando atacados por chuvas dos formidáveis piíum, eles quase sempre se voltavam para trás e disparavam para dentro de seu próprio exército. Elefantes semitreinados, que eram tudo o que Aníbal tinha sido capaz de conseguir, iriam provar essa verdade na batalha crucial.

Alguns historiadores têm comentado que Aníbal cometeu um erro tático ao contar com eles, mas a verdade é que ele fora obrigado a fazê-lo em vista da falta de cavalaria. Ele, todavia, recebera no fim daquele verão alguns reforços úteis na forma de dois mil cavaleiros de um príncipe númida, Tiqueu, rival de Masinissa e que, sem dúvida, esperava fazer a Masinissa o que este havia feito a Sífax, e então tomar o reino para si próprio. Essas rivalidades e intrigas norte-africanas, ainda que difíceis de se decifrar depois de tanto tempo, não obstante desempenharam um grande papel na batalha que estava por decidir o destino do mundo ocidental. O exército que Aníbal finalmente conduziu para combater Cipião era ainda mais heterogéneo do que de costume: baleárides, lígures, brútios, gauleses, cartagineses, númidas, e (muito estranhamente nesse momento tardio) alguns macedônios enviados pelo rei Filipe que, talvez, por fim, tenha percebido que a derrota de Roma era importantíssima para a liberdade de seu próprio país.

Deixando Adrumeto, Aníbal marchou para oeste na direção de uma cidade chamada Zama, que provavelmente se identifica com a posterior colónia romana Zama Régia, noventa milhas a oeste de Adrumeto. Chegaram até ele relatos de que Cipião Africano incendiava vilarejos, destruindo colheitas e escravizando os habitantes de toda aquela fértil região da qual Cartago dependia para seus cereais e outros alimentos. Só pode ter sido tal necessidade imperiosa o que fez Aníbal marchar atrás de Cipião, pois aparentemente seria mais lógico que ele levasse seu exército na direção de Cartago e se interpusesse entre Cipião e a cidade. Mas a sistemática destruição de cidades e vilarejos por este último, e suas atividades no interior cartaginês, claramente impediam que a cidade pudesse alimentar um adicional de quarenta mil ou mais homens, junto com seus cavalos e elefantes, bem como as suas próprias e prolíferas massas. Logo, a principal causa para que a batalha tivesse lugar onde ocorreu surgiu de uma urgência de suprimentos para a capital. Cipião sabia o que estava fazendo, e havia deliberadamente atraído Aníbal para longe da cidade de modo a decidir o resultado da guerra numa região escolhida por ele próprio. É irónico que o grande cartaginês não conhecesse seu próprio país, nada tendo visto dele desde os nove anos de idade, ao passo que Cipião e os romanos, a essa altura, já estavam bem familiarizados com o terreno cartaginês. Mas Cipião não deixava de ter suas preocupações: seu exército, provavelmente um tanto menor que o de Aníbal, embora bem treinado e experiente no clima e condições da África do Norte, ainda carecia de uma arma de cavalaria. Ele aguardava desesperadamente a chegada de Masinissa e seus númidas, sem os quais dificilmente poderia engajar-se numa batalha maior — particularmente contra um adversário como Aníbal.

Ao alcançar Zama, Aníbal, como era bastante natural, enviou adiante espiões para tentarem descobrir a natureza e quantidade do exército romano: em particular, deve ter se preocupado em tentar descobrir quão forte era a cavalaria de Cipião Africano. Esses homens foram descobertos e levados perante o general romano, que os recebeu, mostrou-lhes todo o acampamento, e então libertou-os para que reportassem tudo ao seu chefe. Alguns historiadores têm colocado em dúvida a veracidade disso, mencionando entre outras coisas que a mesma história é contada por Heródoto sobre Xerxes I e os espiões gregos, anterior à grande invasão persa da Grécia. Não há nada propriamente improvável nisso, porém, e o fato é atestado por Políbio,[18] o que lhe dá uma certa autenticidade. Cipião Africano, sem dúvida, desejava deixar seu inimigo saber que ele estava supremamente confiante no resultado da batalha iminente. Havia outra coisa que aquele astuto romano deve ter desejado revelar a Aníbal: Masinissa e seus númidas não se encontravam no acampamento. Era isso, logicamente, o que Aníbal desejava descobrir mais do que tudo, e a notícia de que Cipião estava enfraquecido em sua cavalaria deve ter sido encorajadora. O que ele desconhecia, é claro, e Cipião indubitavelmente sabia muito bem, era que Masinissa e seus númidas encontravam-se a apenas dois dias de cavalgada.

Sem desconfiar que Masinissa se aproximava, e pensando que ele ainda se ocupava em estabelecer seu domínio um tanto precário sobre o reino númida, Aníbal possivelmente sentiu que estava numa posição de superioridade frente aos romanos. Aquele seria um bom momento, então, para tentar negociar e ver se ele poderia obter condições favoráveis para Cartago — termos similares àqueles que Cipião Africano havia dado previamente aos cartagineses porém, se possível, algo melhorados. Assim, enviou uma mensagem para Cipião solicitando-lhe um encontro pessoal para discutirem termos, com o que este concordou. À parte de qualquer outra coisa, deve ter existido considerável curiosidade de ambos os lados a respeito da natureza e mesmo da aparência do adversário. Os dois homens nunca haviam visto um ao outro antes, embora em três ocasiões, nos últimos anos, tivessem ficado próximos no campo de batalha. Primeiro, o jovem Cipião havia estado presente na batalha de Ticino, logo depois de Aníbal irromper na Itália (quando Cipião havia logrado salvar seu pai ferido do campo de batalha); depois, estivera em Canas e testemunhara toda a ira e a genialidade do cartaginês como tempestade contra as legiões romanas; por último, havia iniciado o bem-sucedido avanço contra o porto de Lócris Epicefíria no sul da Itália, quando frustrara as tentativas de Aníbal para recuperá-lo. Tivera três oportunidades, assim, de confrontar o grande inimigo de Roma, e em cada ocasião havia tido a perspicácia de observar exatamente como Aníbal reagia perante cada situação determinada. O cartaginês, por outro lado, nunca se conscientizara do penetrante par de olhos de um jovem a observá-lo nas proximidades. Era como se um velho mestre de xadrez estivesse para encontrar, em breve, um aluno que por anos estudara seus "lances", detectado suas fraquezas, decidindo implementar as jogadas do mestre. Aníbal, por sua vez, só conhecia por meio de relatos os triunfos do jovem na guerra ibérica, embora fosse suficientemente estrategista e tático para reconhecer como era brilhante aquele que capturara Nova Cartago e vencera vários combates contra homens tão capazes quanto seu falecido irmão Asdrúbal, seu falecido irmão Magão e Asdrúbal, o filho de Gisgão. Ele havia observado como os romanos estavam mudados, aprendendo a se mover sem o velho comando consular e adquirindo flexibilidade no campo de batalha, e estava provavelmente tão curioso quanto Cipião para encontrar seu oponente cara a cara.

Os relatos factícios, tanto de Políbio quanto de Lívio, compostos muitos anos após os eventos, devem ser considerados suspeitos, mas não deve restar dúvidas quanto ao resultado do encontro entre os comandantes — dois dos mais distintos soldados não só do mundo antigo, mas de todos os tempos. Aníbal, além da habilidade de falar púnico, vários dialetos ibéricos e gálicos, também sabia falar grego e latim fluentemente; Cipião Africano, além de falar latim, foi também educado no grego. Os dois homens bem poderiam ter escolhido tanto latim quanto grego como linguagem de conversação, mas (como muitos líderes modernos) eles preferiram fazer uso de seus intérpretes de modo a terem flexibilidade e tempo para elaborarem suas respostas. Se nós ignorarmos a retórica de Lívio, o conteúdo de seu encontro foi breve e direto. Aníbal ofereceu a Cipião Africano "a entrega de todas as terras outrora em disputa entre as duas potências, especialmente a Sardenha, Sicília e Hispânia", juntamente com um acordo segundo o qual Cartago nunca mais faria guerra contra Roma. Ele também ofereceu todas as ilhas "localizadas entre a península Itálica e a África", isto é, as ilhas Égadi ao largo da Sicília ocidental as ilha Lípara, lugares como Lampedusa, Linosa, Gozo e Malta — mas não incluiu as ilhas Baleares ocidentais, que haviam se mostrado tão úteis a Cartago. Ele não fez menção de indenizações, nem de controle sobre quase toda a frota, nem de retorno de prisioneiros e fugitivos romanos.

Cipião dificilmente se impressionaria com a oferta, e disse "se, antes de os romanos rumarem para a África, você tivesse se retirado da Itália, haveria esperança para suas proposições. Mas agora a situação está manifestadamente mudada (…) Nós estamos aqui e você foi relutantemente forçado a deixar a Itália]] (…)". Cipião Africano não poderia aceitar termos inferiores para a rendição cartaginesa àqueles que haviam sido aceitos por Cartago antes da recente traição do tratado. Nada mais havia para ser dito.

Cipião havia ganho um inestimável tempo com o seu encontro com Aníbal: sabia que Masinissa e seus cavaleiros númidas vinham cruzando o terreno rapidamente para estar ao seu lado quando o grande embate acontecesse. O retardamento havia propiciado a garantia da chegada de Masinissa a tempo para a batalha. Era Aníbal quem estava aturdido com a imensidão da África, e não Cipião Africano, e era Aníbal — acostumado por tantos anos ao relativo tamanho da Itália — que tivera seu serviço de inteligência enganado pela ausência da cavalaria de Masinissa no acampamento de Cipião, e pela falta de conhecimento sobre os eventos na Numídia. O encontro entre Aníbal e Cipião tem sido comparado àquele entre Napoleão Bonaparte e Alexandre I da Rússia, dois mil anos mais tarde. "A admiração mútua deixou-os mudos", escreveu Lívio.[36] É duvidoso que Aníbal tivesse ficado mudo, pois ele certamente sentia-se confiante, enquanto Cipião, por seu lado, sabia que o grande expatriado cartaginês estava desejoso de fazer a paz, e saber que o adversário tem algo mais em seu coração do que a vitória é sempre um considerável conforto em qualquer disputa.

A Batalha de Zama

Ver artigo principal: Batalha de Zama

A Batalha de Zama, travada em 19 de outubro de 202 a.C., foi uma batalha decisiva da Segunda Guerra Púnica. O exército da República Romana, liderado por Cipião Africano, derrotou as forças de Cartago lideradas por Aníbal. Logo após essa derrota, o senado de Cartago assinou um tratado de paz, terminando assim uma guerra de quase vinte anos.

Final de carreira

Depois da guerra

A rota da invasão da Europa por Aníbal.

Aníbal correu de Adrumeto para Cartago para comunicar ao conselho que, o que quer que se dissesse, não haveria mais esperança de sucesso em prolongar a guerra. Muitos dos cartagineses, cientes de que sua cidade ainda era a mais rica do mundo e permanecia relativamente intocada pela guerra, acharam difícil de acreditar que tudo estava perdido. Uma história típica conta que Aníbal, presente em uma reunião na qual um jovem nobre incitava seus concidadãos para que guarnecessem suas defesas e recusassem os termos romanos, subiu no palanque do discursante e atirou-o ao chão. Desculpou-se imediatamente, dizendo que estivera longe por muito tempo e, acostumado à disciplina dos acampamentos, não estava familiarizado com as regras de um parlamento. Ao mesmo tempo, pediu-lhes, agora que estavam à mercê dos romanos, que aceitassem "termos tão clementes quanto os que lhes foram oferecidos, e orassem para os deuses que o povo romano ratificasse o tratado". Achava que os termos que Cipião Africano propusera quando de sua chegada diante das muralhas de Cartago eram melhores do que se poderia esperar de um conquistador que lidava com um povo que já havia traído um tratado anterior. O conselho reconheceu as palavras de Aníbal como "sábias e acertadas, e eles concordaram em aceitar o tratado nas condições romanas, despachando emissários com ordens de concordar com ele".[18]

Vendo que o grande general dos cartagineses e seu último exército estavam derrotados, e que a cidade jazia indefesa — muito embora o sítio tenha sido longo e difícil, como a Terceira Guerra Púnica um dia iria mostrar — as condições de Cipião Africano para a paz eram razoáveis. Como antes, todos os desertores, prisioneiros de guerra e escravos deveriam ser entregues, mas dessa vez os navios de guerra seriam reduzidos a não mais do que dez trirremes. Cartago, por outro lado, poderia manter seu território inicial na África, e suas próprias leis dentro dele, mas Masinissa teria total controle de seu reino, e Cartago nunca mais poderia fazer guerra com quem quer que fosse, tanto dentro da África quanto fora, sem permissão romana. Isso efetivamente garantia que o reino númida cresceria às custas de Cartago, algo que um dia provocaria a última Guerra Púnica. Uma vez que haviam quebrado a trégua, a indenização de guerra original foi dobrada, embora lhes fosse permitido pagar em parcelas anuais durante cinquenta anos. Todos os elefantes cartagineses deveriam ser entregues, e nunca mais treinados, enquanto, ao mesmo tempo, uma centena de reféns, escolhidos por Cipião Africano, seriam despachados para Roma. Desse modo, ele se garantiria contra quaisquer atentados a traição. Como antes, o exército romano deveria ser suprido com cereal por três meses e receber seu pagamento durante o tempo em que o tratado de paz era ratificado.

Poderia se esperar que Roma exigisse a rendição do próprio Aníbal, considerando tudo o que ele havia causado por tantos anos. Não teria sido uma condição incomum após a conclusão de uma guerra como aquela, e o fato de não ter sido feita só pode ser atribuído ao próprio Cipião Africano que, como muitos generais sob circunstâncias de algum modo similares, havia adquirido uma enorme admiração e respeito por seu oponente. Em todo caso, deve ter ficado claro para Cipião Africano que a condição de Cartago era tal que, sem um homem forte no comando, todo aquele edifício mercantil iria se transformar em ruínas. Viria o tempo, dentro de pouco mais de cinquenta anos, em que esse seria o desejo de Roma, mas no momento a república estava exaurida demais para juntar os pedaços. Para garantir que Cartago cumpriria os termos, pagaria as reparações e se acomodaria tranquila outra vez na África do Norte, era necessário um homem que reconhecesse totalmente como a cidade havia sido afortunada por lhe serem permitidos termos tão aceitáveis. Esse homem era Aníbal.

Havia, com certeza, considerável oposição em Roma aos termos aparentemente brandos impostos aos derrotados. Isso era bastante compreensível, pois Roma, na primavera de 201 a.C., quando o tratado foi finalmente ratificado, sofrera dezessete anos de guerra incessante. Cipião Africano, um jovem, desaprovado por muitos de seus oponentes, o homem que havia conseguido suas vitórias em países estrangeiros muito distantes da desolação da Itália, dizia aos desolados e quase falidos senadores que eles não deveriam pressionar Cartago — na frase de uma guerra de séculos mais tarde — "até o último grito". Mas pela instigação dos partidários de Cipião Africano|Cipião]], a decisão foi encaminhada do senado para a Assembleia Popular, e o povo quis a paz. Em Cartago, as coisas seguiram quase o mesmo padrão; os ricos do conselho se apavoraram quando perceberam que o dinheiro para a primeira parcela das reparações teria que vir de seus próprios bolsos; e o povo, sentindo que Cartago havia sofrido o suficiente, queria mais do que tudo um fim para a guerra. Eles eram extremamente afortunados por terem encontrado em Aníbal um estadista capaz e incorruptível em tempos de paz, assim como havia sido um grande líder na guerra.

Enquanto Cipião Africano e seu exército embarcavam para Roma, Aníbal, que tinha sido indicado Magistrado Chefe de Cartago, começou sua gigantesca tarefa de reconstrução. Apesar de todos os anos de guerra, a prosperidade comercial da cidade nunca havia sido colocada em perigo seriamente, mesmo depois da perda da Espanha. Uma das razões para isso era que o comércio entre o Levante e o Mediterrâneo ocidental sempre havia continuado a fluir ao longo da costa norte-africana, onde os romanos pouco podiam interferir. Inevitavelmente, desde o começo de sua tarefa Aníbal defrontou-se com o ódio de seus inimigos — o partido da paz, que sempre havia declarado que o comércio, e não a guerra, era o negócio de Cartago. Eles ignoravam deliberadamente o fato de que a expansiva Roma nunca deixaria sua cidade em paz. Ironicamente (algo que tem acontecido em guerras posteriores), os vencidos se encontravam na posição de não terem nada para se preocupar, a não ser reconstruir suas fábricas e fortunas, enquanto os vitoriosos se confrontaram imediatamente com uma série de problemas que exigiam quase toda a sua atenção. Roma iria, agora, envolver-se numa guerra contra Filipe V da Macedônia, com problemas no Egito, revoltas entre muitas das tribos da Hispânia e a crescente resistência dos gauleses na Itália, bem como na própria Gália. Haviam descoberto que um império não é algo que possa ser facilmente controlado, e sim um vulcão em irrefreável expansão até que alguma fraqueza em suas bordas permita que o fogo transborde — vindo, em seguida, um derradeiro colapso e inércia. Quando Cipião Africano retornou a Roma naquele ano, foi naturalmente recebido em triunfo. Seus feitos na África haviam sido formidáveis, e nem mesmo seus inimigos poderiam negar que ele havia levado a guerra a uma conclusão triunfante. À frente de suas tropas conquistadoras, ele cavalgou através de ruas enfeitadas, enquanto os elefantes de guerra da África, que haviam sido trazidos de Cartago, assombravam o povo com sua estranheza e seu barrido. A Cipião foi dado o cognome "Africano", "O primeiro general que era distinguido por um nome derivado do país que ele havia conquistado". Compreensivelmente, era o herói do momento e provavelmente teria sido feito cônsul perpétuo ou mesmo ditador, como Júlio César, cento e cinquenta anos mais tarde. Sabiamente, recusou quaisquer dessas honrarias e parece ter se contentado em viver a vida de um cavalheiro ocioso, entregando-se à sua paixão pela literatura grega e pela boa conversação, ambas características que devem ter ficado evidentes quando esteve em Siracusa e que o haviam tornado suspeito para uma geração mais velha e mais obstinada de romanos. Desde o fim da guerra e pelos sete anos que se seguiram, Aníbal dedicou-se aos assuntos de seu país e a reconstruir a prosperidade mercantil de Cartago. Não sendo mais o grande expatriado, devotava-se exclusivamente aos assuntos domésticos cartagineses e a garantir que seu país mantivesse sua palavra junto aos romanos. Pode-se questionar se ele ainda nutria ou não pensamentos de vingança, pois a base de poder de Cartago na península Ibérica estava perdida, eles não tinham marinha, e os romanos controlavam o mar, bem como dominavam a bacia do Mediterrâneo por terra. Ao mesmo tempo, deve ter mantido um olho sobre o progresso romano no leste, onde a batalha de Cinoscéfalas, em 197 a.C., deu a Roma sua grande vitória sobre Filipe V da Macedônia, destruindo o poder macedônio para sempre. Filipe foi forçado a entregar sua frota, suas possessões na Grécia, e a pagar uma grande indenização de guerra, como Cartago havia feito e ainda fazia. Foi provavelmente a habilidade financeira de Aníbal que garantiu que Cartago saldasse os seus compromissos — compromissos que os romanos esperavam não serem cumpridos, o que lhes daria motivos para uma invasão — e isso fez com que o ódio dos romanos por ele revivesse. Tinha, também, muitos inimigos entre os cidadãos ricos da casa, pois havia denunciado muitos oficiais de altos postos cujo peculato descobrira.

Aníbal deixa Cartago

A família Barca, por todos os seus serviços a Cartago, sempre havia tido rivais e inimigos, e também havia aqueles que se apraziam em colocar a culpa pela recente guerra inteiramente sobre Aníbal. O reaquecimento comercial de Cartago, inspirado e dirigido por ele, havia então levantado ciúmes e ressentimento em Roma. Não seria surpresa, assim, que essas duas facções se aliassem no desejo de vê-lo removido do cargo. Foi Cipião Africano quem interveio em favor de seu antigo inimigo, lembrando a eles que não lhes diziam respeito os assuntos puramente cartagineses, mas o ressentimento contra Aníbal não poderia ser contido permanentemente. Em 195, uma comissão foi enviada de Roma a Cartago alegando que Aníbal estava favorecendo um inimigo de Roma. Esse inimigo era Antíoco, o Grande, da Síria, cujambição era recriar o império oriental de Alexandre, o Grande, e que quase havia estabelecido seu domínio sobre a Palestina, Fenícia e Chipre. E mais do que provável que Aníbal vira em Antíoco o único governante do leste capaz de desafiar Roma e de restaurar um equilíbrio de poder no Mediterrâneo que permitiria a Cartago, uma vez mais, assegurar sua antiga supremacia sobre a península Ibérica, a Sicília e as outras ilhas centrais do mar. Se houve ou não qualquer correspondência entre eles é algo que nunca será conhecido. Certamente os romanos afirmavam que sim, e foi por isso que seus enviados rumaram para Cartago. Catão, o Ancião, que havia servido a Cipião Africano na Sicília e que invejava profundamente sua fama e posição, era agora cônsul e estava determinado a arrastar Aníbal para Roma.

Quando soube do que se passava, Aníbal não teve qualquer ilusão de que seus inimigos em Cartago não viessem a traí-lo junto aos romanos. Conseguiu deixar o país através de uma série de evasões notáveis, fruto de sua habilidade no campo de batalha. Tendo recebido os enviados romanos e os escoltado aos seus quartéis em Birsa, ele foi visto pela cidade, como de costume, durante o dia. Ao cair da noite, contudo, sob pretexto de sair para uma cavalgada no frescor da noite, ele escapuliu para uma vila sua não muito longe de Adrumeto, onde tinha um navio preparado, com seus pertences pessoais e fortuna particular já embarcados, e uma tripulação fiel aguardando por ele.

Chegando no dia seguinte à ilha de Cercina, não muito distante da costa, Aníbal foi surpreendido com a presença de outros navios ali a caminho de Cartago, e ele logicamente foi reconhecido pelas tripulações dos navios. Tendo convidado os capitães e tripulações dos navios para jantar consigo, sugeriu que eles, então lisonjeados pelo convite, trouxessem para a terra as velas e mastros de seus navios para que fossem usados como proteção para o sol. O entretenimento durou todo o dia e adentrou a noite, quando Aníbal silenciosamente embarcou e se pôs a caminho. Quando os convidados acordaram no dia seguinte, seu anfitrião havia partido, e, mesmo se eles tivessem alguma intenção de segui-lo e soubessem de seu destino, teriam levado algum tempo para reequipar os navios e segui-lo. Algumas semanas mais tarde, Aníbal desembarcou no velho lar dos fenícios, Tiro, berço de Dido e cidade-mãe de Cartago.

Os treze anos restantes da vida de Aníbal são tristes de se contemplar, embora não tão vazios quanto os últimos anos de Napoleão, pois Aníbal permaneceu em liberdade até o dia em que deu cabo de sua própria vida. Foi no ano de 195 a.C., quando o grande herói do Mediterrâneo oriental colocou os pés no berço de sua raça, para ser aclamado por todos aqueles do Levante e da Ásia Menor que viram sua liberdade ameaçada pela sombra de Roma. Logo após a derrota de Filipe V da Macedônia, Roma proclamou-se protetora da Grécia — um ato judicioso que agradou aos gregos e ao mesmo tempo garantiu sua servidão. Somente em Antíoco Aníbal podia ver alguma esperança para o ressurgimento de uma guerra contra a Itália. Antíoco, porém, não desejava envolver-se numa guerra distante no Mediterrâneo central; só estava preocupado em assegurar e ampliar seu império oriental. Ambicionava ser reconhecido na Grécia, mas uma pequena força que enviou para lá foi severamente castigada naquele desfiladeiro de memória clássica, Termópilas, e ele mal conseguiu assegurar a Ásia Menor para si.

A reputação de Aníbal não o fazia popular entre os militares e conselheiros que cercavam o rei sírio, e nunca lhe foram dadas a frota e as tropas que pedira para invadir a Itália. Antíoco, com certeza, possuía muitos homens e armas, mas não eram do calibre dos romanos sob nenhum aspecto. Em 189, na Batalha de Magnésia, ele foi conclusivamente derrotado e forçado a desistir da maior parte da Ásia Menor, deixando-a para os romanos e seus aliados. Numa prévia revista ao exército do rei, ainda que fosse aproximadamente duas vezes maior que o exército do inimigo, Aníbal respondera secamente quando perguntaram sua opinião sobre tal grande hoste: "Sim, isso será suficiente para os romanos, mesmo ávidos como eles devem estar".

Umas poucas anedotas sobre Aníbal sobreviveram nesses anos em que partiu como exilado de seu próprio país e um declarado "inimigo do povo romano", através das cortes e insignificantes reinos do leste. O seu estilo era lacónico, o imperatoria brevitas, revelado antes em observações como "Roma tem seu Aníbal em Fábio" e "Marcelo era um bom soldado, mas um general imprudente". Convidado em certa ocasião para escutar uma conferência de um velho académico especializado em estudos militares, ele não fez qualquer comentário até que sua opinião fosse especificamente solicitada, quando ele observou tranquilamente: "Em minha vida eu tenho tido que ouvir alguns velhos tolos, mas esse supera a todos eles".

Houve um segundo encontro entre Aníbal e Cipião Africano algum tempo antes de Antíoco começar a guerra no leste. Foi enviada uma missão a Éfeso, vinda de Roma, para tentar descobrir a atitude do governante sírio e suas intenções. Cipião Africano, que a liderava, mandou perguntar a Aníbal se ele desejava encontrá-lo, ao que este prontamente assentiu. Os relatos a esse respeito descrevem os dois homens falando de velhos tempos, e Cipião Africano perguntando a Aníbal quem ele pensava ser o maior general da história. "Alexandre, o Grande", Aníbal respondeu, acrescentando que com somente uma pequena força ele derrotou exércitos muito maiores em quantidade do que o seu próprio, e que ele chegara até as mais remotas regiões da Terra. Perguntado sobre quem ele achava ser o próximo, Aníbal pensou por um momento e respondeu: "Pirro" (o rei do Epiro, que havia invadido a Itália em 280), citando seu brilhante julgamento ao escolher o terreno e a cuidadosa disposição de tropas. O romano (era visível que Cipião Africano buscava um elogio) insistiu: "E o terceiro?" "Eu mesmo, sem dúvida." Cipião Africano riu: "E o que você teria dito se tivesse me vencido?" "Então", replicou o cartaginês, "eu teria me colocado como o primeiro de todos os comandantes".

Isso se tornou um agradável elogio que sem dúvida deleitou Cipião Africano, o que é o provável motivo de ter sido citado tanto por Lívio[36] quanto por Plutarco.[37] Desses dois grandes soldados-estadistas Arnold comenta que Cipião Africano parecia "o Aquiles de Homero, a mais alta concepção do herói individual, confiante em si e eficiente. Mas o mesmo poeta que concebeu o caráter de Aquiles também concebeu o de Heitor; do herói verdadeiramente nobre porque altruísta, que emprega seu génio para o bem de outros, que vive para suas relações, seus amigos e seu país. E como Cipião Africano vivia para si mesmo, assim como Aquiles, então a virtude de Heitor é merecidamente representada pela vida de seu grande rival, Aníbal, que, da sua infância até a última hora, na guerra ou na paz, através da glória e do esquecimento, entre vitórias e desapontamentos, sempre se lembrou do propósito ao qual seu pai o havia devotado, e não se rendeu a qualquer pensamento, desejo ou feito que o desviasse do serviço que prometera ao seu país".

Esses dois destacados homens, tão semelhantes em muitos aspectos, tão dessemelhantes em outros, terminaram suas vidas no exílio. Cipião Africano, a quem Catão havia sempre odiado — por seu amor pela cultura grega quase acima de tudo — foi acusado por esse último e seus amigos no senado de negligência nos fundos públicos. Cipião Africano, em resposta, trouxe seus livros de anotações perante o senado, rasgou-os e disse aos seus acusadores que rastejassem procurando provas entre os pedaços. Ele, então, disse que milhares de talentos de prata haviam adentrado o erário público sob sua representação, e que suas vitórias haviam dado a Roma não somente a Hispânia, mas a África, e agora a Ásia (pois ele também havia atuado em Magnésia). Ele deixou Roma com grande amargura e nunca mais retornou.

Aníbal, após a derrota de Antíoco e a conclusão de um tratado de paz entre o rei e Roma, sem dúvida presumiu, e acertadamente, que tal tratado conteria uma cláusula exigindo a sua entrega aos vitoriosos. Rápida e secretamente, partiu de navio para Creta, então uma ilha selvagem e indomada, lar de piratas e de homens que não reconheciam qualquer monarca ou Estado. Ainda ali, não seria deixado em paz. Roma, à medida que se expandia para o leste, e que suas rotas de navegação se tornavam mais extensas, preocupava-se crescentemente com a segurança de sua marinha mercante. Era natural que, no devido tempo os romanos ficassem interessados naquela grande ilha entre o Egeu e o Egito, potencialmente próspera e útil, mas àquela época infestada de piratas.

Aníbal havia se estabelecido em Cortina, uma antiga cidade, só perdendo em importância para Cnossos, nos tempos antigos, e situada perto de um pequeno rio cerca de três milhas distante da costa sul. Uma divertida, mas possivelmente apócrifa história, conta como Aníbal, quando ali construiu seu lar, fez questão de depositar abertamente seu tesouro no templo local de Ártemis. Corretamente suspeitando da honestidade cretense (como o apóstolo Paulo, alguns séculos mais tarde), o "tesouro" que ele enviou para ser guardado no templo era não mais que uma decepção; grandes vasos de argila cheios de chumbo com um punhado de moedas de ouro espalhadas bem visivelmente por cima. O grosso de sua fortuna restante foi escondido em algumas estátuas de bronze ocas no jardim de sua casa. No devido tempo, um esquadrão romano visitou Creta em disfarces de piratas, investigando o potencial dos recursos e portos da ilha. Aníbal, em seu retiro, permanecia imperturbável, mas sabia que era questão de tempo até que os romanos soubessem do rico cartaginês vivendo em retiro em Cortina, e descobrissem seu nome. Como ele havia feito em Cartago, e como fizera na corte de Antíoco, Aníbal partiu secreta e rapidamente. Com ele foram as estátuas do seu jardim. Quando os sacerdotes cretenses de Artemis ou os soldados romanos abriram os jarros guardados no templo, pode-se imaginar sua risada irónica ecoando ao vento.

Então, Aníbal foi para a remota Bitínia, para o reino de Prúsias I. Mesmo a sua morte não colocou fim à sua influência. Sua memória iria atormentar Roma por todos os séculos da existência do império. Certa vez, estivera próximo aos portões da cidade; certa vez, chegara perto de subjugar o Estado que agora comandava praticamente todo o mundo conhecido. Historiadores e poetas nunca o esqueceram; mesmo os mais ásperos, como Juvenal, lembravam-se daquele horrendo brado: "Aníbal está aos portões!"

Legado

Cinema e televisão

Ano Filme Notas
2008 Hannibal the Conqueror Filme estadunidense dirigido e protagonizado por Vin Diesel no papel de Aníbal.[41]
2006 Hannibal - Le pire cauchemar de Rome Filme produzido pela BBC com Alexander Siddig no papel de Aníbal.[42]
2005 Hannibal V Rome Documentário televisivo produzido por Richard Bedser e veiculado pelo National Geographic Channel[43] com Tamer Hassan no papel de Aníbal.[44]
2005 The True Story of Hannibal Documentário televisivo produzido por Mark Hufnail com Benjamin Maccabee no papel de Aníbal.[45]
2001 Hannibal: The Man Who Hated Rome Filme britânico produzido por Patrick Fleming.[46]
1997 The Great Battles of Hannibal Documentário britânico.[47]
1959 Annibale Filme italiano produzido por Edgar George Ulmer e Carlo Ludovico Bragaglia com Victor Mature no papel de Aníbal.[48]
1955 Jupiter's Darling Produzido por George Sidney com Howard Keel no papel de Aníbal.[n 4]
1937 Scipione l'africano Filme italiano.[49]
1914 Cabiria Filme mudo produzido por Giovanni Pastrone com Emilio Vardannes no papel de Aníbal.[50]

Notas

  1. Tal como na prática greco-romana, a filiação era um aspecto comum da nomenclatura cartaginesa. Ver Ameling, Walter Karthago: Studien zu Militär, Staat und Gesellschaft p. 81-82
  2. A data de morte de Aníbal costuma ser citada com maior frequência como sendo 183 a.C., porém existe a possibilidade de que ela tenha ocorrido no ano anterior.
  3. A famosa frase latina da última sentença da conversa é a seguinte: "Vincere scis, Hannibal; victoria uti nescis."
  4. Neste filme, o personagem de Aníbal tem uma participação secundária.

Referências

  1. a b c d Cornélio Nepos (1810). Les Vies des grands capitaines. Hannibal (em francês) 3 ed. [S.l.]: Tournachon-Molin. 424 páginas 
  2. Tito Livio. «Historia Romana». Livro XXXIX, 50-51 (em francês). Consultado em 17 de julho de 2009 
  3. Church, Alfred John; Gilman, Arthur (1998). The Story of Carthage (em inglês) Ilustrada ed. [S.l.]: Biblo & Tannen. 310 páginas. ISBN 978-0-8196-2057-6 
  4. a b Benz, Franz L. 1982. Personal Names in the Phoenician and Punic Inscriptions. p.313-314
  5. a b Baier, Thomas. 2004. Studien zu Plautus' Poenulus. p.174
  6. Friedrich, Johannes, Wolfgang Röllig, Maria Giulia Amadasi e Werner R. Mayer. 1999. Phönizisch - Punische Grammatik. p.53.
  7. Chesterton, Gilbert Keith (1925). «The Everlasting Man». The War of The Gods and Demons (em inglês). Consultado em 17 de julho de 2009 
  8. Brown, John Pairman. 2000. Israel and Hellas: Sacred institutions with Roman counterparts. p.126-128
  9. «Biographie d'Hannibal». Forged By Lightning: A Novel of Hannibal and Scipio (em inglês). Consultado em 17 de julho de 2009 
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  12. Cornélio Nepos. «Dos Grandes Comandantes Estrangeiros». Consultado em 17 de julho de 2009. Se é certo, como ninguém duvida, que o povo romano excede a todas as demais nações em mérito militar, tampouco é disputado que Aníbal sobrepassava ao resto de comandantes em habilidade tanto quanto os romanos sobrepassavam ao resto de povos em valor. 
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  16. Púnico, em latim, punicus, é um adjetivo que deriva do fenício, (em latim poeni) empregado para designar os cartagineses. Cf. Encyclopédie 360, éd. Rombaldi/Paris Match, 1970, vol. 3, p. 21
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  23. Cornélio Nepos. «Dos Grandes Comandantes Estrangeiros». Tertullian.org. pp. 427–428. dois deles (narradores da vida de Aníbal) viviam com ele no acampamento enquanto a fortuna o permitia: Sileno e Sosilo, o Lacedemônio; e a este Sosilo tinha Aníbal como seu instrutor na linguagem grega. 
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